sábado, 19 de agosto de 2017

SENTIMENTOS, EMOÇÕES E LINGUAGEM


Ao se adotar um foco relativo à etiologia da linguagem é possível detectar que em animais superiores o sentimento é manifestação da primeira linguagem codificada seja em gestos, expressões faciais ou corporais, sons musicais ou de ênfase como rosnados.

A humanidade necessitou erigir o verbo em meio aos gritos com base na harmonia dos símbolos, que inicialmente surgiram de uma progressiva harmonização dos sentimentos em emoções, estruturas de linguagem sentimental possuidoras de conteúdo comunicacional mais consistente e expressiva de um estado psicológico específico.

A conversão da reação do sentimento cego na estabilidade das emoções significativas, simbolizadas por nomes próprios, foi o fruto da repetição de rituais religiosos originados das crises miméticas, que operaram o progressivo nascimento dos símbolos diferenciadores da cultura.


Cabe aqui esclarecer que a chave da teoria mimética de René Girard é fundada na criação do bode expiatório, uma vítima sacrificada pela violência sagrada, originada na violência caracterizada pela espiral da vingança que eventualmente domina a comunidade quando os processos miméticos fogem do controle.


O sacrifício do bode expiatório, fenômeno que ocorre dentro do mecanismo mimético, contém o processo da violência sem fim, assim, o ato sacrificial origina o rito, que é a reprodução dessa violência sagrada mantenedora da paz social, em contraponto à violência profana e irracional na qual os sentimentos são inominados e indiferenciados.

Neste sentido, o temor ao sagrado é um mecanismo que origina a linguagem, e explica como somos capazes de racionalizar o temor em amor, pois o próprio fato de atribuirmos nomes às emoções e aos sentimentos implica na criação de símbolos, imagens, referências, diferenciações.

A conversão de reações sentimentais em emoções racionalizadas é uma técnica de sobrevivência da espécie humana que possibilita o controle da violência humana e social.

Daí a criação de emoções e o ato nominá-las ser um tipo de racionalidade com foco na necessidade de sobrevivência, um exemplo misterioso, e já bem vulgarizado no senso comum, é o processo descrito como "Síndrome de Estocolmo", em que a vítima converte o temor ao algoz em respeito à autoridade, ou mesmo em amor ao tirano, por isso que ditaduras e totalitarismos são tão longevos, pois o medo é uma emoção que conforma o verbo "obedecer", e, da mesma forma,  em sociedades republicanas e/ou democráticas, o amor funda a caridade e a autonomia de pessoas livres por meio do senso de responsabilidade.

Werner Nabiça Coêlho - 19/08/2017

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O MITO DO HERÓI E JAIR BOLSONARO



A página do STJ no facebook nunca foi tão "avaliada" em sua existência, como depois da confirmação da condenação do Deputado Federal Jair Bolsonaro ao pagamento de uma indenização civil àquela senhora defensora de menores infratores.

Jair Bolsonaro foi condenado a pagar a bagatela de 10 mil reais, e, em troca recebeu gratuitamente uma massiva campanha de "marketing involuntário", gerenciada por aquela "agência de propaganda" denominada STJ que destacou com tanta ênfase a notícia com a seguinte chamada: "Jair Bolsonaro terá de indenizar deputada Maria do Rosário por danos morais".

O Deputado Jair Bolsonaro é tão sortudo, mas tão sortudo, que até quando é condenado obtêm resultado prático melhor que o de uma absolvição, uma vez que uma condenação tão evidentemente injusta e contraditória tem mais forte repercussão social que uma óbvia decisão coerente com a realidade. A narrativa mitológica bolsonariana só se fortalece com tal condenação.

Por falar em narrativa mitológica, há uma distinção fundamental entre o mito na antiguidade e a compreensão sobre o mito após a boa nova cristã, que está justamente no reconhecimento da inocência fundamental do herói trágico, transformação operada pelo exemplo histórico presente na Paixão de Cristo.

O herói trágico, nas narrativas antigas, é a vítima sacrificial eleita pela fatalidade, que mesmo inocente de culpa e dolo aceita sua condenação, pois nem o herói é capaz de perceber-se fora da lei do eterno retorno mitológico da violência sagrada tão forte na cosmovisão pré-cristã.

O herói, após a instauração da percepção cristã da realidade, foi reconhecido como uma vítima da injustiça do sacrifício em nome da necessidade de se aplacar a violência social, o herói foi rebatizado de vítima inocente, mártir, e dependendo das circunstâncias pode ser reconhecido como um santo.

O brasileiro tem a clara percepção da injustiça inerente à condenação civil de Jair Bolsonaro, isso consolidará a sua narrativa heróica, pois nossa cultura é penetrada até a raiz pela percepção cristã da inocência da vítima injustamente sacrificada em nome dos poderes deste mundo.

Werner Nabiça Coêlho - 17.08.2017

MINHA DEFINIÇÃO DE DIREITA POLÍTICA



Observe-se que a luta não é pela "direita", mas, sim, pela preservação de instituições e valores morais que permitem uma vida livre.

O homem em sua infância nasce com o conhecimento natural do mal, da luta pela sobrevivência material, e é necessário se buscar a maturidade, um fruto da elevação na vida da inteligência, na luta pela eternidade.

Ser de direita é uma postura "cultural" e "antropológica", somos povos ameaçados de extinção física mesmo, o que implica assumir uma postura "ambientalista", pois queremos preservar nossas condições básicas de vida, propriedade e liberdade.

O indivíduo ao defender-se do coletivismo da esquerda deve criar uma "práxis" de preservação da espécie humana em seus anseios mais básicos e de perduração.

Algo fácil de se constatar, ao se estudar fatos históricos, e da observação dos fatos políticos recentes, que  esquerda não está nem aí para a coerência de idéias, o que importa é a "práxis marxista", cujo objetivo final é tomada do poder social absoluto.

A direita brasileira é incipiente e está perdida em meio a visões do paraíso ideológico libertário, por pura e simples contaminação das esquerdas, o primeiro passo é afirmar que não se precisa de uma ideologia para viver, danem-se os seguidores do Cazuza.

Devemos recuperar a realidade do mérito, do valor de alcançar um objetivo por meio do esforço do exercício e/ou treino, que no caso do conhecimento é fruto do auto-estudo.

A auto-educação é a dedicação de quem tem predisposição e persistência, de estudar por conta própria, e, assim, alcançar seus objetivos educacionais, por outro lado, o reconhecimento social e financeiro é outro departamento, afinal, não se estuda para enriquecer financeiramente (apesar de ser um lugar comum para o brasileiro), isso é o mais tosco materialismo dinheirista (esta é outra expressão muito usada pelo Olavo de Carvalho).

Elevar o espírito é o mérito do estudo, acontece que pessoas bem formadas acabam virando líderes, cientistas, empreendedores, bons funcionários, etc.

O estudo é fundamental para preparar a luta de quem está contra a esquerda em defesa das verdades consagradas pela experiência, tradição, família, ciência, e, em última análise, pela eternidade.

Nossa responsabilidade pessoal se espraia ao passado e se lança ao futuro, mas, sobretudo, é uma luta pela salvação da própria alma, e, quem sabe, servir de exemplo para outras.

O que é ser não-ideológico? 

É buscar a verdade! 

Como fazê-lo? 

Precisamos estudar história, contemplar a arte, viver a religião, mas, para gostos mais filosóficos, recomendo o enfrentamento do argumento etiológico, ou estudo das origens e das causas, são todos caminhos que nos conduzem a Deus, o Logos da Última e da Primeira Verdade.

Quem luta pela ideia de "direita" é aliado da esquerda, pois é só mais uma palavra polissêmica, cujo sentido é variável, e quando representa uma "ideologia de direita" torna-se, assim, mais um braço da esquerda.

Ao cidadão que enfrenta o embate pela defesa da civilização para conservar desde a própria vida até os valores mais elevados da religião, da arte e da cultura herdada de seus antepassados, costuma-se distinguir da esquerda... com o termo "direita".

Para ser de direita, num dado contexto histórico, basta estar na necessidade de agir segundo o instinto de autopreservação, o que se convencionou denominar, na era pós-revolução de 1789, de "conservador", em oposição ao "liberal", o revolucionário que precedeu o "socialista".

Logo, ser de direita é ser não ideológico!

O fato de assumir posições de direita decorre de uma reação à invasão de bárbaros do pensamento e da ação social deletéria da esquerda.

Quid iustum? (Que é direita?)

Direita é uma definição negativa em relação ao que é ser de esquerda.

Direita é uma posição relativa, até a esquerda política tem sua "direita".

O meta-capitalismo (expressão criada por Olavo de Carvalho) é a suprema burguesia aliada ao estado totalitário, como já ocorre na China, o paraíso das elites comunistas e econômicas, a esquerda consuma-se nesta vil aliança político-econômica.

Neo-conservadorismo é coisa de americano, brasileiro quando quer conservar alguma coisa de sua tradição ancestral torna-se católico, ou ao menos um zeloso estudioso da história desta nação, desde a conquista romana da velha Ibéria lusitana.

Por fim, no sentido mais elevado da ideia de "direita", a única direita pela qual vale à pena lutar é aquela posição ocupada pelos que estão à direita de Nosso Senhor Jesus Cristo, o resto é tudo gente que acredita em ideologias baratas, que negam a sacralidade da vida humana em algum nível.

Werner Nabiça Coêlho - 17/08/2017


SÓCRATES É ATUAL


Sócrates inventou a Filosofia Ética, Moral e Jurídica num tempo em que não havia separação entre Governo e Religião, o Estado, o Povo e os deuses eram uma unidade.

Sócrates, com sua dialética, ironizou instituições sociais, jurídicas e religiosas, e, assim, escandalizou o povo de Atenas, mas ele não se opunha à ordem social, somente a questionava, e por sua liberdade de expressão foi condenado à morte.

O Mundo Antigo era "Politicamente Correto" na defesa das instituições consideradas sagradas pela sociedade, num tempo em que não existia "Estado Laico".

sábado, 12 de agosto de 2017

MEDICINA, FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA E ÉTICA: A DESCOBERTA DO RACIONALISMO ETIOLÓGICO






Aos dezesseis anos, por conta de um trabalho escolar cobrado pela professora Yeda, à época uma mocinha, que ministrou a disciplina filosofia, no início do primeiro ano do segundo grau, li, pela primeira vez, a Apologia de Sócrates, e, desde então, tenho cultivado campos interiores de conhecimento por puro deleite e prazer.

Esta experiência casual, possibilitada pela escola marista Nossa Senhora de Nazaré, de Belém do Pará, ocorreu por um feliz acidente, dado que somente houve aula de filosofia no primeiro ano, depois, sumiu do mapa do resto do meu segundo grau,  mas, direcionou-me a curiosidade para a filosofia.

Antes desta experiência, o gosto que me dominava voltava-se exclusivamente para o estudo de história e política, e, rememoro, ainda, quando aos seis anos de idade, ao estudar sobre Pedro Álvares Cabral questionava meu pai sobre o que veio antes do Brasil, ou seja, o início de Portugal, e o velho respondia que o Reino de Portugal fora fundado pelo Rei Affonso Henriques lá pelo ano de mil cento e alguma coisa, e, como moleque enjoado que eu era, continuava: e antes de Portugal existir? E antes dos romanos? De fato, desde novo era um chato!

Passados tantos anos, ainda me deixo ser assaltado pelo espanto e pela admiração, quando percebo algo óbvio, ou que deveria sê-lo, que se encontrava encoberto, pelas névoas dos vales de ignorância, que campeiam por entre os pequenos morros de conhecimento, que tenho erguido ao longo da vida, elevações sobre as quais subo para tentar contemplar um pouquinho mais longe, para aplacar a bendita e insubmissa curiosidade que me aflige, ao mapear a topografia de minha ignorância conforme a cartografia ensinada pelo Mestre Olavo de Carvalho.

Um dos últimos sustos que sofri foi descobrir, no sentido de compreender, o termo filosófico racionalismo etiológico, termo técnico que designa a busca racional pelas origens.

A luz sobre a etiologia se fez quando vi Voegelin descrever o argumento etiológico [01], o problema filosófico fundamental, não enfrentado, e, até mesmo ignorado, pela filosofia moderna.

Fixei esta luminosidade mentalmente, e, assim, pude compreender melhor a observação de Reale e Antiseri, já lida a algum tempo atrás, de que a medicina hipocrática foi a criadora do racionalismo etiológico [02].

O racionalismo que se fundamenta na busca da origem do problema foi o que possibilitou o nascimento e o desenvolvimento da ciência médica e das demais ciências.

A obviedade de aprender tal terminologia está no fato de que a busca das origens é o que sempre me impulsionou: - Sou, portanto, um racionalista etiológico!

Nesta busca etiológica, tenho estudado algumas hipóteses sobre origens, seja da linguagem ou da sociedade, do fenômeno jurídico ou filosófico, etc.

E ao atinar sobre a importância do argumento etiológico, e a metodologia que lhe é inerente, que se opera com base no conceito de racionalismo etiológico, pude perceber o quanto a medicina hipocrática foi fundamental ao unificar os conceitos da filosofia pré-socrática, ou filosofia da physis, por meio de críticas e articulações com a realidade, numa teoria médica com fundamentos filosóficos e éticos.

A medicina hipocrática originou-se da mentalidade científica criada pela filosofia da physis [03], como bem se pode observar nesta passagem da obra hipocrática A Teoria do Homem, em que se realiza a refutação da teoria de que o homem seria originado de um único elemento:

Quem costuma ouvir aqueles que falam sobre a natureza humana, além do que concerne à medicina, para ele, este discurso não é interessante de ser ouvido. Digo, pois, não ser o homem, por completo, nem ar, nem fogo, nem água, nem terra, nem nenhum outro elemento que não é manifesto no interior do próprio homem. Mas deixo de lado aqueles que querem falar tais coisas. [04]

Reale e Antiseri referem-se à contribuição da particular agudeza argumentativa, herdada dos sofistas e bem visível em alguns tratados hipocráticos [05], influência que bem podemos exemplificar nestas passagens de A Teoria do Homem na qual se define o caráter composto e variado da natureza humana, com base em argumentos lógicos fundados na realidade empírica:


[...] se o homem fosse uma unidade, nunca sofreria. Pois, sendo uma unidade, não haveria por que sofrer. Se realmente sofre, é necessário que haja também um único medicamento. Mas há muitos, pois há muitas substâncias no corpo, as quais, quando, contra a natureza, mutuamente se esfriam e se esquentam, e se secam e se umedecem, geram doenças; de tal modo que muitas são as formas (idéiai) de doenças e seus tratamentos vários [06]

Apresentarei provas e apontarei as necessidades graças as quais cada substância aumenta e diminui dentro do corpo [07]

Além deste aporte filosófico e científico, houve um forte fator ético, inspirado na sacralidade da vida humana, simbolizado pelo famoso juramento de Hipócrates que no dizer de Reale e Antiseri é uma proposta simples que, em termos modernos, poderíamos expressar assim: médico, lembra-te de que o doente não é um coisa ou um meio, mas um fim, um valor, e portanto comporta-te em decorrência disso [08].

Assim, a medicina, ao nascer e se desenvolver, inspirou a filosofia ética de Sócrates e Platão, e prosseguiu sua influência, tanto no aspecto ético quanto no científico, principalmente, no filho do médico Nicômaco: Aristóteles.

Reale e Antiseri relatam que a criação da medicina hipocrática [...] nascida da mentalidade filosófica, estimulou a especulação filosófica [09] e citam Jaeger:

Não se exagera quando se diz que a ciência ética de Sócrates, que ocupa o centro da disputa nos diálogos platônicos, não teria sido possível ser pensada sem o modelo da medicina, a qual Sócrates se remete tão frequentemente. A medicina lhe era mais afim do qualquer outro ramo do conhecimento humano então conhecido, inclusive a matemática e as ciências naturais [10].
A filosofia pré-socrática, associada à técnica da argumentação racional desenvolvida pela sofística, possibilitaram o desenvolvimento da teoria e da técnica da medicina hipocrática, cujas consequências sociais e éticas estimularam a especulação socrática, e, assim sendo, a filosofia da ética e da ciência tal como a conhecemos, em sua manifestação fundamental de racionalismo etiológico.

Notas:

[01] "[...] o charlatanismo marxista reside na terminante recusa de dialogar com o argumento etiológico de Aristóteles, isto é, com o problema de que a existência do homem não provém dele mesmo, mas do plano divino da realidade" (VOEGELIN, 2007, p. 84).

[02] “[...] é no âmbito do racionalismo etiológico por ela criado, que pôde nascer, autodefinir-se e desenvolver-se a ciência médica (assim como as demais ciências)." (REALE E ANTISERI, 1990, p. 114).

[03] REALE E ANTISERI, 1990, p. 113.

[04] CAIRUS, 2005, p. 42.

[05] REALE E ANTISERI, 1990, p. 114.

[06] CAIRUS, 2005, p. 42.

[07] CAIRUS, 2005, p. 43.

[08] REALE E ANTISERI, 1990, p. 118-9.

[09] REALE E ANTISERI, 1990, p. 114.

[10] REALE E ANTISERI, 1990, p. 115.

Referências:

CAIRUS, Henrique F. “Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença”. Henrique F. Cairus e Wilson A. Ribeiro Jr. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005, 252 p. (Coleção História e Saúde)

REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: PAULOS, 1990 (Coleção filosofia)

VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas; introdução e edição de textos de Ellis Sandoz; tradução de Maria Inês de Carvalho; notas de Martins Vasques da Cunha - São Paulo: É Realizações, 2007.

terça-feira, 25 de julho de 2017

A ALIENAÇÃO É A RAZÃO EXASPERADA NO POLITICAMENTE CORRETO


A “deusa razão”, representada por uma prostituta, sendo carregada pelas ruas de Paris



Voegelin, Girard e Ortega y Gasset demonstram a necessidade de se reconquistar o significado ontológico dos símbolos.

Eric Voegelin identificou a gênese do conceito de alienação (allotiosis) na filosofia estóica, e a definiu como "um estado de retirada do próprio eu [...] um recuo da razão na existência" (2007, P. 118), fenômeno que causa em sua vítima uma profunda perda de sentido na existência humana, todavia, mesmo quando a função racional perde seu sentido superior, de buscar o sentido da vida humana no interior da realidade, a racionalidade permanece como uma ferramenta de justificação do próprio estado de alienação, mediante a racionalização da própria alienação.

O estado de alienação é, portanto, o império da violência sobre a razão, que legitima a vingança interminável, típico de crises miméticas, e, conforme a chave explicativa da teoria mimética há no ser humano uma tendência de racionalização dos motivos irracionais desencadeadores da sucessão de retaliações típicos da vingança, em que a violência desenfreada retroalimenta-se mediante o uso da lógica da reciprocidade, uma justificação sem fim até ao ponto da virtual autodestruição do corpo social na indiferenciação da violência, cuja solução de continuidade, eventualmente, é alcançada com o sacrifício de um para salvar a todos, o bode expiatório, o que nas sociedades arcaicas significou a criação do primeiro símbolo diferenciador, ao mesmo tempo nefasto e sagrado, pois a vítima representava ao mesmo tempo o bem que encerra o conflito e o mal que o iniciou, o sagrado e a violência.

René Girard, de forma análoga a Voegelin, descreve a necessidade de uma "teoria genética" que remeta à estrutura do real, na qual a linguagem simbolizada pelo rito sacrificial é uma metáfora da violência humana, que se não for ordenada e sacralizada implicará na libertação dos demônios da vingança sem medidas, o rito torna-se o símbolo da violência domesticada pela linguagem metafórica dos símbolos, e por isso adverte que:

[...] a teoria vitimária não confunde grosseiramente a perseguição espontânea com os sacrifícios rituais, mas permite que se descubra uma relação ao mesmo tempo metafórica e real entre a perseguição espontânea e todos os sacrifícios. A relação é metafórica, pelo de que todo gesto ritual consiste numa substituição da vítima, e real, pelo fato de que a vítima substituída também é imolada, mais do que nunca bode expiatório. (2009, p. 121)

A alienação que racionaliza a violência faz surgir o procedimento político da ação direta, que é descrita por Ortega y Gasset como a forma típica de atuação do homem-massa.

Ação direta é o outro nome de racionalização dos meios violentos para obtenção de resultados políticos e sociais, o que torna a linguagem uma arma de guerra social, e, assim, surge a necessidade de policiamento da própria fala e padronização de seu uso e "porte" como ocorre no fenômeno do "politicamente correto", em que a verdade é sacrificada no altar da opinião predominante.

Ortega y Gasset descreve a alienação do homem-massa ao descrever sua falta de percepção da realidade, uma vez que "o homem vulgar, ao se encontrar com este mundo técnica e socialmente tão perfeito, pensa que foi criado pela Natureza, e nunca se lembra dos esforços geniais de indivíduos excepcionais que a sua criação pressupõe" (1987, p. 76).

Cria-se, assim, um perfil humano mimado e irresponsável [1] que de forma violenta "não quer dar razão nem quer ter razão, mas que, simplesmente, mostra-se decidido a impor suas opiniões" (1987, 89), que "renuncia à convivência de cultura, que é uma convivência regida por normas, e se retrocede a uma convivência bárbara".

O homem-massa é tipo humano alienado da realidade e portador de um "hermetismo da alma, que [...] empurra a massa para que intervenha em toda a vida pública, também a leva, inexoravelmente, a um procedimento único: a ação direta" (idem, p. 90). Ortega y Gasset ressalta que a violência implicada na ação direta é a "razão exasperada" (idem).

A alienação é a razão exasperada, e, tal como Voegelin descreve, é o abandono da compreensão da realidade como uma "tensão entre o humano e o divino", e, sistemas, como o de Hegel, são a "sistematização de um estado de alienação", uma vez que há a rejeição da "razão divina", por meio da "revolta egofânica", e de forma emblemática esclarece que: 

"Não é possível se revoltar contra Deus sem se revoltar contra a razão e vice versa" (2007, p. 118).

É da tensão entre o humano e o divino que emerge a ordem, que de forma eficaz conserva a experiência humana, com o grau de sentido necessário à sua perpetuação.

As idéias são um desenvolvimento conceitual secundário, pois segundo Voegelin "as idéias transformam os símbolos, que existem para expressar experiências, em conceitos" (2007, p. 121).

O símbolo é o ente originário da linguagem, cuja gênese analoga em forma de representação uma experiência, cujo sentido e significado é o produto da tensão do humano que se depara com as qualidades, cósmica (material) e divina (espiritual), da realidade. 

O símbolo é a substância da linguagem dos mitos, e das revelações religiosas, enquanto que a criação de hipóteses e teses explicativas é oriunda da interpretação do significado secundário dos símbolos, processo hermenêutico que promove o desenvolvimento de conceitos, que com o tempo acabam sendo encarados, os conceitos, como integrantes de uma realidade abstrata e apartada da própria realidade da experiência, como se a unidade do real pudesse ser partida ao meio com uso da linguagem, e, como se houvesse "uma outra realidade que não a realidade da experiência" (2007, p. 121).

A negação da realidade como experiência viva e concreta, e a mera percepção conceitual e abstrata, que julga a existência de conceitos e idéias, como algo com uma existência à parte, é o fruto da ação deformadora das idéias sobre a "verdade da experiência" e "sua simbolização" (2007, p. 121).

Voegelin definiu que devemos distinguir a "experiência compacta do cosmos" ou "experiência primária do cosmos" das "diferenciações" que levam "à verdade da existência no sentido dos clássicos gregos, dos profetas de Israel e do cristianismo primitivo" (2007, p. 122), e, para caracterizar a transição entre verdade compacta e a verdade diferenciada na história da consciência cunhou o termo "salto no ser".

A definição de experiência compacta no cosmos, como criação de símbolos primários, casa muito bem com a definição de crise mimética, no âmbito da teoria de René Girard, uma vez que é do processo da indiferenciação violenta no âmbito do mecanismo mimético, que se cria o bode expiatório, que, assim, cria o símbolo que interrompe a mimesis violenta, com a instituição do rito sacrificial, que é a repetição do assassinato fundador.

A teoria mimética descreve a gênese do bode expiatório como a gênese do símbolo diferenciador, que favorece a constituição da estabilidade social necessária para a instituição da própria linguagem, cujo símbolo fundador é o próprio bode expiatório.

Voegelin presume em sua teoria uma experiência primária, que cria símbolos cosmológicos e compactos, que estabelecem o lugar do homem na criação, sendo o bode expiatório, na perspectiva mimética, este símbolo, que, ao possibilitar a criação do rito ,permitiu a experiência que engendrou a gênese dos símbolos, que, posteriormente, criou o ambiente social em que a racionalização conceitual possibilitou o "salto no ser", por meio da constituição de símbolos diferenciadores na história da consciência. Voegelin adverte que a:

"transformação das experiências e simbolizações originais em doutrinas podia conduzir a uma deformação da existência, caso o contato com a realidade tal como experienciada fosse perdido e o uso dos símbolos de linguagem engendrados pelas experiências e simbolizações originais degenerasse em um jogo[...]" (2007, p. 123)

O princípio orientador para Voegelin é que "a realidade da experiência é autoevidente. Os homens valem-se de símbolos para expressar suas experiências, e os símbolos são a chave para compreender essas experiências" (2007, p. 124), uma vez que o que "é experienciado e simbolizado como realidade, e um processo de progressiva diferenciação, é a substância da história" (idem).

A alienação, portanto, é uma exasperação da razão, que promove o processo de descolamento das idéias do tecido da realidade, perdendo-se a manifestação da unidade com o real presente na linguagem dos símbolos, pois a linguagem ideológica destrói a diferenciação conquistada a duras penas pelas gerações anteriores, é o primitivismo criticado por Ortega y Gasset.

O império de idéias abstratas não mais busca fundamento na realidade da experiência, e em sua complexidade, é o imperialismo da abstração que julga a realidade de forma simplificadora, é a hipótese idealista, que, com a força do negativo, impõe-se contra a substância do real. A alienação é a negação da realidade autoevidente, é a negação do senso comum constituído por símbolos representativos da realidade, em sua profundidade histórica e diferenciada.

Para exemplificar o processo de alienação Voegelin refere a excelente formação filosófica de Marx, e que o mesmo "sabia que o problema da etiologia na existência humana era central para uma filosofia do homem e que, se quisesse destruir a humanidade do homem fazendo dele um "homem socialista", precisava repelir a todo o custo o problema etiológico. (2007, p. 84).

O problema etiológico é o problema da origem de tudo, é colocação da questão da causalidade, é a percepção de que tudo possui uma causa anterior, até que se chega à causa primeira, e, neste ponto Voegelin afirma que:

"o charlatanismo marxista reside na terminante recusa de dialogar com o argumento etiológico de Aristóteles, isto é, com o problema de que a existência do homem não provém dele mesmo, mas do plano divino da realidade" (2007, p. 84).

O diagnóstico da alienação feito por Voegelin em relação a Marx é certeiro ao afirmar que sua trapaça intelectual "pretendia sustentar uma ideologia que lhe permitisse apoiar a violência contra seres humanos afetando indignação moral" (2007, p. 83).

A alienação é um processo de justificação da violência por meio de idéias racionalizadoras, é a legitimação da criação de bodes expiatórios a serem sacrificados no altar da ideologia.

A alienação perante a realidade concreta, por meio da eleição de uma irrealidade de idéias, torna-se característico das ideologias e dos ideólogos que produzem a "destruição da linguagem, ora no nível do jargão intelectual de alto grau de complexidade, ora no nível vulgar" (2007, p. 82).

Voegelin define que é necessária a honestidade intelectual (Intellektuelle Rechtschaffenheit), compreendida como a "intenção honesta de examinar a estrutura da realidade" (2007, p. 79), para que seja possível restaurar a linguagem, e para combater a alienação ideológica que fundamenta a ação direta, que hoje é facilmente identificável no fenômeno do politicamente correto.

O problema etiológico é o problema fundamental a ser resgatado, como o centro de qualquer debate, pois a negação da causalidade implica na constituição, e, na defesa, de idéias céticas e abstracionistas, que tomam o conceito e o juízo abstrativos da concretude do real, como realidades independentes da experiência.

A alienação, por meio da exasperação da razão, que cria quimeras de irrealidade conceitual, é a negação violenta dos limites impostos pelo real, cujo problema etiológico é o ponto de partida fundamental.

Alienação é o fruto, psicológico e intelectual, do ideário que promete o impossível como algo factível, tal qual se dá no caso da ideologia do socialismo, que pretende recriar o cosmos sem dor, sofrimento e desigualdade, e, que, por fim, só é capaz de conceder a igualdade no sofrimento e na morte.

[1] Ortega y Gasset define que "Mimar é não limitar os desejos, dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido, que não é obrigado a nada" (1987, p. 77)

Referências:

Ortega y Gasset, José. A rebelião das massas; tradução de Marylene Pinto Michael; revisão da tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro - São Paulo: Martins Fontes, 1987.

Voegelin, Eric. Reflexões autobiográficas; introdução e edição de textos de Ellis Sandoz; tradução de Maria Inês de Carvalho; notas de Martins Vasques da Cunha - São Paulo: É Realizações, 2007.

Girard, René. A rota antiga dos homens perversos; tradução Tiago José Leme - São Paulo: Paulus, 2009.

domingo, 23 de julho de 2017

O MITO, O SÍMBOLO E O SALTO NO SER

Maat

Eric Voegelin define que o "homem é consubstancial com a realidade que experiencia", e que o "centro da consciência" é a experiência da participação compreendida como a realidade do contato com a realidade exterior ao homem (p. 114), realidade esta que se manifesta no "horizonte da nossa existência no mundo" que inclui a multiplicidade das possibilidades de participação na realidade natural, cultural, artística, religiosa, científica, etc, e, assim, "a  experiência é o que está entre o sujeito e o objeto da participação" (idem).

A experiência, portanto, é a comunicação que se dá no contato entre sujeito e objeto, por serem consubstanciais podem trocar informações, cujo idioma é a própria experiência transfigurada em símbolos.

A estrutura da realidade é algo que está em constante tradução experiencial, é um processo de criação permanente de símbolos, cujo início e fim não são visíveis no horizonte da experiência.

Voegelin adverte que quando alguém "constrói um sistema, a falsificação da realidade é [...] inevitável" (p. 119), uma vez que a participação engendra a experiência e esta é percebida por meio de símbolos, que são conjuntos de idéias densamente compactadas, portanto, inabarcáveis por simplificações sistematizadoras, uma vez que os princípios, que permitem a construção de sistemas, são idéias parciais e derivadas que nascem dos próprios símbolos.

Os símbolos são fenômenos de linguagem engendrados pelo processo da experiência de participação, e são gerados pelo encontro entre o humano e o divino. A linguagem faz parte desse caráter de metaxo, ou Entremeio, da consciência. Os símbolos de linguagem que expressam uma experiência não são convenções sociais ou culturais, são testemunhos objetivos do processo de participação (p.116).

A abertura à realidade frutifica na experiência criadora de símbolos que comunicam as descobertas oriunda do processo de participação na criação.

Voegelin define que a ordem "é a estrutura da realidade como experenciada pelo homem, bem como a sintonia entre o homem e uma ordem não fabricada por ele ,isto é, a ordem cósmica" (p. 117), e, a ordem, quando descoberta, principia pela representação mitológica.

O mito é o símbolo da experiência que engendra toda e qualquer civilização, que surge da experiência de participação mediante a percepção de leis constantes na natureza, cuja divindade se materializa na realidade cósmica, fenômeno que implica em criação de símbolos panteístas, que em linguagem contemporânea descrevemos como a "mãe natureza".

A criação dos mitos cósmicos configuras-se no "salto no ser", cuja imanência determina que a existência humana está presa ao eterno retorno dos fenômenos deste mundo com a regularidade das estações do ano.

O próximo salto no ser descrito por Voegelin é a constituição do símbolo da história, cuja criação é relatada no Antigo Testamento.

A civilização histórica como a conhecemos é o resultado deste salto no ser transcendente que estabelece uma aliança entre o Logos e a humanidade, assim, estabelece-se o símbolo da história, e, ao ser humano é conferido um destino para além da história, é o símbolo do "destino" e da "liberdade", para além deste mundo, tal percepção é a origem da moral e da ética como a compreendemos, pois o juízo final é o julgamento da história da alma transcendente, é um testemunho perante a eternidade.

Eric Voegelin, Reflexões Autobiográficas. É Realizações: São Paulo, 2007.