Platão
criou duas hipóteses interessantes sobre o ato de ser justo, uma que
antecipou o advento de Cristo, outra que forneceu o argumento da obra
"O Príncipe" de Maquiavel.
Estava
Sócrates a discutir com Glauco acerca da encarnação da justiça
perfeita e de seu contrário, e assim prossegue o diálogo, que
transcrevo em diversas linhas separadas para realçar o valor poético
do texto:
"Para
podermos, agora, formar juízo sobre a vida desses dois tipos de que
falamos, o justo e o injusto no grau mais elevado, será preciso
isolá-los completamente
...imaginemos
cada um deles como perfeito na sua maneira de viver.
Para
começar, façamos do homem injusto um profissional completo em sua
atividade.
Um
hábil piloto ou um médico sabem distinguir perfeitamente o que é
ou não possível nas respectivas profissões, empreendendo aquilo e
abandonando o resto.
No
caso de cometer algum engano são suficientemente hábeis para
repará-lo.
Da
mesma forma deverá proceder o homem injusto, que praticará com
todas as regras da arte as suas malfeitorias, sem nunca se deixar
colher em flagrante; caso queira, de fato, apresentar-se como mestre
consumado de injustiça, sem de nada privá-lo...
...à
prática dos piores crimes alie a mais elevada reputação de
justiça; se chegar a dar algum passo em falso, seja capaz de
corrigi-lo;
no
caso de vir a ser conhecido algum dos seus atos, terá de dispor de
dotes oratórios para justificar-se, além de poder decidir-se pela
violência, sempre que esta se fizer necessária, ora com o emprego
da coragem pessoal e da força, ora com os recursos materiais e a
influência de amigos que tenha sabido angariar.
O
justo como verdadeiro homem de bem, se for despojado de todas as
honrarias e bens materiais com exceção da justiça, para que venha
a formar perfeito contraste com o anteriormente concebido:
sem
haver cometido a menor falta, passa a ser o tipo acabado do
criminoso.
Posta,
assim, à prova sua justiça, vejamos se se deixa abalar da má
reputação e das suas consequências.
Mostra-se
firme até à morte;
sendo
justo, pareça injusto enquanto viver, para que, tendo ambos atingido
a meta extrema,
um
da justiça e o outro da injustiça,
seja
possível decidirmos qual deles foi o mais feliz."
(360e-361b)
(Platão,
A República, UFPA, p. 97-9)
Como
bem se pode observar, com o dito por Sócrates, o homem justo, ao
atingir a perfeição da justiça, será tratado como criminoso,
sendo levado a enfrentar a morte e a solidão, será execrado em vida
e considerado um pária.
O
homem injusto, no ápice da maestria de sua arte do mal, terá todos
os recursos possíveis em seu favor, terá reputação, amigos,
dinheiro e poder, para agir como bem entender, e, assim, iludir a
todos ao seu redor com uma boa reputação imerecida, fruto da
própria injustiça.
Apesar
de a descrição da vítima perfeita também ser aplicável ao
próprio Sócrates, com mais razão ainda tal descrição do portador
da justiça perfeita se aplica ao Cristo, o cordeiro de Deus,
despojado e dotado de mansidão até o amargo fim.
Enquanto
que o homem dotado da injustiça, no mais alto grau, é o paradigma
daquilo que Maquiavel descreveu, um senhor deste mundo, um
sacrificador que lava suas culpas com o sangue alheio e não mede
esforços para triunfar sobre o próximo.