sexta-feira, 22 de abril de 2016

RELIGIÃO CIVIL E BIOÉTICA



Descartes (1596-1650) foi o primeiro filósofo a valorizar a “conservação da saúde” como princípio que serve de “primeiro bem e fundamento de todos os outros bens da vida, vejamos o trecho do Discurso do Método, cap. 06, parágrafo 02 e seguintes que inaugura tal perspectiva:

O que é de desejar, não só para a invenção de uma infinidade de artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer custo, os frutos da terra e todas as comodidades que nela se acham, mas principalmente também para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e fundamento de todos os outros bens da vida.
Pois mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais sábios e mais hábeis do que foram até aqui, creio que se deve procurá-lo na Medicina. (Apud, Kreeft, Peter. Sócrates encontra Descartes: o pai da filosofia interroga o pai da filosofia moderna e seu discurso do método; tradução de Gabriel Melatti. – 1. ed. – Campinas : CEDET, 2012, 185-6)

Rousseau (1712-1778) define a relação entre o cidadão e o Estado com base numa “profissão de fé puramente civil tratado como "dogma de religião" que permite o banimento e a imolação dos “ímpios, pois esta seria uma categoria de pessoas, que ao dividir sua fidelidade entre Estado e Religião, cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às leis:

[...] importa ao Estado que cada cidadão tenha uma um religião que o faça amar seus deveres; os dogmas dessa religião, porém, não interessam nem ao Estado nem a seus membros, a não ser enquanto se ligam à moral e ao deveres que aquele que a professa é obrigado a oferecer em relação a outrem. Quanto ao mais, cada um pode ter as opiniões que lhe aprouver, sem que o soberano possa tomar conhecimento delas, pois, como não chega sua competência ao outro mundo, nada tem a ver com o destino dos súditos na vida futura, desde que sejam bons cidadãos nesta vida.
Há, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel. Sem poder obrigar ninguém a crer neles, pode banir do Estado todos os que neles não acreditarem, pode bani-los não como ímpios, mas como insociáveis, como incapazes de amar sinceramente a lei, a justiça, e de imolar, sempre que necessário, sua vida a seu dever. Se alguém, depois de ter reconhecido esses dogmas, conduzir-se como se não cresse neles, deve ser punido com a morte, pois cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às leis. (Rousseau, Jean-Jacques, Do contrato social; trad. Lourdes Santos Machado; col. Os pensadores – 4. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 143-4)

A doutrina política do Estado Laico fundado na criação e defesa da Religião Civil é afirmada como substituta de qualquer outra forma de fé ou crença, pelo suposto apóstolo da democracia, e assim inaugura-se o anticristianismo como programa de política de Estado:

Mas, quem quer que diga: Fora da Igreja não há salvação – deve ser excluído do Estado a menos que o Estado seja a Igreja, e o príncipe, o pontífice. Tal dogma só serve para um Governo teocrático; em qualquer outro é pernicioso. (Idem, p. 145)

David Hume (1711-1776), ao dar prosseguimento à obra cartesiana de fundar uma filosofia baseada no ceticismo filosófico, afirmou que o entendimento humano é condicionado pela Natureza, verdadeira entidade metafísica imanente à própria existência, à qual não nos é dado conhecer a essência, mas, diante da qual nos basta assumir nossa doce ignorância sobre os fundamentos da realidade, e nos contentarmos com os dados oriundos da observação e da experiência, para a consolidação de informações que costumeiramente estão associadas como causa e efeito, com a ressalva de que todo efeito é um evento distinto de sua causa, e somente por costume é que tais eventos são associados.

Esta linha de raciocínio naturalista, na qual há precedência do dado empírico sobre a ideia, ou melhor dizendo, na qual a ideia é considerada como totalmente oriunda da experiência observável, princípio que não admite concessões nem exceções, determina, então, ao estudioso da ética socorrer-se de argumentos que apelem para questões de fato e suas consequências.

Hume decreta que o anátema deve ser jogado na fogueira acesa em nome do dogma naturalista da filosofia moderna:

Quando percorrermos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos: Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, laçai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões (Hume, David. Investigações acerca do entendimento humano; tradução Anoar Aiex; in coleção os pensadores – São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 145, destaques no original).

O princípio vitalista em que a vida é considerado o bem supremo submete-se ao princípio da laicidade, que defende a fé apostólica na religião civil, e, em caso de conflitos entre o cidadão e o Estado, este está autorizado a banir ou eliminar aquele, pois se tratará de um ímpio que professa princípios diferentes, pois tal pessoa não será útil para a sociedade civil.

A perspectiva filosófica moderna que defende a laicidade tem implicações no pensamento contemporâneo.

Um exemplo está na postura de  Michael J. Sandel (1953-), em sua obra "Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética" (tradução Ana Carolina Mesquita. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013) apesar de ponderar sobre os perigos inerentes à instrumentalização da biotecnologia, como forma de dominação sobre a natureza humana, acaba por defender a utilização de embriões humanos como insumos para pesquisa sobre células troncos.

Sandel propõe analogia entre embriões e bolotas, pois estas são distintas de carvalhos, não obstante a existência de uma “relação de continuidade em termos de desenvolvimento” (Sandel,  p.124).

A proposição de Sandel pretende distinguir embriões de pessoas, que muito embora sejam potencialidades ligadas no tempo, entre a concepção e o nascimento, não necessariamente estão numa relação de causa e efeito de natureza empírica, pois o conceito de “vida humana” é distinguível do conceito de pessoa, e, assim, não há uma equivalência moral do embrião e a pessoa já formada e nascida, pois aquele é um blastocisto, um amontoado de 180 a 200 células.

Sandel define a não-equivalência moral entre o embrião e a pessoa ao afirmar que:

[…] é inegável que o blastocisto é uma ‘vida humana’, ao menos no sentido óbvio de que está vivo, e não morto, e que é humano, e não, digamos, bovino. Porém não se depreende desse fato biológico que o blastócito é um ser humano, ou uma pessoa. Qualquer célula humana viva (uma célula epitelial, por exemplo) é uma ‘vida humana’ no sentido de ser humana, e não bovina, e viva, e não morta (Sandel, p.123).

Portanto, Sandel na melhor tradição da filosofia moderna apela para o ceticismo metodológico, fundado num empirismo canhestro e anti-intelectual, numa defesa da religião civil que apela para a fé na ciência, por esta ser uma forma de teologia da natureza, para concluir com a afirmação de que é apenas uma questão de fato o embrião estar vivo, mas somente como um conjunto de células, que muito embora sejam humanas ainda não configuram uma pessoa.

Sandel esclarece, sempre numa perspectiva humeana, que “o fato de toda pessoa ter sido um dia um embrião não prova que os embriões são pessoas”, e mesmo que haja “dificuldade de especificar o início exato da pessoalidade no curso do desenvolvimento humano” (Sandel, p.125) não nos permitirá considerar que os embriões humanos sejam pessoas (idem).

A afirmação que a relação de causa e efeito que faz derivar uma pessoa de um embrião é somente verificável como uma questão de fato, como acontecimento empírico a ser analisado caso a caso, e que as relações de ideias, aceitas socialmente daí derivadas, é que vão legitimar a conduta ética perante o embrião, pois o embrião não é uma pessoa em sua essência, faz com que o embrião não seja considerado necessariamente a “causa” da existência de uma pessoa, mas, uma vez que seja possível “especificar o início” da pessoalidade, qualquer que seja o critério científico, social ou jurídico, estar-se-á diante de uma dádiva natural que deve ser reverenciada.

O conceito de pessoa é, portanto, segundo a loquacidade e mendacidade da filosofia moderna representada por Sandel um costume social que se estabelece sobre um dado natural verificável, que reconhece certas características sustentadas em fatos de natureza empírica, que dão suporte a relações de ideias que condicionam a crença social na existência de direitos da personalidade, que conferem dignidade ao ser humano classificado habitualmente como pessoa, o que torna moral a utilização de embriões para “promover a cura e desempenhar nosso papel de reparar o mundo dado” para que o “progresso da biomedicina” seja uma benção “para a saúde”.

Diante de tais colocações é possível verificar uma matriz filosófica muito específica, que prima pelo reducionismo empirista da existência humana, que classifica os seus objetos de estudo de forma nominalista e naturalista, que não admite raciocínios de causa e efeito, seja por dedução ou indução, e, por fim, exclui como inaceitável e irrelevante a crença em qualquer tipo de metafísica transcendente do ponto de vista ontológico, seja filosófica ou religiosa.

Sandel ao questionar o posicionamento ético que julga que o embrião é uma pessoa, tese que nega o empirismo e o ceticismo implicados na filosofia moderna, demonstra que desconsidera convicções religiosas e considerações filosóficas metafísicas transcendentais à natureza são consideradas inadmissíveis para a epistemologia do cientificismo estabelecido, pois são negadoras do laicismo, uma vez que apelam para outras realidades fundadoras, sejam filosóficas, religiosas ou com base na ciência que confia no real, e que aceita a existência de causas e efeitos.

A postura filosófica e científica inerente à modernidade é o padrão adotado no debate bioético contemporâneo, muito embora seja um pressuposto ideológico que raramente é colocado na mesa de discussão, pressuposto que merece ser esclarecido e debatido, pois a afirmação do direito à vida é reduzido ao dado material, social e jurídico, para escamotear a matriz autoritária da profissão de fé laicista que se apoia na religião civil do ceticismo empirista, cujo dogma é o naturalismo negador da sacralidade da vida humana e da liberdade fundamental do espírito.

WERNER NABIÇA COÊLHO

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