sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O MARTÍRIO VERMELHO DOS ARMÊNIOS

Monte Ararat - Armênia
A Armênia foi a primeira nação a proclamar o cristianismo como religião de Estado no ano de 302, e, segundo a tradição armênia, o cristianismo foi introduzido no país desde suas origens por dois discípulos de Jesus Cristo, os apóstolos Bartolomeu e Tadeu, e, por volta do ano 200, o cristianismo já se encontrava bastante difundido entre os armênios.


A Armênia é uma nação cuja história é digna de prosa e verso em estilo épico, pois além de ter sido a primeira nação cristã, foi este povo, juntamente com a Irlanda, responsável pela preservação da cultura clássica em meio aos desastres das invasões bárbaras, como, também, foi uma das propagadoras missionárias da verdade cristã.

Jean Pierre-Alem em seu precioso livreto intitulado A Armênia, relata a tentativa do rei Persa impor a conversão dos armênios ao culto do fogo,  realça que o cálculo deste rei era sobretudo político, pois o mesmo "julgava que essa conversão afastaria definitivamente os armênios de Bizâncio e lhes tiraria qualquer possibilidade de executar um desses rompimentos de aliança dos quais eles haviam dado tantos exemplos num passado recente."





Os armênios numa resolução unânime expressaram submissão política, mas afirmaram sua fé cristã, nos seguintes termos:

Nada nos moverá de nossa fé, nem anjos e nem homens, nem espadas e nem águas, ou qualquer outra violência imaginável. Nossos bens e nossas posses estão a tua disposição; podes usa-los como bem entenderes. Desde que nos concedas a liberdade de crença, tu serás nosso único senhor na terra, assim como Cristo é nosso único Deus no céu. Se porém exigires de nós mais que isso, eis nossa decisão: nossas vidas estão em tuas mãos…; tu tens a espada, nós a cerviz…Tombaremos como mortais que somos e passaremos às fileiras dos imortais…É inútil querer negociar o que é inegociável. Nossa fé não tem origem humana e nossas convicções sobre ela resultam de uma experiência amadurecida. Somos inseparavelmente unidos ao nosso Deus. Nada poderá romper essa união, jamais e em tempo algum. ( Loureiro, Heitor. Breve histórico dos primórdios da Igreja Apostólica Armênia. In: Rhema. Juiz de Fora: v. 13, n. 40, 2006.)

Este ato de defesa da fé cristã enfureceu o rei dos reis, que convocou os príncipes armênios, e estes optaram pela apostasia, para em seguida voltarem a seu país acompanhados de 760 magos persas, e, ao cruzarem a fronteira, o povo armênio atacou e dispersou os sacerdotes masdeístas, e, como qualquer político diante da fúria de um povo indignado, submeteram-se à vontade da multidão de cristãos e renegaram a conversão pagã.



Diante desta situação, a Armênia preparou-se para sofrer o ataque persa, e a resistência foi confiada a Vardan Mamikonian.

Bizâncio omitiu-se de enviar qualquer auxílio, mesmo após insistentes pedidos de Vardan, e, assim, um exército de 60.000 homens da Armênia foi levantado, para enfrentar um inimigo superior, numa luta desesperada.

O combate travou-se na planície de Avarair, no dia 02 de junho de 451. Os armênios foram vencidos e Vardan Mamikonian, morto.


Mas as perdas persas foram consideráveis. O rei dos persas que devia, além disso, sustentar uma guerra difícil contra os hunos, ao norte de seus Estados, mostrou-se relativamente conciliador. Mandou prender e torturar alguns padres, deu à Armênia um novo marspã, mas desistiu de impor o masdeísmo a seu novo protetorado.


Miniatura do século XV representando a batalha

Assim, na planície de Avarair, os armênios, ao perder uma batalha heróica salvaram sua fé.


Tal batalha é celebrada todo ano, no mês de fevereiro, numa grande cerimônia patriótica, a "festa de Vardan".

A história da Armênia possui inúmeros outros episódios memoráveis, todavia, julgamos importante destacar o papel que os armênios desempenharam no mundo pela ação de seus viajantes, de seus missionários, de seus emigrados, das colônias da diáspora, e, principalmente seu papel na preservação da cultura clássica.

Jean Pierre-Alem refere que os gôdos sofreram a influência dos armênios quando passaram pelas margens do Mar Negro, e foram provavelmente evangelizados por eles. Muitos reis e príncipes visigodos tinham aliás nomes armênios (Artavasdés).

No século XI, os missionários armênios difundiram-se até a longínqua Islândia.

Mas é a importância do povo armênio na preservação de parte considerável da cultura clássica que destacamos, fato que se inicia com base na invenção do alfabeto armênio, por volta de 405.

Antes dessa data, os armênios usavam o grego como língua literária, e o persa como língua administrativa, e, com a adoção de um alfabeto nacional foi sedimentada sua personalidade nacional, sua religião e a profunda vontade de independência, que tão magnificamente demonstraram ao longo de toda a sua dramática história.

Ryszard Kapuscinski, em sua obra Imperium comenta que vencido no campo, o exército armênio procurou pôr-se a salvo nos Scriptoria. O que são os Scriptoria? Podem ser celas monásticas, cabanas ou até mesmo cavernas. Nesses Scriptoria há sempre uma espécie de prancheta e um copista escrevendo de pé.

A consciência nacional armênia sempre esteve acompanhada pelo senso da ameaça de extermínio. E, ligado a isso, uma fervorosa necessidade de salvação, de pôr a salvo seu mundo.

Na impossibilidade de defendê-lo com a espada, então que se conserve a memória. Assim surge esse fenômeno único da cultura mundial: o livro armênio. Dispondo de um alfabeto próprio, os armênios sem demora começaram a escrever livros.





Já no século VI traduziram para o armênio toda a obra de Aristóteles. 


Até o século X haviam vertido a maioria dos filósofos gregos e romanos, centenas de títulos da literatura antiga.

Os armênios têm a mente aberta e grande capacidade de absorção. 


Traduziram tudo o que lhes caiu nas mãos. 

Grandes obras da literatura antiga e da cultura mundial chegaram até nós graças às traduções armênias.

Os copistas se lançavam sobre todas as novidades e logo as traziam para o gabinete.

Quando os árabes conquistaram a Armênia, os armênios traduziram todos os clássicos árabes.

Quando foi a vez dos persas, traduziram todos os autores persas.

Quando em disputa com Bizâncio, aproveitaram para levar tudo o que havia no mercado para traduzir.

Começaram a surgir bibliotecas inteiras. Deviam ser acervos imensos: em 1170, turcos saldjúquidas destroem em Snik uma biblioteca contendo 10 mil volumes. Eram todos manuscritos armênios.

Até os dias de hoje conservam-se 25 mil manuscritos armênios.

Desses, mas de 10 mil encontram-se em Ierevan, em Matenadaran. Quem quiser ver os restantes, terá que fazer uma volta ao mundo.

As maiores coleções encontram-se na Biblioteca São Jacó em Jerusalém, Biblioteca São Lázaro em Veneza e Biblioteca da Congregação Mekitariana em viana. Lindas coleções estão em Paris e Los Angeles.

E, aqui concluo a exposição relativa ao fato de que os armênios e seu  Martírio Vermelho preservaram não somente a fé, mas o conhecimento da civilização ocidental, em  meio ao naufrágio do mundo antigo.


Sugestão de leitura:

 “Lost Birds” uma outra forma de retratar o Genocídio Armênio
 
Livros

Fontes:

Jean Pierre-Alem, A Armênia, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1961.
 

Ryszard Kapuscinski, Imperium, São Paulo, Companhia das Legras, 1994.

O MARTÍRIO BRANCO DOS IRLANDESES


Thomas Cahill em sua obra Como os irlandeses salvaram a civilização, relata a história de como a vida monástica intelectual e laboriosa surgiu primeiro na Irlanda, como os irlandeses preservaram a cultura clássica, desenvolveram a liberdade de pensamento e a tolerância cultural de forma inédita, e, por fim, lançaram-se ao mundo europeu conturbado e destruído pelas invasões bárbaras, para reconstruir a civilização letrada ocidental.




Cahill relata que a dádiva de São Patrício aos irlandeses foi o seu cristianismo: o primeiro cristianismo desromanizado da História, um cristianismo sem a bagagem sócio-política do mundo greco-romano, um cristianismo que se aculturou sobremaneira ao ambiente irlandês, e daqui adiante, peço perdão aos puristas e cultores de textos originais, mas, confesso que transcrevo diversas passagens da obra de Cahil, para melhor descrever tais eventos históricos.

O Édito de Milão, que, em 313, declara a legalidade da nova religião e a torna a menina dos olhos do novo imperador, o cristianismo é aceito por Roma, e não Roma pelo cristianismo!

A cultura romana pouco se alterou com a interação, e há quem defenda a idéia de que, no processo, o cristianismo perdeu muito daquilo que o distinguia.

Porém, no caso da interação com Patrício, a Irlanda, carecendo do poder e das implacáveis tradições romanas, é aceita pelo cristianismo, que a tranforma em Algo Novo, algo jamais visto: uma cultura cristã onde a escravidão e o sacrifício de seres humanos tornam-se inadmissíveis, e onde a guerra, embora impossível de ser erradicada, diminui de maneira considerável.

Ocorre que os irlandeses eram verdadeiros aficionados do combate físico, e seria impossível que as lutas entre tribos desaparecessem completamente. Mesmo assim, as novas leis, influenciadas pelas normas do Evangelho, muito inibiam tais conflitos, determinando que só era permitido recorrer às armas em causas graves.

No momento em que os filhos guerreiros do coração de Patrício, convertidos, depõem as espadas, atiram longe as facas usadas nos sacrifícios e deixam de lado as correntes da escravidão, tornam-se irlandeses e irlandesas.

Com efeito, a sobrevivência de uma identidade psicológica irlandesa é uma das maravilhas da história da Irlanda.

Ao contrário dos Padres da Igreja continental, os irlandeses jamais se preocuparam em demasia com a erradicação das influências pagãs, às quais faziam vista grossa e demonstravam certo apreço. Festas pagãs continuaram a ser comemoradas, motivo pelo qual, hoje em dia, celebramos as festas irlandesas de May Day e hollowe'en.*

A experiência irlandesa é singular na história das religiões porque a Irlanda foi o único local onde o cristianismo foi introduzido sem derramamento de sangue.

Não há mártires irlandeses (a não ser quando, 11 séculos após Patrício, Elisabeth I encarrega-se de criá-los).

Essa carência de mártires incomodava os irlandeses, aos quais uma morte gloriosa e violenta representava um emocionante desfecho para a vida.

Uma vez que toda a Irlanda havia recebido o cristianismo sem luta, os irlandeses teriam de encontrar alguma nova modalidade de martírio, algo ainda mais interessante do que as histórias terríveis que começavam a lhes chegar às mãos, vindas do continente europeu: as chamadas 'martirologias' com as quais Patrício e seus sucessores ensinavam leitura.

No final do século V, início do século VI, os irlandeses encontraram um solução, a qual denominaram o 'Martírio Verde', em oposição ao tradicional 'Martírio Vermelho', caracterizado pelo derramamento de sangue.

Com o propósito de estudarem as Escrituras e aproximarem-se de Deus, os Mártires Verdes abandonavam o conforto e os prazeres da sociedade e isolavam-se no topo de uma montanha, ou em uma ilha deserta, em suma, em algum local fora da jurisdição tribal.

Todavia, em pouco tempo, com a crescente organização de monastérios, os desejos extremos do Martírio Verde foram abandonados em favor do monasticismo, movimento que, embora capaz de apoiar e mesmo incitar excentricidades, ao mesmo tempo, sujeita tais tendências a um contrato social.

Uma vez que a Irlanda carecia de cidades, os estabelecimentos monásticos desenvolveram-se e tornaram-se os primeiros centros populacionais, sedes de prosperidade, arte e conhecimento, sem precedentes na história do país.

A generosidade irlandesa estendia-se não apenas a uma grande variedade de pessoas, mas, também, a uma variedade de idéias.

Tão despreocupados com respeito à ortodoxia de pensamento quanto o eram com relação à uniformidade da prática monástica, os irlandeses acolheriam em suas bibliotecas tudo o que lhes estivesse ao alcance das mãos. Estavam determinados a nada excluir.

Com uma catolicidade despojada, os clérigos que defendiam um pensamento convencional, e que haviam sido treinados para valorizar a literatura cristã, abrem um grande espaço à moralidade dúbia dos clássicos pagãos.

A indicação mais clara, talvez, da situação do escriba e estudioso daquela época está contida em um poema irlandês de quatro estrofes, interpolado em um manuscrito do século IX, cujo erudito conteúdo inclui comentários sobre Virgílio, em latim, e uma lista de provérbios gregos:


Eu e Bichano, meu gato,
Praticamos o mesmo ato;
Caçar rato é sua alegria,
Caçar palavra, minha agonia.


Mas dá muito gosto ver
Trabalharmos com prazer;
Em casa, sempre ao batente,
Juntos, distraímos a mente.


Ele prega o olho no muro,
Esperto, enxerga no escuro;
Eu prego o olho no papel,
E do saber sou um réu.


Assim, vivemos em paz,
Eu e Bichano, meu ás;
Lado a lado pela vida,
Cada um na sua lida.


Os livros eram, como diríamos no jargão de hoje, abertos e multifacetários e intertextuais, verdadeiros banquetes em que os escribas incluíam um pouco de tudo que os interessasse em termos culturais, linguísticos e estilísticos. Não voltaríamos a encontrar esse tipo de autor até James Joyce escrever Ulisses.

Os irlandeses receberam o letramento à sua maneira, como algo lúdico.

Puseram-se, então, a inventar idiomas. Os integrantes de uma sociedade secreta, formada no final no século V (período imediatamente após a consolidação do processo de letramento dos irlandeses), trocavam escritos em sofisticadas e impenetráveis variações do latim, a que chamavam Hisperica Famina e faz lembrar a linguagem onírica em Finnegna Wake, ou mesmo a linguagem de J.R.R. Tolkien criaria para seus elfos e duendes.

Nada fez brotar o lúdico espírito irlandês mais do que a própria atividade da cópia.

A princípio não havia, na Irlanda, grupos de escribas trabalhando no mesmo scriptorium, apenas eremitas e monges que atuavam isoladamente, em suas celas diminutas, ou ao ar livre, se as condições climáticas fossem propícias, copiando textos a partir de livros emprestados, trazendo o original antigo sobre um dos joelhos, o pergaminho novo sobre o outro.

Até mesmo os mais ilustres entre esses homens eram pessoas simples que apreciavam o contato com a natureza. (No século IX, um escriba irlandês afirma estar trabalhando embaixo de uma árvore, enquanto ouve o canto límpido de um pássaro, pulando de galho em galho.)

Ainda hoje, Nicolete Gray, no livro A History of Lettering, afirma, com relação à célebre página "Chi-Rho", que as três letras gregas - o monograma de Cristo - são "mais uma presença do que apenas letras".


"Custamos a crer", escreve Kenneth Clark, "que durante muito tempo - quase 100 anos - o cristianismo ocidental sobreviveu  apenso a locais como Skellig Michael, um rochedo situado a 30 quilômetros da costa irlandeza, projetando-se a 218 metros acima do nível do mar" (os 100 anos a que se refere abrangem um período que vai do final do século V, após a morte de Patrício, ao final do século VI, momento em que, conforme vamos constatar, os monges irlandeses restabelecem a ligação entre a Europa barbarizada e as tradições do letramento cristão).

Skellig Michael

Gregório de Tours escreveu um triste epitáfio para o letramento (na Europa continental) do século VI: "Nestes tempos em que a prática das letras declina, ou melhor, desaparece das cidades da Gália, não existe um estudioso sequer treinado em expressão escrita, capaz de descrever, em prosa ou em verso, um quadro que se passou."

Enquanto a Europa era incendiada, a vida cultural e religiosa na Irlanda prosseguiu em relativa paz, e, em certa altura do século VI o Monje Columba deu o passo que faltava ao instituir o Martírio Branco, pois, Columba tomou a atitude mais difícil para um irlandês, algo mais difícil até do que abrir mão da própria vida: deixar a Irlanda.




Se o Martírio Verde fracassara, o martírio que se seguiria seria tão marcante quanto o Vermelho; a partir daquele momento, todos os que seguiram o exemplo de Columba atenderam ao chamado do Martírio Branco, todos os que zarparam sob o céu branco da manhã, rumo ao desconhecido, para sempre.

Foi assim que a tradição monástica irlandesa começou a se espalhar além das fronteiras do país, pois os monastérios irlandeses já abrigavam milhares de internos, que, ao regressarem aos seus locais de origem, levavam consigo o conhecimento irlandês. Agora, os monges irlandeses iriam colonizar a Europa barbarizada, assim, os Mártires Brancos, trajados como druidas, em sóbrias túnicas brancas, percorreram a Europa, fundando monastérios.

Antes do final do século VIII, os exilados chegam à Morávia e até em Kiev existem vestígios dos Mártires Brancos.
______________________________________________________________________________

*O dia 1º de maio, conhecido como "Beltaine", era uma sagração da primavera, ocasião em que os participantes acendiam fogueiras, erigiam mastros enfeitados e desfrutavam de liberdade sexual; a ùltima noite de outubro, conhecida como Samain (Hallowe'en), marcava o início do inverno, sendo a noite em que fantasmas e outras criaturas nefastas, vindas de 'outro mundo', tinham permissão para assombrar os vivos.

Fonte:

Thomas Cahill, Como os irlandeses salvaram a civilização, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1999.

Poema de São Mancham de Offaly, discípulo de São Patrício


Concedei-me, Ó Cristo, a graça de achar
- Ó Filho do Deus vivo! -
Um casebre em local ermo,
Para servir-me de morada.

Um pequeno e claro poço,
Bem ao lado da casinha,
Onde a graça vai lavar
Os pecados do lugar.

Um belo bosque, ao redor,
A fim do vento proteger,
E aos pássaros dar um lar,
Santuário a cantar.

Que seja voltada para o Sul,
Com brisa fresca e regato,
Um pasto verde e bom solo
E frutos que caiam ao colo.

Que eu escolha companheiros,
Em número e qualidade,
Homens humildes e calmos,
E que saibam cantar salmos.

Quatro atrás de três, três de quatro,
O cântico a recitar;
Seis rezando à porta sul,
Seis ao norte a declamar.

Dois a dois, meus doze amigos,
Não posso o número errar,
Orando comigo ao Rei
Que dá-nos a luz e a lei.

Linda igreja, um lar para Deus,
Ornada com linhos finos;
Que o Evangelho na capela
Brilhe sempre à luz da vela.

Casebre que a todos guarde,
Que a todos dê um conforto,
Negue a lascívia e a arrogância,
Promova o bem e a constância.

Tudo aquilo que preciso
Tenho ganho, sem pagar;
Verduras, aves e peixe,
Frutas, mel e lenha em feixe.

Minha roupa e meu sustento
Vêm do Rei, tão singular;
Deixai-me, às vezes, a sós
A rezar por todos nós.






Fonte: 

Thomas Cahill, Como os irlandeses salvaram a civilização, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1999.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

KARL POPPER E A FALSEABILIDADE INEFICAZ


Karl Popper  em "A lógica da pesquisa científica" expõe o problema da indução, que é “a indagação acerca da validade ou verdade de enunciados universais que encontrem base na experiência” (p. 28). Uma vez que os enunciados singulares ou particulares são uma inferência indutiva, e os enunciados universais são hipóteses ou teorias, Popper afirma:

“Equivale isso a dizer que o enunciado universal baseia-se em inferencia indutiva. Assim, indagar se há leis naturais sabidamente verdadeiras é apenas outra forma de indagar se as inferências indutivas se justificam logicamente” (p. 28)

Seguindo a senda kantiana, Popper afirma que “o princípio de indução há de constituir-se num enunciado sintético, ou seja, enunciado cuja negação não se mostre contraditória, mas logicamente possível” (p. 29), para em seguida levantar o aspecto contraditório deste princípio empírico-indutivo, pois:


"é supérfluo e deve conduzir a incoerências lógicas [...] Pois o princípio da indução tem de ser, por sua vez, um enunciado universal [...] a tentativa de alicerçar o princípio da indução na experiência malogra, pois conduz a uma regressão infinita [...] Kant procurou vencer a dificuldade admitindo que o princípio de indução (que ele apresentou como “princípio da causação universal”) é “válido à priori”” (p. 29)

Popper afirma que a “lógica da inferência provável, ou lógica da probabilidade” conduz a uma regressão infinita ou à doutrina do apriorismo kantiano (p. 30), e, para evitar tais armadilhas lógicas, que julgou encontrar tanto no probabilismo quanto no apriorismo, propõe sua teoria do método dedutivo de prova "ou de concepção segundo a qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada” (p. 30).

Esta proposta, do método dedutivo de prova, se funda em uma distinção entre psicologia do conhecimento e lógica do conhecimento, esta se preocupando com "relações lógicas" aquela com "fatos empíricos" (p. 31), e, assim, para Popper a lógica indutiva é inadequada. por ser uma invasão de problemas psicológicos no campo dos problemas epistemológicos, razão pela qual postula a eliminação do que julga ser um tipo de psicologismo, indevido no âmbito da pesquisa científica, isto é, postula uma forma de "neutralidade científica".

Popper afirma o "axioma" de que “o trabalho do cientista consiste em elaborar teorias e pô-las à prova” (p. 31), e, assim o:

"estágio inicial, o ato de conceber ou inventar uma teoria […] A questão de saber como uma idéia nova ocorre ao homem […] não interessa à análise lógica do conhecimento científico” (p. 31).
Neste ponto há uma reminiscência de David Hume, em um sentido inverso ao proposto pelo filósofo inglês, pois enquanto Hume se preocupa com a origem das idéias com base  nas relações empíricas de fato, para Popper a lógica do conhecimento científico diz respeito não a questões de fato, mas a questões inerentes às relações lógicas que  validam as teorias, pois para "que um enunciado possa ser examinado logicamente sob esse aspecto, deve ter-nos sido apresentado previamente” (p. 31)

Então, tal como David Hume, Kant e demais filósofos cartesianos, Popper se apega à tese de existência de um pressuposto limite do conhecimento humano, com base em alguma precondição auto-limitadora.

Popper nega a possibilidade de autoconhecimento e transcendência, ao afirmar que “não existe um método lógico de conceber idéias novas ou de reconstruir logicamente esse processo […] Toda descoberta encerra um “elemento irracional” ou “uma intuição criadora”, no sentido de Bergson” (p. 32)
A intuição é irracional? O processo de constituição de ideias racionais é irracional? Para Karl Popper, sim, é irracional, inclusive, ele cria uma nova morada para a incognoscível "coisa em si" kantiana, ao afirmar o que livremente denominamos de um mistério inefável relativo ao nascimento das ideias.

Nesta toada, Popper afirma que o “método de submeter criticamente à prova as teorias, e de selecioná-las conforme os resultados obtidos, acompanha sempre as linhas expostas a seguir” (p. 33) possui os seguintes passos:

1º – Comparação lógica das conclusões – coerência


2º – Investigação da forma lógica (empírica, científica ou tautológica)


3º – Comparação com outras teorias (avanço científico?)


4º – Comprovação da teoria por meio de aplicações empíricas das conclusões que dela se possam deduzir


Pelo que pudemos observar até aqui, Popper define que o processo de apuração da prova científica é necessariamente de base dedutiva, num processo circular de caráter eminentemente teórico, cuja conclusão se dará pelo teste empírico das "conclusões" obtidas de forma dedutiva, percebo que tal processo é uma forma elaborada de reafirmar a precedência do pensamento sobre a matéria, preconizado por Descartes.

O processo se inicia com “predições” na forma de enunciados “que não sejam deduzíveis da teoria vigente” (p. 33), submetida à apreciação da comunidade científica, e, após, sua validade é estabelecida mediante a prova científica de cunho experimental, pois na "medida em que a teoria resista a provas pormenorizadas e severas […] foi “corroborada” pela experiência passada” (p. 34).

Popper busca demonstrar que não se supõe a verdade da teoria, a partir de enunciados particulares, nem que a ciência é oriunda da revelação empírica “verificável”, e, por fim, define que a superação do "problema da indução" é obtida pela aplicação da prova lógico-dedutiva testada empiricamente, com base no consenso acadêmico-científico.


Este tipo de colocação implica no "problema da demarcação" consistente no “problema de estabelecer um critério que nos habilite a distinguir entre crenças empíricas, de uma parte, e a Matemática e a Lógica, bem como os sistemas “metafísicos”, de outra” (p. 35), e neste ponto, nos encontramos, novamente, sob a sombra do pensamento de David Hume, pois revela-se que Popper participa do preconceito moderno contra o conceito de verdade transcendente (substancial e essencial) ao objeto da ciência, uma vez que esta se ocupa de bens materiais e/ou mensuráveis.

Demarcar, neste caso, é justificar a cegueira para tudo o que não é considerado inserido dentro do limite do corte metodológico, para depois afirmar que o objeto recortado é a totalidade daquilo que podemos apreender.




Popper relata neste ponto:

“Se, acompanhando Kant, chamamos ao problema da indução “problema de Hume”, poderíamos chamar ao “problema de Kant” o problema da demarcação” (p. 35)

E prossegue distinguindo os velhos positivistas que defendem conceitos derivados da experiência, dos positivistas modernos que consideram a ciência um "sistema de enunciados”, não um sistema de conceitos, e, que “os positivistas realmente desejam não é tanto uma bem sucedida demarcação, mas a derrubada total e a aniquilação da Metafísica” (p. 36).



Popper ao criticar o indutivismo típico de Wittgenstein, que define a redução da linguagem a proposições elementares, portadoras de significados dotados de sentido, com base empírica, lembra que “as leis científicas também não podem ser logicamente reduzidas a enunciados elementares da experiência” (p. 37).

Após tais considerações, que criticam a redução da ciência à linguagem originada numa base empírica, Popper define o critério de demarcação, como um objeto de consenso, e por isso imune às contradições da indução, pois é uma “proposta para que se consiga um acordo ou se estabeleça uma convenção” (p. 38), e, mais uma vez, afirma a irracionalidade da razão em seu aspecto prático e empírico, como forma concreta de tomada de decisão, e que: 

“A determinação desse objetivo é, em última análise, uma questão de tomada de decisão, ultrapassando, por conseguinte, a discussão racional” (p. 39)

Portanto, antes de haver uma qualquer pesquisa científica, há a prevalência de uma decisão "política" no sentido de uma práxis, cujo caráter empírico gera a demarcação do âmbito do objeto de estudo da própria ciência.

Após fundamentar o que julga ser o fundo social-político-irracional da demarcação do conhecimento científico, Popper descreve que o seu sistema teórico objetiva estabelecer um efetivo “sistema que se denomina “ciência empírica” que pretende representar apenas um mundo: o “mundo real”, ou o “mundo de nossa experiência”" (p. 40)

Neste sentido, de forma esquemática descrevo o sistema teórico de Popper:

  • Adoção de enunciados sintéticos (não-contraditórios; mundo possível)

  • Aplicação do critério de demarcação (não-metafísico = representar um mundo de experiência possível)
Karl Popper
E, enfim, chegamos à necessidade da "falseabilidade", como "critério da demarcação", para se contrapor ao critério de demarcação inerente à lógica indutiva implica na criação do dogma positivista do significado fundado em dados empíricos, que é fundado no constante julgamento sobre a verdade ou falsidade do conhecimento, com base em dados oriundos da indução, pelo que Popper afirma:

“Contudo, só reconhecereis um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema” [...]“Em outras palavras, não exigirei que uma sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recursos a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, uma sistema científico empírico” (p. 42)


Popper erige seu critério da falseabilidade com base na “assimetria entre verificabilidade e falseabilidade, assimetria que decorre da forma lógica dos enunciados universais. Estes universais nunca são deriváveis de enunciados singulares, mas podem ser contraditados pelos enunciados singulares" (p. 43)





Para que sejam reconhecidos como verdades científicas os enunciados lógico-hipotéticos, expressados mediante enunciados universais obterão sua validação, ou invalidação, mediante enunciados singulares oriundos da experiência científica, mediante o teste empírico de uma determinada hipótese previamente erigida, pois “aquilo que caracteriza o método empírico é sua maneira de expor à falsificação, de todos os modos concebíveis, o sistema a ser submetido à prova” (p. 44).

Para Popper “enunciados só podem ser logicamente justificados por enunciados” (p. 45), e “a objetividade dos enunciados científicos reside na circunstância de eles poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste” (p. 46), assim sendo, classifica-os em:

  • Enunciados científicos objetivos

  • Enunciados psicológicos subjetivos




Popper condena à morte todos os princípios metafísicos não-falseáveis (princípio da identidade, princípio do terceiro excluído, princípio da não contradição, etc.), pois são inverificáveis empiricamente:

“os enunciados básicos devem ser por sua vez suscetíveis de teste intersubjetivo, não podem existir enunciados definitivos em ciência – não pode haver, em ciência, enunciado insuscetível de teste e, consequentemente, enunciado que não admita, em princípio, refutação pelo falseamento de algumas das conclusões que dele possam ser deduzidos” (p. 49)
Em síntese:

a) o "problema da indução" ou "problema de Hume" faz surgir a necessidade de uma regressão infinita, que pode implicar na aceitação de inferências probabilísticas, ou a aceitação de juízos apriorísticos, o que invalidaria a aceitação do método empírico-indutivo, e, assim, afirma que o método científico deve ser de base dedutivo-empírica na "concepção segundo a qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada” (p. 30).


b) o "problema da demarcação" ou "problema de Kant" se origina na necessidade de eliminar a abordagem positivista, que incorre no erro inerente ao "problema da indução", para considerar que o objetivo da ciência não é a "a derrubada total e a aniquilação da Metafísica” (p. 36), mas, sim, a busca objetiva do conhecimento, com base em  "um acordo ou se estabeleça uma convenção” (p. 38), que defina o objeto da ciência, uma vez que o momento que o antecede é inerentemente irracional, em seu aspecto prático e empírico, como forma concreta de "tomada de decisão" (p.39).

c) uma vez que seja reconhecido que a ciência deve partir de formulação lógica e dedutivas, será necessária a operação do "critério da falseabilidade", mediante a qual somente seja reconhecido como verdade científica a hipótese racional e lógica que descreve enunciados universais, que será validada ou não, mediante enunciados singulares, oriundos do teste empírico.

d) assim, somente será considerado objeto da ciência o que o cientista for capaz de enunciar logicamente, mediante enunciados universais, testados e validados empiricamente, para, assim, obter "enunciados objetivos científicos", pois a falseabilidade somente opera perante enunciados universais verificáveis empiricamente, mediante teste intersubjetivo, que estabelecem "uma convenção, o que, implicitamente, é mais um anúncio da "morte de Deus", pois a falseabilidade é uma declaração implícita da "morte da metafísica", quando esta é considerada como um mero "enunciado psicológico subjetivo", uma vez que o critério da falseabilidade é a celebração do relativismo consensual de uma classe de iluminados.

POPPER, KARL R. Colocação de alguns problemas fundamentais. A lógica da pesquisa científica. 16. ed. Tradução Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2008, p. 27-50. 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

OLAVO DE CARVALHO E O SIMBOLISMO GEOMÉTRICO


"Qualquer sistema simbólico é, assim, implicitamente multidimensional, e a geometria não teria como escapar disso, admitam-no ou não os geômetras modernos.

Ora, um ponto, se não tem extensão, tem, no entanto, dimensão, ao contrário do que se crê, pois ele deve estar em alguma direção, sob pena de não estar em parte alguma, isto é, de não existir.

Pois bem, em quantas direções está um ponto? Está em todas as direções ao mesmo tempo, pois qualquer linha que se imagine, em qualquer plano que esteja, terá sempre uma paralela que passe necessariamente por esse ponto.

O ponto é assim, a figura que, não possuindo extensão, está simultaneamente em todas as direções e possui, portanto, a totalidade das dimensões.

Nesse sentido é que o ponto representa o princípio lógico e ontológico de onde emergem as figuras, e não apenas um 'elemento' constitutivo destas; pois uma elemento, para contribuir à formação da figura, deveria somar-se ou articular-se a outros elementos da mesma espécie, com o que cairíamos no contra-senso já assinalado de a soma de elementos inextensos acabar produzindo extensão; ao passo que um princípio formativo contém necessariamente em si a chave de todos os fenômenos que produz, não precisando somar-se ao que quer que seja para produzi-los, e pertencendo mesmo a uma ordem de realidade distinta e superior àquela onde se dão esses fenômenos.

Possuindo, assim, todas as direções e dimensões, o ponto contém também a chave formativa de todas as figuras. Estas, portanto, não poderão formar-se por soma de pontos, mas, ao contrário, por supressão de direções e dimensões do ponto.

Uma reta será, assim, definida como uma única das muitas direções que atravessam um ponto; um plano, como duas; o espaço, como três. As várias direções e dimensões podem ser assim consideradas como pontos-de-vista segundo os quais o ponto pode ser enfocado; e as figuras geométricas, como combinações e articulações desses pontos-de-vista.

Se um ponto, considerado em si mesmo, tem todas as direções, considerado como um 'elemento' de uma reta passará a ter uma única direção, em função, precisamente, da limitação unidirecional que define essa reta.

As dimensões e figuras são, desse modo, e por assim dizer, 'subjetivas' em relação ao ponto, pois constituem apenas maneiras de encará-lo, enquanto o ponto é 'objetivo', pois, contendo em si todos os pontos-de-vista, não depende de nenhum deles para existir."

Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Coleção Eixo, Nova Estella Editorial Ltda., 1986, p. 76-7.

CIÊNCIAS TRADICIONAIS E A CORRESPONDÊNCIA ENTRE NÚMEROS, FACULDADES COGNITIVAS, CATEGORIAS E PLANETAS, SEGUNDO OLAVO DE CARVALHO






Olavo de Carvalho, após demonstrar o "caráter sacro da ciência da lógica", por meio de demonstrações da correspondência entre as leis da lógica e a realidade cósmica, adentra no estudo das categorias com base em analogias que revelam o quanto este mundo ainda é espantoso:







"Para estudarmos esta parte, devemos partir das sete faculdades cognitivas mencionadas no esoterismo muçulmano e na filosofia escolástica, e das quais já falei em trabalhos anteriores, motivo pelo qual me dispenso de explicá-las aqui. Basta dizer que estas sete faculdades são as seguintes, com suas correspondências numéricas e astrológicas:

1                          Intuição                                Sol


2                          Espírito vital                        Lua


3                          Pensamento ou discurso   Mercúrio


4                          Imaginação ou memória    Vênus


5                          Conjetura ou opinião          Marte


6                          Vontade                                Júpiter


7                          Razão                                   Saturno


Se as faculdades cognitivas são, na estrutura interior do homem, sete modos de conhecer, é preciso que, na estrutura do real externo, lhes correspondam outros tanto modos de ser. Aos sete enfoques de que a nossa inteligência é capaz a realidade exterior responde responde oferecendo sete ângulos ou sete camadas. Não tem cabimento discutir aqui qual dos dois lados tem prioridade: interno ou externo são duas faces da mesma Verdade que, para manifestar-se, se desdobra em Inteligência, de um lado, e Presença, de outro.

Os sete modos de ser são chamados tradicionalmente, categorias ou antepredicamentos. A doutrina das categorias foi codificada no Ocidente por Aristóteles, mas tem uma origem muito mais antiga, como se vê pelo fato de que ela está registrada nos textos da lógica tradicional hindu, ou Nyaya (12).

Enfocando as categorias como contraparte objetiva e exterior das funções cognitivas, temos então os sete planetas como sete "regiões" do mundo imaginal (13), que é o mediador entre o interior e o exterior, entre o intelectual e o real, formando um ternário de correspondências:


Plano intelectual ou lógico        sete funções cognitivas
 

Plano imaginal                              sete formas imaginais ou "planetas"
 

Plano ontológico                          sete categorias ou modos de ser



Claro que esses ternários poderiam ser postos em correspondências com outros tantos ternários -- Céu, Terra e Homem, do taoismo; Spiritus, Anima e Corpus, da escolástica (e, no plano da psique, alma intelectiva, alma volitiva e alma sensitiva) e assim por diante. Mas estas associações são por demais evidentes e não é necessário insistir nelas aqui (14).

Quanto às categorias, elas são ao mesmo tempo conceitos lógicos e conceitos ontológicos. Do ponto de vista lógico, que é o mais fácil, elas podem ser definidas como "os gêneros de todos os gêneros", isto é, como as mais amplas claves de classificação concebíveis, a classificação de todas as classificações.

Por exemplo, se desejo classificar o conceito de "azul", posso enquadrá-la na classe "cor". O conceito de "cor", por sua vez, pode ser catalogado como "fenômeno ótico", e o fenômeno ótico cabe na classe das "qualidades sensíveis". Já as qualidades sensíveis podem ser enquadradas na categoria de "qualidade" (qualidade em sentido amplo e genérico), e com isto chegamos ao fim da linha. Se desejo definir o que é qualidade, o máximo que posso dizer é que uma "modalidade de ser", e isto é precisamente a definição de categoria. A qualidade é uma das categorias, tanto n sistema de Aristóteles como no sistema hindu.

Do mesmo modo, posso catalogar um cão como mamífero, o mamífero como animal, o animal como ser vivo, o ser vivo como ente, e o ente como "substância individual". Substância -- existência subsistente numa forma própria individual -- é outra categoria, nos dois sistemas apontados. E se perguntarem o que é substância, teremos de responder que é... uma modalidade de ser.

O sistema de Aristóteles assinala dez categorias, que os escolásticos, suprimindo as redundantes, reduziram para oito. Às duas últimas categorias dos sistema escolástico -- espaço e tempo -- podem ser resumidas num único conceito do sistema hindu, que é a categoria da ausência (15), porque todas as coordenadas que fixam um ente no espaço e no tempo não fazem mais do que situá-lo negativamente, isto é, pela sua relação com os lugares e momentos onde ele não está. Se enfocamos um ente como substância, ao contrário, estamos vendo o que há nele de realidade positiva e própria, no sentido mais amplo e afirmativo. A "substância" e a "ausência" (ou espaço-tempo) são, portanto, os dois extremos da cadeia das categorias: de um lado, a mais direta, positiva e afirmativa, de outro, a mais indireta, relacional, negativa.

Mediante este arranjo propiciado pela comparação do sistema de Aristóteles com o sistema hindu, temos então sete categorias:


Substância




Quantidade



Qualidade



Relação



Ação



Paixão



Ausência (espaço-tempo)


A palavra grega kathegorein, que é a origem de "categorias", significa "atribuir" ou "predicar". As categorias são determinações primordiais, genéricas, que podemos atribuir a todo e qualquer ser, mesmo antes de saber o que seja; daí sua denominação latina, antipraedicamenta, que quer dizer aquilo que vem antes da predicação. São precondições de toda predicação. São precondições de toda predicação. Tudo o que possamos predicar, tudo o que possamos atribuir a um ente, há de estar incluído numa das categorias. Independentemente do que seja propriamente um ente qualquer, dele já sabemos, em princípio, que:

a) ele existe ou é alguma coisa (categoria da substância);

b) que ou ele é uma unidade, ou é nulo, ou existe numa quantidade qualquer (categoria da quantidade);

c) que tem qualidades (categoria da qualidade);

d) que tem relações com outros entes (categoria da relação);

e) que exerce ou não algum efeito, desencadeia alguma consequência (categoria da ação);

f) que sofre, ou pode sofrer, ou não sofre o efeito da ação de outros entes (categoria da paixão);

g) finalmente, que está situado ou não em algum lugar e em algum momento do tempo, em algum ponto entre dois extremos que são, de um lado, estar em todos os lugares e todos os momentos e, de outro, não estar em nenhum (categoria da ausência, ou espaço-tempo).

Logo, tudo o que possamos saber de um ente sempre consiste nas sete respostas às perguntas colocadas pelas sete categorias: Existe, é real? Constitui unidade ou multiplicidade? Quais as qualidades que apresenta? Como se relaciona com os outros entes? Que efeito desencadeia? Que ações padece ou pode padecer? Onde e quando existe?

A prova mais evidente de que as categorias efetivamente abrangem tudo o que podemos predicar é que elas definem também os limites da linguagem: a cada categoria corresponde também um gênero de palavras (categoria morfológica) e um tipo de função que pode desempenhar na estrutura da frase (funções sintáticas):

I. À categoria da substância corresponde a categoria morfológica do nome, ou substantivo, que é precisamente a designação mais genérica da forma subsistente.

II. À categoria da quantidade corresponde o artigo e o pronome, cujas funções são bastante similares, e que diferenciam os entes em modo simplesmente quantitativo-formal (ele, este, aquele, o , a, os, as).

III. À categoria da qualidade corresponde o adjetivo, que assinala as qualidades que os entes manifestam.

IV. À categoria da relação corresponde a conjunção, que determina os entes pela simples forma de sua anexação a outros entes ou conceitos (este e aquele; isto porque aquilo; isto mas aquilo); é de se notar que a tipologia das conjunções as divide segundo os dois modos básicos da relação em geral, que são a coordenação e a subordinação.

V. À categoria da ação corresponde o verbo.

VI. À categoria da paixão corresponde o conceito geral de declinação e a categoria morfológica da preposição. Deve-se notar que, se a ação e a paixão são complementares e intercambiáveis funcionalmente, também o são a declinação e o verbo; pode-se dizer que a conjugação é a declinação do verbo (segundo a função do sujeito na frase) e a declinação é a conjugação do nome (conforme a direção da ação verbal, do ativo para o passivo e vice-versa). A categoria da preposição não é mais do que uma cristalização da declinação.

VII. À categoria da ausência ou espaço-tempo corresponde a categoria morfológica do advérbio.  De fato o advérbio tem uma função de especificar, de localizar, de circunstancializar através da atenuações ou ampliações, isto é, em última análise, de negações. Mediante elas, o advérbio situa desde fora -- desde coordenadas circunstanciais, acidentais -- a ação do verbo, a qualidade do adjetivo e a direção da preposição.

Estas indicações são dadas a título de mero esclarecimento, pois o estudo das categorias gramaticais não faz parte do intuito deste trabalho. A relação entre as faculdades cognitivas e as categorias, que é o que nos interessa, fica no entanto mais fácil de esclarecer mediante a comparação com as categorias gramaticais.

Antes, porém, de passarmos ao estudo dessa relação, é preciso observar -- se é que o leitor já não reparou -- que as categorias formam uma gradação crescente, do simples para o complexo, do direto para o indireto, do absoluto para o contingente, do afirmativo para o negativo (ou antes, da afirmação direta à negação-da-negação).

A escala das categorias mostra um modo progressivamente indireto e relacional de enfocar o ente, e cada uma das categorias tem uma forma numérica que a define e que é, afinal de contas, a verdadeira razão última das atribuições planetárias:

I. A categoria da substância faz aparecer o ente sob o signo da sua unidade, da absolutidade que é imanente a todo ente, por mais relativo que seja. Corresponde, portanto, ao número um.

II. A categoria da quantidade faz ressaltar essa unidade já não em modo direto, mas pela polaridade opositiva com o não-um, ou seja, com o múltiplo.

III. A categoria da qualidade ressalta as distinções entre as várias "unidades" que dessa polarização se destacam. Aqui o ente já é visto como um entre outros, destacando-se deles pelas qualidades que lhe são próprias.

IV. A categoria da relação faz surgir o ente já não como totalidade atual e real, mas como feixe de relações virtuais com um contorno formado de uma infinitude de outros seres. Corresponde ao número quatro, que é o dos elementos de uma proporção.

V. A categoria da ação faz surgir novamente o ente como expressão unitária, pois a ação é a expressão de uma substância, mas de uma substância já quantificada, qualificada e relacionada. Equivale ao número cinco, formando o esquema da cruz com quatro pontos mais um centro. É a expressão de um ente como totalidade das suas possibilidades relacionais, mas vistas em modo intrínseco.

VI. A categoria da paixão reenquadra o ente no seu contorno, mostrando as possibilidades de transformação e de integração em sistemas maiores que o abranjam. Corresponde ao número seis, que é o das direções do espaço. O ente, aqui, é visto como membro de um todo.

VII. Finalmente, a categoria da ausência abarca o ser na totalidade das relações espaço-tempo (e, implicitamente, número) que o determinam e enquadram desde fora. Corresponde ao número sete, que é o da cruz de seis pontas mais um centro, e que simboliza o sistema universal de coordenadas que localizam um ente. Cabe aqui uma pequena consideração, que é a de que a essência de um ente contém não somente a afirmação direta, positiva, do que este ente é, mas também, implicitamente, as diferenças que o separam de todos os demais entes. A categoria da ausência faz surgir então o sistema destas diferenças, como uma projeção inversa ou negativa do conteúdo positivo da essência.

Como se vê, caminhamos da substância à ausência, caminhamos de uma apreensão direta de uma quididade à determinação "posicional" do sistema das suas ausências.

É justamente nessa gradação que reside o princípio da correspondência entre as categorias e as funções cognitivas. Cada modalidade de um ente -- como unidade e totalidade em si, como unidade quantitativa, como qualidade diferenciada, como virtualidade relacional, como ação expressiva da substância, como parte de um todo e como sistema integral de suas diferenças --, cada modalidade de um ente é captada por uma faculdade cognitiva diferente. Isto quer dizer que cada uma das categorias ou modos de um ente surge diante da nossa cognição segundo uma condição psicológica diferente. O sistema planetário, como sistema das funções imaginativas, fornece assim o elo entre o enfoque lógico e o enfoque psicológico do conhecimento.

A intuição, por exemplo, capta o ser sob a categoria da substância, isto é, apreende-o na sua totalidade una, na sua quididade. Do ponto de vista lógico, a substância é a primeira de todas as categorias, de modo que ter apreendido a substância de um ente é, em modo implícito e sintético, conhecer tudo quanto nele é cognoscível; as demais categorias seriam apenas desdobramentos de propriedades do ente.

No entanto, do ponto de vista psicológico, a intuição é instantânea, portanto passageira e incomunicável. A intuição dá o conhecimento logicamente mais rico, da maneira psicologicamente mais pobre.


***



Deixaremos para outra ocasião o exame detalhado das relações entre as faculdades intelectuais e as categorias. Mas o que foi dito deve bastar para dar uma idéia do contorno e da direção que poderiam tomar tais estudos.



Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Coleção Eixo, Nova Estella Editorial Ltda., 1986, p. 43-51