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sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

COM A INTELIGÊNCIA SENTIMOS, DESEJAMOS, DECIDIMOS E INVESTIGAMOS



A inteligência é uma harmonia musical composta de sentimento, desejo, vontade e razão.

A filosofia moderna reduziu-se a considerar a inteligência como o mero exercício do elemento racional, e, pior, somente considera o aspecto racional em sua forma discursiva, como se palavras e abstrações mentais fossem realidades mais tangíveis que a própria realidade concreta.

A chave teórica dos quatro discursos, proposta por Olavo de Carvalho, nos habilita a afirmar que a inteligência principia pelo sentimento, que é um fruto direto da percepção estabelecida no contato com a realidade concreta em seu nível empírico e intuitivo, que possibilita o desenvolvimento do discurso mito-poético, esta linguagem do ponto vista antropológico recebe um forte aporte quando enfocado pela teoria mimética de René Girard.

A poética é forma inicial da linguagem que processa a percepção primária em formas imaginativas de representação simbólica do real, é o salto no ser descrito por Eric Voegelin, justamente por ser a forma que mais entra em contato com o esplendor da criação, e de onde se origina a linguagem simbólica grávida de significados, cujos infinitos sentidos são decantados nos demais níveis da linguagem.

O desejo de se impor perante seus pares é o instinto humano essencial, e, com base em posturas que postulam a dominância nas relações interpessoais cria-se a linguagem retórica, que nada mais é que o domínio da linguagem para defesa de interesses e objetivos pessoais na luta pelo poder social.

Mas, como necessitamos viver em sociedade, e como há resistências que devem ser vencidas constantemente, e, constata-se que quando é excluída a possibilidade de exercício da força e da violência pura e simples, há a necessidade de ser estabelecido um acordo de vontades para possibilitar o confronto controlado (dialético) das retóricas.

O objetivo de obter o consenso é o de estabelecer instituições que dependem de trocas e acordos possibilitadores do convívio em sociedade, assim, a vontade de coexistir deverá obter meios de gerenciar os desejos e os sentimentos interindividuais para possibilitar a discussão civilizada e política, este é padrão da linguagem dialética, o meio pela qual a linguagem investiga a realidade e obtém padrões conceituais e de conduta que podem ser aceitos como verdades estabelecidas e são condições de possibilidade para sobrevivência da comunidade.

A linguagem dialética é fértil por adotar o referido modelo investigativo, que imprime o hábito da racionalidade no processo de discussão de fenômenos e idéias, e, quanto mais aperfeiçoado o método dialético, mais clareza se obtém na formulação de conceitos e descrições de fatos, ao ponto de estabelecer certezas que influirão no processo de criação da própria ciência.

Prosseguindo-se nesse processo revelam-se os marcos práticos e teóricos da razão, que na posse das premissas reveladas nas etapas anteriores, é capaz de promover raciocínios silogísticos, que instrumentalizam a linguagem lógica, que é a forma de expressão do conhecimento científico, mas sua base é o processo de investigação dialética.

Ora, o momento decisório é a situação na qual há necessidade de se obter algum nível de certeza, a ciência bem estabelecida é tal qual uma arte premonitória, pois estabelece corretamente as relações de causa e efeito, que são tão bem expressas pelas estruturas silogísticas.

Sentimos, desejamos, decidimos e investigamos a realidade com nossa inteligência, pois é inegável que nunca deixaremos de nos deleitar em contemplar o arranjos que presenciamos na criação.

Werner Nabiça Coêlho

domingo, 20 de agosto de 2017

O SÍMBOLO GERA O RITO E O MITO



O símbolo, até onde entendi com base em Eric Voegelin e René Girard, é a fonte primária da linguagem como participação em realidades fundamentais à existência humana.

A primeira realidade fundamental que tem que ser apreendida é a necessidade de autocontrole social da violência, e, nas origens da humanidade tal fato social se configura mediante a necessidade do respeito ao sagrado e à divindade, o princípio do respeito às hierarquias dentro da realidade humana e divina, para que haja uma ordem capaz de conter os riscos inerentes à eclosão da violência sem limites em um ciclo sem fim de destruição.

O mecanismo mimético, quando encontra sua solução pacificadora no bode expiatório, a vítima simboliza o significado divino daquele que é portador do malefício e do benefício, é o algoz e o benfeitor.

A violência social ao ser pacificada pela violência do sacrifício, esta capaz de ordenar o caos daquela, assume, assim, um significado diferenciador, torna-se um símbolo, em que morte da vítima possibilita a instituição de uma ordem sagrada porque foi eficaz, é um ato fundador.

A vítima concentra em si o bem e o mal inerentes à violência da comunidade, o rito é a religação à esta estrutura fundadora de significado, na forma de um conjunto de ações e reações, expressões, sons e memórias que nem precisam estar verbalizadas, basta que sejam reproduzíveis.

É o rito que, ao reproduzir continuamente o sacrifício (por séculos, por milênios), funciona como a primeira forma cultural, na qual o símbolo (rito) é um dado empírico e concreto, necessário para a manutenção da ordem sagrada que afasta o caos da violência sem freios e sem diferenciação, e este símbolo é representado no rito que conduz à vítima sacrificial.

Com o tempo, o rito se estrutura linguisticamente e favorece a criação da narrativa mítica, pois sua repetição permite a paz necessária para a sociedade desenvolver a língua e o vocabulário com base na estabilidade criada por meio do próprio rito.

A vítima se converte no deus e/ou no herói, neste sentido, o símbolo nem verbal é em sua origem, e quando se torna verbalizável, origina a linguagem poética na forma de narrativas sagradas, os mitos.

Werner Nabiça Coêlho - 20/08/2017

sábado, 12 de agosto de 2017

MEDICINA, FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA E ÉTICA: A DESCOBERTA DO RACIONALISMO ETIOLÓGICO






Aos dezesseis anos, por conta de um trabalho escolar cobrado pela professora Yeda, à época uma mocinha, que ministrou a disciplina filosofia, no início do primeiro ano do segundo grau, li, pela primeira vez, a Apologia de Sócrates, e, desde então, tenho cultivado campos interiores de conhecimento por puro deleite e prazer.

Esta experiência casual, possibilitada pela escola marista Nossa Senhora de Nazaré, de Belém do Pará, ocorreu por um feliz acidente, dado que somente houve aula de filosofia no primeiro ano, depois, sumiu do mapa do resto do meu segundo grau,  mas, direcionou-me a curiosidade para a filosofia.

Antes desta experiência, o gosto que me dominava voltava-se exclusivamente para o estudo de história e política, e, rememoro, ainda, quando aos seis anos de idade, ao estudar sobre Pedro Álvares Cabral questionava meu pai sobre o que veio antes do Brasil, ou seja, o início de Portugal, e o velho respondia que o Reino de Portugal fora fundado pelo Rei Affonso Henriques lá pelo ano de mil cento e alguma coisa, e, como moleque enjoado que eu era, continuava: e antes de Portugal existir? E antes dos romanos? De fato, desde novo era um chato!

Passados tantos anos, ainda me deixo ser assaltado pelo espanto e pela admiração, quando percebo algo óbvio, ou que deveria sê-lo, que se encontrava encoberto, pelas névoas dos vales de ignorância, que campeiam por entre os pequenos morros de conhecimento, que tenho erguido ao longo da vida, elevações sobre as quais subo para tentar contemplar um pouquinho mais longe, para aplacar a bendita e insubmissa curiosidade que me aflige, ao mapear a topografia de minha ignorância conforme a cartografia ensinada pelo Mestre Olavo de Carvalho.

Um dos últimos sustos que sofri foi descobrir, no sentido de compreender, o termo filosófico racionalismo etiológico, termo técnico que designa a busca racional pelas origens.

A luz sobre a etiologia se fez quando vi Voegelin descrever o argumento etiológico [01], o problema filosófico fundamental, não enfrentado, e, até mesmo ignorado, pela filosofia moderna.

Fixei esta luminosidade mentalmente, e, assim, pude compreender melhor a observação de Reale e Antiseri, já lida a algum tempo atrás, de que a medicina hipocrática foi a criadora do racionalismo etiológico [02].

O racionalismo que se fundamenta na busca da origem do problema foi o que possibilitou o nascimento e o desenvolvimento da ciência médica e das demais ciências.

A obviedade de aprender tal terminologia está no fato de que a busca das origens é o que sempre me impulsionou: - Sou, portanto, um racionalista etiológico!

Nesta busca etiológica, tenho estudado algumas hipóteses sobre origens, seja da linguagem ou da sociedade, do fenômeno jurídico ou filosófico, etc.

E ao atinar sobre a importância do argumento etiológico, e a metodologia que lhe é inerente, que se opera com base no conceito de racionalismo etiológico, pude perceber o quanto a medicina hipocrática foi fundamental ao unificar os conceitos da filosofia pré-socrática, ou filosofia da physis, por meio de críticas e articulações com a realidade, numa teoria médica com fundamentos filosóficos e éticos.

A medicina hipocrática originou-se da mentalidade científica criada pela filosofia da physis [03], como bem se pode observar nesta passagem da obra hipocrática A Teoria do Homem, em que se realiza a refutação da teoria de que o homem seria originado de um único elemento:

Quem costuma ouvir aqueles que falam sobre a natureza humana, além do que concerne à medicina, para ele, este discurso não é interessante de ser ouvido. Digo, pois, não ser o homem, por completo, nem ar, nem fogo, nem água, nem terra, nem nenhum outro elemento que não é manifesto no interior do próprio homem. Mas deixo de lado aqueles que querem falar tais coisas. [04]

Reale e Antiseri referem-se à contribuição da particular agudeza argumentativa, herdada dos sofistas e bem visível em alguns tratados hipocráticos [05], influência que bem podemos exemplificar nestas passagens de A Teoria do Homem na qual se define o caráter composto e variado da natureza humana, com base em argumentos lógicos fundados na realidade empírica:


[...] se o homem fosse uma unidade, nunca sofreria. Pois, sendo uma unidade, não haveria por que sofrer. Se realmente sofre, é necessário que haja também um único medicamento. Mas há muitos, pois há muitas substâncias no corpo, as quais, quando, contra a natureza, mutuamente se esfriam e se esquentam, e se secam e se umedecem, geram doenças; de tal modo que muitas são as formas (idéiai) de doenças e seus tratamentos vários [06]

Apresentarei provas e apontarei as necessidades graças as quais cada substância aumenta e diminui dentro do corpo [07]

Além deste aporte filosófico e científico, houve um forte fator ético, inspirado na sacralidade da vida humana, simbolizado pelo famoso juramento de Hipócrates que no dizer de Reale e Antiseri é uma proposta simples que, em termos modernos, poderíamos expressar assim: médico, lembra-te de que o doente não é um coisa ou um meio, mas um fim, um valor, e portanto comporta-te em decorrência disso [08].

Assim, a medicina, ao nascer e se desenvolver, inspirou a filosofia ética de Sócrates e Platão, e prosseguiu sua influência, tanto no aspecto ético quanto no científico, principalmente, no filho do médico Nicômaco: Aristóteles.

Reale e Antiseri relatam que a criação da medicina hipocrática [...] nascida da mentalidade filosófica, estimulou a especulação filosófica [09] e citam Jaeger:

Não se exagera quando se diz que a ciência ética de Sócrates, que ocupa o centro da disputa nos diálogos platônicos, não teria sido possível ser pensada sem o modelo da medicina, a qual Sócrates se remete tão frequentemente. A medicina lhe era mais afim do qualquer outro ramo do conhecimento humano então conhecido, inclusive a matemática e as ciências naturais [10].
A filosofia pré-socrática, associada à técnica da argumentação racional desenvolvida pela sofística, possibilitaram o desenvolvimento da teoria e da técnica da medicina hipocrática, cujas consequências sociais e éticas estimularam a especulação socrática, e, assim sendo, a filosofia da ética e da ciência tal como a conhecemos, em sua manifestação fundamental de racionalismo etiológico.

Notas:

[01] "[...] o charlatanismo marxista reside na terminante recusa de dialogar com o argumento etiológico de Aristóteles, isto é, com o problema de que a existência do homem não provém dele mesmo, mas do plano divino da realidade" (VOEGELIN, 2007, p. 84).

[02] “[...] é no âmbito do racionalismo etiológico por ela criado, que pôde nascer, autodefinir-se e desenvolver-se a ciência médica (assim como as demais ciências)." (REALE E ANTISERI, 1990, p. 114).

[03] REALE E ANTISERI, 1990, p. 113.

[04] CAIRUS, 2005, p. 42.

[05] REALE E ANTISERI, 1990, p. 114.

[06] CAIRUS, 2005, p. 42.

[07] CAIRUS, 2005, p. 43.

[08] REALE E ANTISERI, 1990, p. 118-9.

[09] REALE E ANTISERI, 1990, p. 114.

[10] REALE E ANTISERI, 1990, p. 115.

Referências:

CAIRUS, Henrique F. “Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença”. Henrique F. Cairus e Wilson A. Ribeiro Jr. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005, 252 p. (Coleção História e Saúde)

REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: PAULOS, 1990 (Coleção filosofia)

VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas; introdução e edição de textos de Ellis Sandoz; tradução de Maria Inês de Carvalho; notas de Martins Vasques da Cunha - São Paulo: É Realizações, 2007.

terça-feira, 25 de julho de 2017

A ALIENAÇÃO É A RAZÃO EXASPERADA NO POLITICAMENTE CORRETO


A “deusa razão”, representada por uma prostituta, sendo carregada pelas ruas de Paris



Voegelin, Girard e Ortega y Gasset demonstram a necessidade de se reconquistar o significado ontológico dos símbolos.

Eric Voegelin identificou a gênese do conceito de alienação (allotiosis) na filosofia estóica, e a definiu como "um estado de retirada do próprio eu [...] um recuo da razão na existência" (2007, P. 118), fenômeno que causa em sua vítima uma profunda perda de sentido na existência humana, todavia, mesmo quando a função racional perde seu sentido superior, de buscar o sentido da vida humana no interior da realidade, a racionalidade permanece como uma ferramenta de justificação do próprio estado de alienação, mediante a racionalização da própria alienação.

O estado de alienação é, portanto, o império da violência sobre a razão, que legitima a vingança interminável, típico de crises miméticas, e, conforme a chave explicativa da teoria mimética há no ser humano uma tendência de racionalização dos motivos irracionais desencadeadores da sucessão de retaliações típicos da vingança, em que a violência desenfreada retroalimenta-se mediante o uso da lógica da reciprocidade, uma justificação sem fim até ao ponto da virtual autodestruição do corpo social na indiferenciação da violência, cuja solução de continuidade, eventualmente, é alcançada com o sacrifício de um para salvar a todos, o bode expiatório, o que nas sociedades arcaicas significou a criação do primeiro símbolo diferenciador, ao mesmo tempo nefasto e sagrado, pois a vítima representava ao mesmo tempo o bem que encerra o conflito e o mal que o iniciou, o sagrado e a violência.

René Girard, de forma análoga a Voegelin, descreve a necessidade de uma "teoria genética" que remeta à estrutura do real, na qual a linguagem simbolizada pelo rito sacrificial é uma metáfora da violência humana, que se não for ordenada e sacralizada implicará na libertação dos demônios da vingança sem medidas, o rito torna-se o símbolo da violência domesticada pela linguagem metafórica dos símbolos, e por isso adverte que:

[...] a teoria vitimária não confunde grosseiramente a perseguição espontânea com os sacrifícios rituais, mas permite que se descubra uma relação ao mesmo tempo metafórica e real entre a perseguição espontânea e todos os sacrifícios. A relação é metafórica, pelo de que todo gesto ritual consiste numa substituição da vítima, e real, pelo fato de que a vítima substituída também é imolada, mais do que nunca bode expiatório. (2009, p. 121)

A alienação que racionaliza a violência faz surgir o procedimento político da ação direta, que é descrita por Ortega y Gasset como a forma típica de atuação do homem-massa.

Ação direta é o outro nome de racionalização dos meios violentos para obtenção de resultados políticos e sociais, o que torna a linguagem uma arma de guerra social, e, assim, surge a necessidade de policiamento da própria fala e padronização de seu uso e "porte" como ocorre no fenômeno do "politicamente correto", em que a verdade é sacrificada no altar da opinião predominante.

Ortega y Gasset descreve a alienação do homem-massa ao descrever sua falta de percepção da realidade, uma vez que "o homem vulgar, ao se encontrar com este mundo técnica e socialmente tão perfeito, pensa que foi criado pela Natureza, e nunca se lembra dos esforços geniais de indivíduos excepcionais que a sua criação pressupõe" (1987, p. 76).

Cria-se, assim, um perfil humano mimado e irresponsável [1] que de forma violenta "não quer dar razão nem quer ter razão, mas que, simplesmente, mostra-se decidido a impor suas opiniões" (1987, 89), que "renuncia à convivência de cultura, que é uma convivência regida por normas, e se retrocede a uma convivência bárbara".

O homem-massa é tipo humano alienado da realidade e portador de um "hermetismo da alma, que [...] empurra a massa para que intervenha em toda a vida pública, também a leva, inexoravelmente, a um procedimento único: a ação direta" (idem, p. 90). Ortega y Gasset ressalta que a violência implicada na ação direta é a "razão exasperada" (idem).

A alienação é a razão exasperada, e, tal como Voegelin descreve, é o abandono da compreensão da realidade como uma "tensão entre o humano e o divino", e, sistemas, como o de Hegel, são a "sistematização de um estado de alienação", uma vez que há a rejeição da "razão divina", por meio da "revolta egofânica", e de forma emblemática esclarece que: 

"Não é possível se revoltar contra Deus sem se revoltar contra a razão e vice versa" (2007, p. 118).

É da tensão entre o humano e o divino que emerge a ordem, que de forma eficaz conserva a experiência humana, com o grau de sentido necessário à sua perpetuação.

As idéias são um desenvolvimento conceitual secundário, pois segundo Voegelin "as idéias transformam os símbolos, que existem para expressar experiências, em conceitos" (2007, p. 121).

O símbolo é o ente originário da linguagem, cuja gênese analoga em forma de representação uma experiência, cujo sentido e significado é o produto da tensão do humano que se depara com as qualidades, cósmica (material) e divina (espiritual), da realidade. 

O símbolo é a substância da linguagem dos mitos, e das revelações religiosas, enquanto que a criação de hipóteses e teses explicativas é oriunda da interpretação do significado secundário dos símbolos, processo hermenêutico que promove o desenvolvimento de conceitos, que com o tempo acabam sendo encarados, os conceitos, como integrantes de uma realidade abstrata e apartada da própria realidade da experiência, como se a unidade do real pudesse ser partida ao meio com uso da linguagem, e, como se houvesse "uma outra realidade que não a realidade da experiência" (2007, p. 121).

A negação da realidade como experiência viva e concreta, e a mera percepção conceitual e abstrata, que julga a existência de conceitos e idéias, como algo com uma existência à parte, é o fruto da ação deformadora das idéias sobre a "verdade da experiência" e "sua simbolização" (2007, p. 121).

Voegelin definiu que devemos distinguir a "experiência compacta do cosmos" ou "experiência primária do cosmos" das "diferenciações" que levam "à verdade da existência no sentido dos clássicos gregos, dos profetas de Israel e do cristianismo primitivo" (2007, p. 122), e, para caracterizar a transição entre verdade compacta e a verdade diferenciada na história da consciência cunhou o termo "salto no ser".

A definição de experiência compacta no cosmos, como criação de símbolos primários, casa muito bem com a definição de crise mimética, no âmbito da teoria de René Girard, uma vez que é do processo da indiferenciação violenta no âmbito do mecanismo mimético, que se cria o bode expiatório, que, assim, cria o símbolo que interrompe a mimesis violenta, com a instituição do rito sacrificial, que é a repetição do assassinato fundador.

A teoria mimética descreve a gênese do bode expiatório como a gênese do símbolo diferenciador, que favorece a constituição da estabilidade social necessária para a instituição da própria linguagem, cujo símbolo fundador é o próprio bode expiatório.

Voegelin presume em sua teoria uma experiência primária, que cria símbolos cosmológicos e compactos, que estabelecem o lugar do homem na criação, sendo o bode expiatório, na perspectiva mimética, este símbolo, que, ao possibilitar a criação do rito ,permitiu a experiência que engendrou a gênese dos símbolos, que, posteriormente, criou o ambiente social em que a racionalização conceitual possibilitou o "salto no ser", por meio da constituição de símbolos diferenciadores na história da consciência. Voegelin adverte que a:

"transformação das experiências e simbolizações originais em doutrinas podia conduzir a uma deformação da existência, caso o contato com a realidade tal como experienciada fosse perdido e o uso dos símbolos de linguagem engendrados pelas experiências e simbolizações originais degenerasse em um jogo[...]" (2007, p. 123)

O princípio orientador para Voegelin é que "a realidade da experiência é autoevidente. Os homens valem-se de símbolos para expressar suas experiências, e os símbolos são a chave para compreender essas experiências" (2007, p. 124), uma vez que o que "é experienciado e simbolizado como realidade, e um processo de progressiva diferenciação, é a substância da história" (idem).

A alienação, portanto, é uma exasperação da razão, que promove o processo de descolamento das idéias do tecido da realidade, perdendo-se a manifestação da unidade com o real presente na linguagem dos símbolos, pois a linguagem ideológica destrói a diferenciação conquistada a duras penas pelas gerações anteriores, é o primitivismo criticado por Ortega y Gasset.

O império de idéias abstratas não mais busca fundamento na realidade da experiência, e em sua complexidade, é o imperialismo da abstração que julga a realidade de forma simplificadora, é a hipótese idealista, que, com a força do negativo, impõe-se contra a substância do real. A alienação é a negação da realidade autoevidente, é a negação do senso comum constituído por símbolos representativos da realidade, em sua profundidade histórica e diferenciada.

Para exemplificar o processo de alienação Voegelin refere a excelente formação filosófica de Marx, e que o mesmo "sabia que o problema da etiologia na existência humana era central para uma filosofia do homem e que, se quisesse destruir a humanidade do homem fazendo dele um "homem socialista", precisava repelir a todo o custo o problema etiológico. (2007, p. 84).

O problema etiológico é o problema da origem de tudo, é colocação da questão da causalidade, é a percepção de que tudo possui uma causa anterior, até que se chega à causa primeira, e, neste ponto Voegelin afirma que:

"o charlatanismo marxista reside na terminante recusa de dialogar com o argumento etiológico de Aristóteles, isto é, com o problema de que a existência do homem não provém dele mesmo, mas do plano divino da realidade" (2007, p. 84).

O diagnóstico da alienação feito por Voegelin em relação a Marx é certeiro ao afirmar que sua trapaça intelectual "pretendia sustentar uma ideologia que lhe permitisse apoiar a violência contra seres humanos afetando indignação moral" (2007, p. 83).

A alienação é um processo de justificação da violência por meio de idéias racionalizadoras, é a legitimação da criação de bodes expiatórios a serem sacrificados no altar da ideologia.

A alienação perante a realidade concreta, por meio da eleição de uma irrealidade de idéias, torna-se característico das ideologias e dos ideólogos que produzem a "destruição da linguagem, ora no nível do jargão intelectual de alto grau de complexidade, ora no nível vulgar" (2007, p. 82).

Voegelin define que é necessária a honestidade intelectual (Intellektuelle Rechtschaffenheit), compreendida como a "intenção honesta de examinar a estrutura da realidade" (2007, p. 79), para que seja possível restaurar a linguagem, e para combater a alienação ideológica que fundamenta a ação direta, que hoje é facilmente identificável no fenômeno do politicamente correto.

O problema etiológico é o problema fundamental a ser resgatado, como o centro de qualquer debate, pois a negação da causalidade implica na constituição, e, na defesa, de idéias céticas e abstracionistas, que tomam o conceito e o juízo abstrativos da concretude do real, como realidades independentes da experiência.

A alienação, por meio da exasperação da razão, que cria quimeras de irrealidade conceitual, é a negação violenta dos limites impostos pelo real, cujo problema etiológico é o ponto de partida fundamental.

Alienação é o fruto, psicológico e intelectual, do ideário que promete o impossível como algo factível, tal qual se dá no caso da ideologia do socialismo, que pretende recriar o cosmos sem dor, sofrimento e desigualdade, e, que, por fim, só é capaz de conceder a igualdade no sofrimento e na morte.

[1] Ortega y Gasset define que "Mimar é não limitar os desejos, dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido, que não é obrigado a nada" (1987, p. 77)

Referências:

Ortega y Gasset, José. A rebelião das massas; tradução de Marylene Pinto Michael; revisão da tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro - São Paulo: Martins Fontes, 1987.

Voegelin, Eric. Reflexões autobiográficas; introdução e edição de textos de Ellis Sandoz; tradução de Maria Inês de Carvalho; notas de Martins Vasques da Cunha - São Paulo: É Realizações, 2007.

Girard, René. A rota antiga dos homens perversos; tradução Tiago José Leme - São Paulo: Paulus, 2009.

domingo, 23 de julho de 2017

O MITO, O SÍMBOLO E O SALTO NO SER

Maat

Eric Voegelin define que o "homem é consubstancial com a realidade que experiencia", e que o "centro da consciência" é a experiência da participação compreendida como a realidade do contato com a realidade exterior ao homem (p. 114), realidade esta que se manifesta no "horizonte da nossa existência no mundo" que inclui a multiplicidade das possibilidades de participação na realidade natural, cultural, artística, religiosa, científica, etc, e, assim, "a  experiência é o que está entre o sujeito e o objeto da participação" (idem).

A experiência, portanto, é a comunicação que se dá no contato entre sujeito e objeto, por serem consubstanciais podem trocar informações, cujo idioma é a própria experiência transfigurada em símbolos.

A estrutura da realidade é algo que está em constante tradução experiencial, é um processo de criação permanente de símbolos, cujo início e fim não são visíveis no horizonte da experiência.

Voegelin adverte que quando alguém "constrói um sistema, a falsificação da realidade é [...] inevitável" (p. 119), uma vez que a participação engendra a experiência e esta é percebida por meio de símbolos, que são conjuntos de idéias densamente compactadas, portanto, inabarcáveis por simplificações sistematizadoras, uma vez que os princípios, que permitem a construção de sistemas, são idéias parciais e derivadas que nascem dos próprios símbolos.

Os símbolos são fenômenos de linguagem engendrados pelo processo da experiência de participação, e são gerados pelo encontro entre o humano e o divino. A linguagem faz parte desse caráter de metaxo, ou Entremeio, da consciência. Os símbolos de linguagem que expressam uma experiência não são convenções sociais ou culturais, são testemunhos objetivos do processo de participação (p.116).

A abertura à realidade frutifica na experiência criadora de símbolos que comunicam as descobertas oriunda do processo de participação na criação.

Voegelin define que a ordem "é a estrutura da realidade como experenciada pelo homem, bem como a sintonia entre o homem e uma ordem não fabricada por ele ,isto é, a ordem cósmica" (p. 117), e, a ordem, quando descoberta, principia pela representação mitológica.

O mito é o símbolo da experiência que engendra toda e qualquer civilização, que surge da experiência de participação mediante a percepção de leis constantes na natureza, cuja divindade se materializa na realidade cósmica, fenômeno que implica em criação de símbolos panteístas, que em linguagem contemporânea descrevemos como a "mãe natureza".

A criação dos mitos cósmicos configuras-se no "salto no ser", cuja imanência determina que a existência humana está presa ao eterno retorno dos fenômenos deste mundo com a regularidade das estações do ano.

O próximo salto no ser descrito por Voegelin é a constituição do símbolo da história, cuja criação é relatada no Antigo Testamento.

A civilização histórica como a conhecemos é o resultado deste salto no ser transcendente que estabelece uma aliança entre o Logos e a humanidade, assim, estabelece-se o símbolo da história, e, ao ser humano é conferido um destino para além da história, é o símbolo do "destino" e da "liberdade", para além deste mundo, tal percepção é a origem da moral e da ética como a compreendemos, pois o juízo final é o julgamento da história da alma transcendente, é um testemunho perante a eternidade.

Eric Voegelin, Reflexões Autobiográficas. É Realizações: São Paulo, 2007.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

EXPERIÊNCIA É A REALIDADE DE AMBAS AS PRESENÇAS, HUMANA E DIVINA





Eric Voegelin define que a "experiência é o que está entre o sujeito e o objeto da participação" que remete ao conceito platônico de "metaxo", o Entremeio, que está entre o pólo do homem e o da realidade, pois a  "experiência não está no sujeito nem no mundo dos objetos".


Voegelin esclarece que a experiência resulta do fluxo entre o divino e o humano presente no Entremeio, e, assim, a "experiência é a realidade de ambas as presenças, humana e divina, e só depois de acontecer é que ela pode ser atribuída seja à consciência do homem, seja ao contexto da divindade com o nome de revelação".

Os erros filosóficos são definidos por Voegelin como decorrentes de suposições falsas na quais os pólos da experiência são considerados "entidades autônomas, encerradas em si mesmas, que estabelecem um misterioso contato entre si mesmas, que estabelecem um misterioso contato entre si na ocasião de uma experiência" (p. 115), este fenômeno intelectual é denominado de "hipóstase", neste passo, pode-se definir que "a coisa em si" é uma hipóstase, que julga a mente e o cosmos entidades autônomas que se comunicação em razão de um misteriosa capacidade da mente de ordenar dados aleatórios do meio circundante.


Voegelin  conclui que o "problema da realidade experienciada passa a ser o problema de um fluxo de realidade participativa, em que a realidade passa a iluminar-se a si mesma na consciência humana".

A participação experiencial na realidade, com a compreensão de suas manifestações simultâneas na natureza e na sobrenatureza, é um dos métodos possíveis para a superação da bifurcação hipostática da modernidade, resultante do ceticismo cartesiano que postula a divisão entre mente e realidade, na qual o pólo do sujeito é a "hipóstase" na qual o ego que pensa é considerado autônomo.

Referência:

Eric Voegelin, Reflexões Autobiográficas, pp. 114-5

domingo, 18 de junho de 2017

ÁGORA VIRTUAL: DIÁLOGO SOBRE NÚMEROS MATEMÁTICOS

Ágora de Atenas
Introdução: tendo em vista que a internet é a nova Ágora, e que ao passearmos por esta praça virtual, em que se comercializam produtos e idéias, tecemos com amigos espacialmente longínquos interessantes redes de pensamentos, e, por sermos seres caridosos e benevolentes, divulgamos o diálogo abaixo transcrito, ocorrido entre os dias 17 e 18 de Junho de 2017, no qual são tratados alguns aspectos sobre a natureza dos números, numa apreciação filosófica do tema, com base em um referencial que "olavetes" amam:


Fórmulas

Werner Nabiça Coêlho: O número é uma pequena forma, uma fórmula, que reduz uma realidade extremamente mais complexa. 

 
Monteiro Haroldo: Mas, para se tornar um símbolo, precisa ter se apreendido meio mundo, invisível aos matemáticos atuais.

 
Werner Nabiça Coêlho: Num certo sentido os símbolos em estado bruto abundam, só não são percebidos como tais, cada vez que surge uma dízima periódica há um símbolo do infinito matemático, que na verdade é um desafio que a realidade impõe ao estudioso, pois uma coisa é mensurabilidade matemática, outra a mensurabilidade hilemórfica, pois as formas não são meramente quantitativas.


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Idiomas
 
Werner Nabiça Coêlho: A matemática é um tipo de idioma que aborda a realidade com uma linguagem redutora dos objetos a seus aspectos quantitativos, com base numa abstração operada por símbolos, que significam quantidade mensuradas de forma discreta.

 
Monteiro Haroldo: Por isso que no fim, a linguagem matemática pode ser retraduzida em modo simbólico.

Da velha cadeia platônica do mito se extrai os conceitos, e, no limite dos conceitos, a única saída é a formulação de novos mitos.
 
O que o Voegelin denominara de realidade é realidade coisa. A área conceptual da realidade é mais reduzida do que muitos pensam.
 
No fundo a linguagem poética tem muito mais abrangência, e é sempre imprescindível para ampliação do horizonte conceitual.
 
Os filósofos sempre compreendem o que os poetas intuíram primeiramente.
 
Acho que o Zubiri, não sei se estou fugindo do tema, matou a charada quando percebeu que o sentir e o inteligir são um só e único processo indivisível no plano do discurso humano, esse processo se torna mais evidente com a teoria dos quatro discursos, ou da compactação e descompactação de Consciência Noética do Voegelin, explicam bem isso.
 
Acho até que a Filosofia da Crise do Mário, a Presença do Ser do Lavelle, a Teoria dos Quatro Discursos do professor Olavo, a Teoria da Consciência Noética do Voegelin e a Trilogia Senciente do Zubiri chegaram ao ápice de uma possibilidade conceitual que, ao meu ver, são a antessala para uma nova filosofia da história.
 
Deus queira que eu não esteja enganado!

Pois só com uma nova visão da teoria da história será possível sairmos desse interregno da era das ideologias e dar à Igreja Católica a possibilidade do domínio da cultura!
 

Werner Nabiça Coêlho: Eu acrescento a este cabedal teórico o aspecto antropológico do mimetismo de René Girard, que refere-se à constituição ritual dos símbolos da própria fala, e apresenta uma hipótese evolutiva dessa transição entre o sentir e o inteligir, e do nascimento da própria poética como uma manifestação primária do sagrado.


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Abstrações

Werner Nabiça Coêlho: Há um permanente processo de raciocínio lógico na matemática, pois a sua própria aceitação necessita de alguns passos que podem ser enumerados assim:

a) abstração de uma realidade concreta e contínua por meio de criação de um símbolo que representa uma determinada quantidade discreta e abstrata, o conceito de número;

b) criação de um idioma específico (figuras geométricas, números romanos, números árabes) que traduzam os conceitos em padrões transmissíveis de linguagem;

c) descrição de fenômenos e hipóteses com base no princípio quantitativo e abstrato, por meio de sofisticados processos de raciocínios lógicos.

 
Monteiro Haroldo: Eu não sei se é bem a criação de um símbolo, pois o símbolo tem sempre uma parte virtual e outra real bem ancorada a uma realidade referida.

Os números matemáticos me parecem, posso estar enganado, estritamente ideais, pois dizer que A=A é, em realidade, uma impossibilidade pura e simples, afinal não há nada que seja idêntico no devir, só a Deus se aplicaria então tal abstração de identidade que está na base do edifício matemático.
 
A matemática, fora da área de aplicação prática, é pura abstração. Não estou discutindo o que você disse, só apenas comunicando-lhe aqui uma questão que tenho, e que não está ainda bem resolvida.

 
Werner Nabiça Coêlho: Fizeste uma descrição do número que na metafísica representa a identidade, que é a unidade, que simboliza a não-contradição consigo mesmo, e, só para efeito de esclarecimento, quando refiro a símbolo matemático falo de conjuntos de unidades quantitativas, ao modo dos números euclidianos, e quando refiro ao idioma da matemática, estes são os símbolos gráficos, no resto é pura aplicação de lógica formal mesmo que opera a parte dos cálculos.

 
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Método

Werner Nabiça Coêlho: O método da ciência matemática é uma redução de um aspecto da realidade, basta lembrar que a matemática tem suas limitações, ela não é a ferramenta adequada para avaliações morais, ou estéticas, a matemática é uma forma especializada de avaliação de dados quantitativos.

 
Monteiro Haroldo: é realmente muito limitado e é um verdadeiro pedantismo moderno achar que o mundo físico pode ser ele totalmente matematizável.

Apesar de eu ver nesse símbolo da matematização da realidade, rebatido para o plano simbólico, até bem revelador sob certos aspectos geométricos bem evidentes.
 
O senso geral de harmonia, por exemplo, seja além do musical, que é plenamente matematizável, o pictórico, até certas núcleos de significado histórico, como o dos ciclos culturais, o fenômeno do cinesismo espacial e etc, parece-me ter no fundo de tudo algum "q" de matemático.

 
Werner Nabiça Coêlho:  Divertido é que a matemática tem algumas semelhanças com os diálogos platônicos, pois da mesma forma que estes nos levam aos mistérios das aporias, os cálculos de precisão nos encaminham para os campos do incomensurável, que nos força a recorrer a símbolos como o Pi, da mesma forma que Sócrates se referia aos mitos.

O cartesianismo reinante é uma aposta na materialidade mensurável, que se defronta permanentemente com dados incomensuráveis da realidade objetiva, a realidade refuta repetidamente o dogmatismo materialista da modernidade

 
Monteiro Haroldo: O Mário Ferreira dos Santos diz que uma tese que seja logicamente bem armada em premissas verdadeiras implicará em que a realidade não tardará em comprová-la, a realidade parece que tem um gosto de assim o fazer.

 
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Limites

Werner Nabiça Coêlho: Os limites da ciência matemática devem ser reconhecidos, para se evitar a utilização indevida em áreas na qual seu uso é inadequado, temos que lembrar os diversos aspectos da realidade não tangenciados pelo estudo meramente quantitativo.

 
Monteiro Haroldo: Sim, como o da moral. Apesar de que no fundo de toda realidade há uma certa geometria, portanto, uma ordem matemática superior, uma meta-matemática.

 
Werner Nabiça Coêlho: Pitágoras e Platão postularam a matemática das formas existentes na eternidade.

Aristóteles descreveu a transição de tais formas para a existência com base no conceito de hilemorfismo e enteléquia, oriundas de Deus, e o Wolfgang Smith descreve o mesmo fenômeno como causalidade vertical, este sentido da matemática é essencialmente o sentido da metafísica deísta tradicional, na qual o conjunto de todas as qualidades e quantidades e suas relações mútuas interagem para formar o número existencial de cada ser.

Isso não é número matemático no sentido moderno

 
Monteiro Haroldo: Sim, claro. Eu acho que nesse sentido o Mário Ferreira dos Santos chegou ao ápice.

 
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Ciência Pura

Werner Nabiça Coêlho: O caráter abstracionista é um axioma do processo de redução, operado na metodologia matemática, e demais metodologias científicas, afinal, é o estudioso que pretende traduzir em linguagem, seja em prosa, em verso, ou em matemática, um dado do real e não o contrário.

 
Monteiro Haroldo: Sim, mas dado as categorias aristotélicas, os axiomas já vem de certa forma fechando para uma univocação conceitual, pois, na medida em que o foco de linguagem vai se aperfeiçoando, subindo de nível, com a penetração do objeto, esse também vai delimitando os conteúdos de linguagem digna ou válida para a formulação dos seus princípios.

 
Werner Nabiça Coêlho: A ciência pura cria constantemente campos estritos e especializados, a técnica filosófica reúne os dados e confere um sentido global e interativo aos dados na busca do sentido superior e unificante, como ensina o Olavo de Carvalho.

sábado, 14 de janeiro de 2017

ERIC VOEGELIN: REFLEXÕES AUTOBIOGRÁFICAS - 02


Em suas Reflexões autobiográficas Eric Voegelin disserta a respeito do problema dos estudos comparados, como elemento "fundamental a aquisição de um ampla gama de conhecimentos", que promove "O necessário alcance empírico do conhecimento" que "é a base de toda a qualquer ciência social digna de nome" (p. 35), e, exemplifica o processo de construção de tal metodologia com as obras Declínio do Ocidente, de Oswald Spengler e História da Antiguidade, de Eduard Meyer, e destaca a importância de Toynbee.
Voegelin em 1922-1923 assistiu às aulas do curso de história da Grécia de Eduard Meyer, e julgo interessante transcrever a descrição de tais aulas:

"Entrava na sala - uma figura esguia, levemente curvada por conta da idade, cabelos emaranhados - , subia, posicionava-se no atril, ajeitava os braços, cerrava os olhos, e então falava por uma hora inteira, sem interrupções, em linguagem impecável, jamais cometendo um erro gramatical ou estilístico e não se confundindo em uma única sentença. Quando o sinal tocava, concluía a palestra, abria os olhos e se retirava. [...] tratava as situações históricas do ponto de vista dos homens engajados na ação. [...] Gosto de acreditar que a técnica de Meyer de compreender uma situação histórica pela forma como os indivíduos nela enredados a pensavam foi incorporada ao meu trabalho como um fator permanente " (p. 36).

Destaca, também, a influência de Alfred Weber, cujo curso de sociologia da cultura frequentou em 1929, como outro exemplo de prática de estudos comparados.

Voegelin frequentou o grupo cultural criado pelo poeta simbolista Stefan George, mas, o ponto mais importante está no que é dito de Karl Kraus "que nos dava a todos uma compreensão crítica da política e, especialmente, do papel da imprensa na desintegração das sociedades alemã e austríaca, preparando o terreno para o nacional-socialismo" (p. 38).

 
A nota de rodapé nº 2 (p. 38-9) faz uma séria de considerações a respeito da influência do humor sarcástico e ríspido de Voegelin, como uma herança dos escritos de Karl Kraus (1874-1936), que era:
"Satirista na melhor tradição de Jonathan Swift, Kraus foi o editor e praticamente o único jornalista da publicação independente Die Fackel. Seus ensaios e aforismo denunciavam a hipocrisia da sociedade vienense e entre eles podemos encontrar pérolas deste tipo: "Como o mundo é comandado e como começam as guerras? Os diplomatas contam mentiras aos jornalistas e então acreditam no que lêem", ou "Meu inconsciente sabe mais sobre a consciência do psicólogo do que a consciência dele sabe sobre o meu inconsciente", uma alfinetada certeira em Freud, Kraus também podia ser extramamente brutal: "A estupidez é uma força fundamental e nenhum terremoto pode combatê-la" - uma opinião compartilhada por Voegelin em sua análise do ambiente intelectual alemão em Hitler e os alemães, em que Kraus é citado como um dos modelos de retidão moral que previram a loucura que seria o nazismo. Foram publicados em língua portuguesa os seguintes livros de sua autoria: Ditos e feitos (São Paulo, Brasiliense, 1988) e Os últimos dias da humanidade (Lisboa, Antígona, 2001), uma peça teatral que tem treze horas de duração [em seguida há uma referência a Eugen Rosenstock-Huessy, que julgo muito interessante mas que remeto para uma leitura na própria obra]."

Voegelin  relata que a obra de Stefan George "deve ser entendida no contexto da espantosa destruição da língua alemã durante o período imperial, depois de 1970" (p. 39), e, aqui confesso que foi a primeira vez que ouvi falar nisso.

Pois bem, Stefan George se propunha:

"Resgatar a linguagem significava recuperar o objeto a ser por ela expresso, o que, por sua vez, significava sair do que hoje se chamaria a falsa consciência da burguesia ordinária (aí incluindo os positivistas e marxistas), cujos representantes literários eram as vozes dominantes no meio cultural. Daí que essa preocupação com a linguagem fizesse parte da resistência contra as ideologias. As ideologias destroem a linguagem, uma vez que, tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideólogo passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela. Transpor esse simulacro de linguagem e restaurar a realidade por meio da restauração da linguagem era o trabalho não só de Karl Kraus, mas também o de Stefan George e dos que integravam seu círculo na época" (p. 39).





Voegelin refere que  naquele tempo vigorava um "linguajar insultuoso típico da oclocracia" (p. 40), ou seja, a típica linguagem utilizada pelo governo da multidão, e, afirma que "é impossível empreender um estudo sério do nacional-socialismo sem recorrer a Dritte Walpurgisnachit e aos anos de crítica de Die Fackel, pois é aí que se evidencia a miséria intelectual que tornou possível a ascensão de Hitler" (idem).



Por fim, Voegelin afirma que o fenômeno de Hitler fundou-se no "quadro geral de uma sociedade arruinada intelectual ou moralmente" , em que "marginais podem ascender ao poder público por representarem formidavelmente o povo", e, o mais importante, é que a "destruição interna" da Alemanha não terminou com o fim da guerra "mas continua até hoje", e "não é possível entrever seu fim, de sorte que consequências surpreendentes são possíveis" (p. 41), talvez aí esteja uma das possíveis explicações para a atual política de acolhimento de refugiados por parte do governo alemão.

Há, em seguida, uma bela defesa da ciência do direito fundada na hierarquia da norma fundamental, e uma crítica à metodologia neokantiana de desvirtua ideologicamente o processo científico.

Voegelin define que Hans Kelsen contribuiu de forma fundamental para a ciência com "a aplicação de uma análise lógica a um sistema jurídico. Essa análise do sistema feita por Kelsen, que culmina em seu conceito de Grundnorm (norma fundamental)" (p. 43).

Afirma que esta contribuição ainda é "o núcleo de qualquer teoria analítica do direitos" e enfatiza que nunca divergiu de Kelsen "quanto à validade fundamental da Teoria Pura do Direito" (p. 43-4).

Por outro lado, afirma que suas divergências são sobre aspectos ideológicos "que se sobrepõem à lógica do próprio sistema jurídico sem, no entanto, comprometer sua validade" (p. 44).

Tratava-se da ideologia da metodologia neokantiana "que definia cada ciência com base em seu respectivo método de investigação - e, neste caso, o método era a lógica do sistema jurídico" (p. 44).

Voegelin relata que "de acordo, com a terminologia da época, a área de Kelsen representava como professor era a Staatslehre [teoria política]" (p. 44), a teoria política tinha que se transformar em Rechtslehre [teoria jurídica], e, uma vez feito o corte metodológico, a ciência do direito não mais poderia tratar nem da política, nem da história, nem da filosofia, o objeto desta ciência passaria a ser somente o sistema normativo, ou seja, propunha-se um aprofundamento do estudo especializado (1).

Na sequência Voegelin faz uma síntese das duas principais escolas neokantianas, a Marburger Schule, de Hermann Cohen, que era representada por Kelsen, que interpretava a Crítica da Razão Prática, de Kant com base na "constituição da ciência pelas categorias de tempo, espaço e substância - ciência significando a física newtoniana tal como Kant a entendia. Esse padrão de constituição de uma ciência a partir das categorias aplicadas a um conjunto de fontes foi o modelo usado na construção da Teoria Pura do Direito. O que não coubesse nas categorias da Normlogik não mais poderia ser considerado ciência" (p. 45-6).

A outra escola neokantiana era denominada Escola Alemã do Sudoeste, de Windelband e Rickert:

"[...] para quem o objeto das ciências históricas era constituída por "valores". Essa vertente metodológica remonta à década de 1870, quando o teólogo Albrecht Ritschl fez, pela primeira vez, a distinção entre [...] [ciências de fatos] e [...] [ciências de valores]. Os termos escolhidos revelam que a origem do problema está no antigo predomínio das ciências naturais como modelo da ciência em geral. Contra o prestígio das ciências naturais, os pobres teólogos, historiadores e cientistas sociais incipientes precisavam deixar claro que seus campos de estudo também eram, afinal de contas, científicos" (p. 46).

Voegelin, com sua fina ironia, relata que foi assim que se inventaram os "valores" (p. 46), e explica que no "entender de Rickert, os valores são forças culturais cuja existência está acima de qualquer suspeita, tais como o Estado, a arte e a religião" (idem).

A crítica de Voegelin a tal "técnica de reconstituição das ciência sociais e históricas pelo "wertbeziehende Methode" (isto é, por referência a um valor) padecia de grave insuficiência por não perceber que os valores são símbolos altamente complexos, condicionados por seu significado na "cultura" estabelecida da sociedade liberal ocidental", e que "os valores precisavam ser aceitos. E que fazer se alguém os rejeitasse, como faziam certos ideólogos que desejavam fundar uma ciência relacionando as fontes já não mais ao valor do Estado, mas ao valor de sua destruição?" (p. 46).

Então, evidencia-se que a ideologia neokantiana pode tanto aplicar corte metodológico, em que a hipótese de estudo é mais importante que o próprio objeto, ou eleger arbitrariamente um objeto, de forma discricionária, cujos referenciais passam a ser palavras ou sentimentos, que poderiam ser valorados como fundamentos da própria cultura, não como seus produtos.

Fonte:
 

Eric Voegelin, Reflexões autobiográficas, São Paulo, É Realizações, 2007.

sábado, 7 de janeiro de 2017

ERIC VOEGELIN: REFLEXÕES AUTOBIOGRÁFICAS - 01

Eric Voegelin

Eliz Sandoz, na introdução às Reflexões autobiográficas, diz que Eric Voegelin nesta obra possui a virtude de nos fazer participar da concretude de sua experiência pessoal, e que este filósofo serve-nos de guia no caminho para fora da "confusão do colapso das instituições, do embotamento intelectual e da corrupção pessoal" (p. 14).

Voegelin buscou "recuperar a realidade em um mundo dominado por segundas realidades, sem falar em realidades virtuais" (p. 15), e, neste ponto, Sandoz destaca o conflito entre a percepção da realidade empírica e as percepções ideológicas e metastáticas, pelo que extraímos algumas definições da obra Israel e a revelação a respeito do assunto:


"A fé metastática é uma das grandes fontes de desordem, se não a principal, no mundo contemporâneo; e é uma questão de vida ou morte para todos nós compreender o fenômeno e encontrar remédios para combatê-lo antes que ele nos destrua"
 
"A ideologia é a existência em rebelião contra Deus e o homem. É a violação do primeiro e do décimo mandamentos, se quisermos empregar a linguagem da ordem israelita, é a nosos, a doença do espírito, empregando a linguagem de Ésquilo e Platão. A filosofia é o amor ao ser por meio do amor ao Ser divino como a fonte de sua ordem. O Logos do ser é o objeto próprio da investigação filosófica, e a busca da verdade concernente à ordem não pode ser conduzida sem um diagnóstico dos modos de existência na inverdade" (Eric Voegelin, Israel e a revelação, 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2014, p. 31-2)

Se bem que ainda não consegui distinguir a noção de segundas realidades (ideologia?) e realidades virtuais (fé metastática?), este ponto merece alguma pesquisa complementar.



Cronologicamente, o capitulo dois precede o primeiro, pois relata a experiência de Voegelin no ensino médio, seu domínio da matemática, favorecido pelo ensino de seu professor Philip Freud, ao ponto de, já naquela tenra idade, compreender a teoria da relatividade, como ele mesmo relata, e, inclusive, referido docente chamou a atenção para:
"o fato de que, de acordo com a nova teoria dos átomos, quando você serra um pedaço de madeira, está separando estruturas atômicas. A possibilidade de separar estruturas atômicas cm uma serra de mão era para ele a coisa mais intrigante de toda a estrutura da realidade física, Freud vira ali o problema da redução e da autonomia dos vários estratos da realidade do ser." (2007, p. 28)

Voegelin, ainda a propósito do tema da "estratificação da realidade", rememora que, num teste de química, ignorava que o ácido cítrico poderia ser obtido espremendo-se limões, mas, cuja composição conhecia teoricamente,  e,  por conta disso, tirou nota baixa.

Ainda no ensino médio, Voegelin relata como passou um semestre estudando Hamlet, com base nas teorias de psicológicas de Alfred Adler.

Interessante a passagem em que Voegelin afirma que foi marxista por alguns meses, após ler O Capital, por conta do prestígio da Revolução Russa, mas, que o efeito desta conversão durou pouco quando passou a estudar economia.

De tal relato emerge um nível de ensino escolar que hoje julgamos ser digno de pós-graduação, e, então, quando se inicia o ensino superior propriamente dito, temos as influências, entre outros, de Mises e Kelsen, que por meio de seus seminários, tanto na universidade, quanto privados, possibilitaram relações pessoais e intelectuais fecundos, que perduraram por toda a sua vida.

Voegelin relata, ainda, que a instituição da República,  com a queda da monarquia, intensificou-se o antissemitismo na sociedade e no governo, fato que impediu diversos de seus amigos judeus de seguirem carreiras universitárias, fazendo-os enveredar para o mundo dos negócios, enquanto, simultaneamente, continuavam suas vivências intelectuais.
Max Weber
Chegamos, assim, ao terceiro capítulo, em que relata a influência de Max Weber, o que me atiçou curiosidade de ler o texto "Ciência e política: duas vocações", sob a perspectiva apontada por Voegelin, de que Weber compreendeu que os chamados "valores" são ideologias, não proposições científicas (p. 31), e, que o citado sociólogo aplicava a ética da responsabilidade, segundo a qual autor de determinada ação é responsável pelas consequências de seus atos, e que  "A intenção moralizadora não justifica a imoralidade da ação" e a "Ideologia não é ciência, e os ideais não substituem a ética" (p. 32).

Voegelin indica, porém, que a metodologia de Weber errou ao excluir os "juízos de valor", na busca de uma certa neutralidade científica não ideológica, que implicava em não se distinguir valores ideológicos, arbitrários, de juízos de valores éticos, racionais, o que tornava não declarado e "oculto" o próprio fundamento ético-cultural, judaico-cristão e greco-romano, da ética da responsabilidade.

Portanto, Weber, formalmente, por uma questão de metodologia, ignorava as razões empíricas existentes no desenvolvimento histórico e cultural que fundamentam a "a ordem racional da existência" (p. 33) da civilização Ocidental, assim, o desenraizamento de tais fundamentos lança a pessoa e a sociedade na "espiral de aventuras idealistas e ideológicas em que os fins se tornem mais fascinantes que os meios." (idem), e, para concluir, Voegelin considera que:

"Weber comprovou de uma vez por todas que, no campo das ciências sociais e  políticas, não se pode ser um acadêmico qualificado sem conhecer profundamente o assunto. Isso significa adquirir o conhecimento comparado das civilizações - não apenas da civilização moderna, mas também da medieval e da antiga, e não apenas do Ocidente, mas Também do Oriente Próximo e o Extremo Oriente - e, em contato com as diversas especializações científicas, manter atualizado esse conhecimento. Quem assim não procede não tem o direito de dizer-se um cientísta empírico, e decerto deixa a desejar como acadêmico da área." (2007, p. 33)

Fonte:
 

Eric Voegelin, Israel e a revelação, 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2014.
 

Eric Voegelin, Reflexões autobiográficas, São Paulo, É Realizações, 2007.