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sábado, 12 de agosto de 2017

MEDICINA, FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA E ÉTICA: A DESCOBERTA DO RACIONALISMO ETIOLÓGICO






Aos dezesseis anos, por conta de um trabalho escolar cobrado pela professora Yeda, à época uma mocinha, que ministrou a disciplina filosofia, no início do primeiro ano do segundo grau, li, pela primeira vez, a Apologia de Sócrates, e, desde então, tenho cultivado campos interiores de conhecimento por puro deleite e prazer.

Esta experiência casual, possibilitada pela escola marista Nossa Senhora de Nazaré, de Belém do Pará, ocorreu por um feliz acidente, dado que somente houve aula de filosofia no primeiro ano, depois, sumiu do mapa do resto do meu segundo grau,  mas, direcionou-me a curiosidade para a filosofia.

Antes desta experiência, o gosto que me dominava voltava-se exclusivamente para o estudo de história e política, e, rememoro, ainda, quando aos seis anos de idade, ao estudar sobre Pedro Álvares Cabral questionava meu pai sobre o que veio antes do Brasil, ou seja, o início de Portugal, e o velho respondia que o Reino de Portugal fora fundado pelo Rei Affonso Henriques lá pelo ano de mil cento e alguma coisa, e, como moleque enjoado que eu era, continuava: e antes de Portugal existir? E antes dos romanos? De fato, desde novo era um chato!

Passados tantos anos, ainda me deixo ser assaltado pelo espanto e pela admiração, quando percebo algo óbvio, ou que deveria sê-lo, que se encontrava encoberto, pelas névoas dos vales de ignorância, que campeiam por entre os pequenos morros de conhecimento, que tenho erguido ao longo da vida, elevações sobre as quais subo para tentar contemplar um pouquinho mais longe, para aplacar a bendita e insubmissa curiosidade que me aflige, ao mapear a topografia de minha ignorância conforme a cartografia ensinada pelo Mestre Olavo de Carvalho.

Um dos últimos sustos que sofri foi descobrir, no sentido de compreender, o termo filosófico racionalismo etiológico, termo técnico que designa a busca racional pelas origens.

A luz sobre a etiologia se fez quando vi Voegelin descrever o argumento etiológico [01], o problema filosófico fundamental, não enfrentado, e, até mesmo ignorado, pela filosofia moderna.

Fixei esta luminosidade mentalmente, e, assim, pude compreender melhor a observação de Reale e Antiseri, já lida a algum tempo atrás, de que a medicina hipocrática foi a criadora do racionalismo etiológico [02].

O racionalismo que se fundamenta na busca da origem do problema foi o que possibilitou o nascimento e o desenvolvimento da ciência médica e das demais ciências.

A obviedade de aprender tal terminologia está no fato de que a busca das origens é o que sempre me impulsionou: - Sou, portanto, um racionalista etiológico!

Nesta busca etiológica, tenho estudado algumas hipóteses sobre origens, seja da linguagem ou da sociedade, do fenômeno jurídico ou filosófico, etc.

E ao atinar sobre a importância do argumento etiológico, e a metodologia que lhe é inerente, que se opera com base no conceito de racionalismo etiológico, pude perceber o quanto a medicina hipocrática foi fundamental ao unificar os conceitos da filosofia pré-socrática, ou filosofia da physis, por meio de críticas e articulações com a realidade, numa teoria médica com fundamentos filosóficos e éticos.

A medicina hipocrática originou-se da mentalidade científica criada pela filosofia da physis [03], como bem se pode observar nesta passagem da obra hipocrática A Teoria do Homem, em que se realiza a refutação da teoria de que o homem seria originado de um único elemento:

Quem costuma ouvir aqueles que falam sobre a natureza humana, além do que concerne à medicina, para ele, este discurso não é interessante de ser ouvido. Digo, pois, não ser o homem, por completo, nem ar, nem fogo, nem água, nem terra, nem nenhum outro elemento que não é manifesto no interior do próprio homem. Mas deixo de lado aqueles que querem falar tais coisas. [04]

Reale e Antiseri referem-se à contribuição da particular agudeza argumentativa, herdada dos sofistas e bem visível em alguns tratados hipocráticos [05], influência que bem podemos exemplificar nestas passagens de A Teoria do Homem na qual se define o caráter composto e variado da natureza humana, com base em argumentos lógicos fundados na realidade empírica:


[...] se o homem fosse uma unidade, nunca sofreria. Pois, sendo uma unidade, não haveria por que sofrer. Se realmente sofre, é necessário que haja também um único medicamento. Mas há muitos, pois há muitas substâncias no corpo, as quais, quando, contra a natureza, mutuamente se esfriam e se esquentam, e se secam e se umedecem, geram doenças; de tal modo que muitas são as formas (idéiai) de doenças e seus tratamentos vários [06]

Apresentarei provas e apontarei as necessidades graças as quais cada substância aumenta e diminui dentro do corpo [07]

Além deste aporte filosófico e científico, houve um forte fator ético, inspirado na sacralidade da vida humana, simbolizado pelo famoso juramento de Hipócrates que no dizer de Reale e Antiseri é uma proposta simples que, em termos modernos, poderíamos expressar assim: médico, lembra-te de que o doente não é um coisa ou um meio, mas um fim, um valor, e portanto comporta-te em decorrência disso [08].

Assim, a medicina, ao nascer e se desenvolver, inspirou a filosofia ética de Sócrates e Platão, e prosseguiu sua influência, tanto no aspecto ético quanto no científico, principalmente, no filho do médico Nicômaco: Aristóteles.

Reale e Antiseri relatam que a criação da medicina hipocrática [...] nascida da mentalidade filosófica, estimulou a especulação filosófica [09] e citam Jaeger:

Não se exagera quando se diz que a ciência ética de Sócrates, que ocupa o centro da disputa nos diálogos platônicos, não teria sido possível ser pensada sem o modelo da medicina, a qual Sócrates se remete tão frequentemente. A medicina lhe era mais afim do qualquer outro ramo do conhecimento humano então conhecido, inclusive a matemática e as ciências naturais [10].
A filosofia pré-socrática, associada à técnica da argumentação racional desenvolvida pela sofística, possibilitaram o desenvolvimento da teoria e da técnica da medicina hipocrática, cujas consequências sociais e éticas estimularam a especulação socrática, e, assim sendo, a filosofia da ética e da ciência tal como a conhecemos, em sua manifestação fundamental de racionalismo etiológico.

Notas:

[01] "[...] o charlatanismo marxista reside na terminante recusa de dialogar com o argumento etiológico de Aristóteles, isto é, com o problema de que a existência do homem não provém dele mesmo, mas do plano divino da realidade" (VOEGELIN, 2007, p. 84).

[02] “[...] é no âmbito do racionalismo etiológico por ela criado, que pôde nascer, autodefinir-se e desenvolver-se a ciência médica (assim como as demais ciências)." (REALE E ANTISERI, 1990, p. 114).

[03] REALE E ANTISERI, 1990, p. 113.

[04] CAIRUS, 2005, p. 42.

[05] REALE E ANTISERI, 1990, p. 114.

[06] CAIRUS, 2005, p. 42.

[07] CAIRUS, 2005, p. 43.

[08] REALE E ANTISERI, 1990, p. 118-9.

[09] REALE E ANTISERI, 1990, p. 114.

[10] REALE E ANTISERI, 1990, p. 115.

Referências:

CAIRUS, Henrique F. “Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença”. Henrique F. Cairus e Wilson A. Ribeiro Jr. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005, 252 p. (Coleção História e Saúde)

REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: PAULOS, 1990 (Coleção filosofia)

VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas; introdução e edição de textos de Ellis Sandoz; tradução de Maria Inês de Carvalho; notas de Martins Vasques da Cunha - São Paulo: É Realizações, 2007.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

SER, CONHECER E SABER - PRINCÍPIO, MEIO E FIM DO HOMEM

Bombassaro (1993: 21-23) define saber como poder manusear, poder compreender, poder dispor[...] o saber está vinculado ao mundo prático[...]. Portanto, a investigação do saber como conceito epistêmico remete ao prático , enquanto que conhecer geralmente refere-se a algo com o qual temos uma experiência direta e até pessoal , e, que a diferença específica entre estas categorias reside no fato de que "conhecer" parece indicar uma convivência do falante com aquilo do qual se fala , enquanto que o saber é experiência indireta, pois é possível dizer que se sabe algo acerca de algo ou alguém sem que isto implique uma experiência direta com aquilo do qual se fala .

Em síntese, teremos que o conhecimento é apreensão cognitiva de natureza subjetiva, pessoal, direta e abrangente, que o sujeito realiza sobre a realidade, enquanto que o saber é um vínculo objetivo com a realidade, um saber fazer empírico, indireto e parcial que deve ser convertido em conhecimento.

Em outra perspectiva Giovanni Reale (1995: 55) firma a diferença entre metafísica e ciências particulares ao considerar que a metafísica considera o "inteiro" do ser, ao passo que as ciências particulares consideram apenas "partes" específicas do ser .

Com base na afirmação da existência do saber metafísico, definimos que o conhecimento parte da objetividade sensível, passa pela coleta de indícios e provas inteligíveis que descrevem e explicam esta realidade, e, ao fim, com a depuração dialética das diversas teses explicativas revelam-se os princípios ordenadores, que possibilitam a compreensão cada vez mais aprofundada do ser, possibilitando maiores conhecimentos, favorecendo, sobre tudo, que o amor ao saber frutifique em mais conhecimentos, pragmáticos e teóricos, estes destinados à contemplação do bom, do belo e do justo, e aqueles destinados a concretizar tais anseios e ideais.

Logo, o conhecimento é fruto da apreensão do ser inteligível, partindo-se inicialmente do sensível que tem por fim revelar as leis e princípios que aproximam o humano da sabedoria, filosofia e ciência, contemplação e ação. Portanto, para saber, devemos conhecer o ser.

Referências

BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da epistemologia – como se produz o conhecimento . 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992.

REALE, Giovanni. O saber dos antigos – terapia para os tempos atuais. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

Texto confeccionado por
(1)Werner Nabiça Coelho

Atuações e qualificações
(1)Advogado. Especialista em Direito Tributário e Professor da Faculdade Metropolitana da Amazônia - FAMAZ.
Bibliografia:

COELHO, Werner Nabiça. SER, CONHECER E SABER - PRINCÍPIO, MEIO E FIM DO HOMEM. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 22 de mar. de 2006.
Disponivel em: < http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/2517/ser_conhecer_e_saber__principio_meio_e_fim_do_homem >. Acesso em: 21 de abr. de 2016.