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segunda-feira, 27 de abril de 2020

O QUE É UM HERÓI?





O trauma e a decepção são etapas no caminho da maturidade, pois nos habitua com nossa condição humana, humilde e nua diante dos desafios horríveis ou sagrados do dia-a-dia.


O trauma atual da nacionalidade é relacionado à constante queda de heróis ministeriais de um governo cujo cabeça é apelidado de Mito.

Quanto aos heróis tenho uma visão antropológica diversa da corrente, uma visão mimética e girardiana.

Herói é um conceito criado na literatura grega, o herói é trágico, é um personagem punido por suas culpas por atos imperdoáveis, pois seu destino cruel foi decidido pelos deuses, ele deverá ser sacrificado para salvar a Cidade.

Com Cristo revela-se que o herói é uma vítima inocente, que poderá ser perdoada e renascer liberta do destino da morte sem sentido, há uma promessa sagrada, provada pela Paixão e Ressurreição, que o liberta e torna-o, não mais um herói, mas, um mártir, em defesa da santidade.

Então, o que se deve mirar não é a condição humana e trágica, inerente ao mundo, mas a santidade que nos remunera com a vida eterna e bem aventurada.

domingo, 22 de março de 2020

SOBRE A EPIDEMIA DE MEDO

A imagem pode conter: sapatos
Penteu sendo dilacerado por Agave e Ino, vaso ático.

Nossa condição humana nos conduz a procurar racionalizar todos os fatos que nos afetam, mesmo que não tenhamos conhecimento de causa ou avaliado as consequências.

Esse processo de racionalização acaba por justificar o injustificável e sacralizar o que não deve ser considerado sagrado.

É o que assistimos neste exato momento em que o pânico renasce como religião, a religião do deus Pan que sacraliza o medo e contagia a multidão com o temor histérico da morte que causa o massacre de vítimas inocentes.

O atual emissário do deus do pânico é invisível, e deverá ser prevenido pela instituição do mistério do álcool gel e do papel higiênico que devem ser lançados antes e depois de qualquer contato humano, direto ou indireto, pois toda e qualquer pessoa é uma possível portadora da morte.

O medo da morte é contagioso!

O medo é mimetizado ao infinito, a multidão clama por milagres, e muitos governantes ungem-se como salvadores por meio do exercício do poder sem medida e sem cálculo, a razão de Estado foca-se em realizar sacrifícios rituais com fechamento de estradas, com quarentena indiscriminada, com o sacrifício dos fundamentos econômicos que possibilitam a sobrevivência da própria multidão, uma hecatombe suprema para aplacar o deus do pânico.

O medo da morte e o ato de lavar as mãos diante do furor da multidão é um ato cênico encenado desde Pilatos.

A razão é como a economia no sentido de ser uma pobre ferramenta sujeita aos humores dos tempos, a qualquer tempestade perde o sentido, torna-se uma nau levada pelos ventos e pelas ondas, tudo ficando sob o encargo de seu capitão, cuja força de liderança e sabedoria decisória evitará o naufrágio para que haja bom retorno ao porto.

Em suma, o caos atual é o pânico diante do medo da morte, o elemento natural é um vírus, mas a imunodeficiência espiritual está na perda da coragem perante o desafio de colocar a própria vida em risco, devemos evitar que a covardia seja a medida da racionalização das ações, sim devemos ser prudentes e preservar vidas humanas, mas devemos sobreviver por meio da luta e não da fuga, ainda há trabalho a fazer, ainda há necessidade de coragem para desafiar a morte.

terça-feira, 1 de maio de 2018

FICHAMENTO: O QUE É O SENTIMENTALISMO?



[...] uma importante característica do tipo de sentimentalismo [...] seu caráter público (p. 75)

[...] consequência de viver num mundo moderno, incluindo um mundo mental, tão amplamente saturado por produtos da mídia de massa. Nesse mundo, aquilo que é feito ou que acontece em privado não é feito ou não aconteceu absolutamente, ao menos não no sentido mais pleno possível. (p. 75-76)

A expressão pública do sentimentalismo tem consequências importantes. Em primeiro lugar, ela demanda uma resposta daqueles que a testemunharam. [...] Há, portanto, algo coercivo ou intimidador em exibições públicas de sentimentalismo. Tome parte ou, no mínimo, evite criticar. (p. 76)

Uma pressão inflacionária também age sobre essas exibições. [...] exibições emotivas cada vez mais extravagantes se tornam necessárias [...] (p. 76)

Em segundo lugar, exibições de sentimentalismo público não coagem apenas os transeuntes ocasionais [...], mas quando são suficientemente fortes ou disseminadas, começam a afetar políticas públicas. [...] permite que o governo jogue ossos para o público em vez de enfrentar os problemas de maneira determinada e racional, ainda que também inconvenientemente controversa. (p. 76)

Entre os defensores mais notáveis do sentimentalismo estava o filósofo americano Robert C. Solomon, que faleceu em 2007. Solomon acreditava, com razão, acho eu, que as emoções eram necessárias para toda atividade cognitiva e pensamento racional. Sem uma postura emocional em relação ao mundo, no fim das contas, ninguém faria nada, pensaria nada nem buscaria nada. Um estado de completa neutralidade emocional logo levaria à morte por inanição. (p. 76-77)

Solomon, porém, foi adiante. Em seu livro In Defense of Sentimentality [Em Defesa do Sentimentalismo], há um capítulo intitulado "Sobre o Kitsch e o Sentimentalismo", em que ele tenta defender o sentimentalismo refutando as objeções contra ele uma por uma. As objeções são seis, como se segue:

i. Que o sentimentalismo envolve ou provoca uma expressão excessiva da emoção.
ii. Que o sentimentalismo manipula nossas emoções.
iii. Que as emoções expressas no sentimentalismo são falsas ou fingidas.
iv. Que as emoções expressas no sentimentalismo são baratas, fáceis e superficiais.
v. Que o sentimentalismo é autoindulgente, impedindo conduta e respostas apropriadas.
vi. Que o sentimentalismo distorce nossas percepções e interfere no pensamento racional e na compreensão adequada do mundo. (p. 77)

"A questão não é se deve haver emoções, mas como, quando e em que grau elas devem ser expressadas, e que papel elas devem desempenhar na vida humana" (p. 78, itálicos no original)

"Claro que culturas diferentes podem diferir em relação a quanta emoção deve ser expressada; porém, duvido muito de que haja uma só em que não exista a ideia de um a expressão excessiva da emoção (ainda que isso seja apenas uma ideia implícita, manifestada pela desaprovação social)" (p. 78)

"Assim, há um consenso universal de que a expressão da emoção deveria ser consoante tanto com a própria emoção quanto com a situação social, ainda que não haja acordo quanto ao ponto preciso em essa expressão se torna excessiva. [...] (p. 79)

"Sobre o razoável pressuposto de que a emoção está sob controle consciente, o grau em que ela é expressa é, portanto, uma questão moral. Aquilo que é permissível e até louvável entre pessoas íntimas e confidentes é repreensível entre estranhos. De fato, o desejo ou a exigência de que todas as emoções  sejam igualmente expressáveis em todas as ocasiões e em todos os momentos destrói a possibilidade mesma de intimidade. Se o mundo inteiro é seu confidente, então ninguém é. A distinção entre o privado e o público é abolida, e a vida, por conseguinte, fica mais rasa. (p. 79)

"Mas não é só a expressão da emoção (que Solomon mistura com a própria emoção) que deve ser disciplinada, é a própria emoção que deve ser sujeita à disciplina." (p. 79)

"[...] O apetite cresce com a alimentação; a emoção também cresce com sua expressão." (p. 80)

"[...] o caráter de um homem é em parte obra dele mesmo, e aquilo que de início demanda esforço e autocontrole acaba se tornando uma disposição." (p. 80)

"[...] um ponto cartesiano da epistemologia moral: estou encolerizado, portanto estou certo." (p. 81)

"[...] O calor confortante e gratuito do sentimento é um fim em si mesmo, uma mera muleta para a autoestima." (p. 82)

"Além disso, quando o sentimentalismo se torna um fenômeno público de massa, ele se torna manipulador de um jeito agressivo: exige que todos tomem parte. Um homem que se recuse, afirmando não acreditar que o pretenso objeto de sentimento seja digno de exibição demonstrativa, coloca-se fora do âmbito virtuoso e torna-se praticamente um inimigo do povo. Sua culpa é política, uma recusa em reconhecer a verdade do velho adágio vox populi, vox dei - a voz do povo é a voz de Deus. O sentimentalismo então se torna coercitivo, isto é, manipulador de maneira ameaçadora." (p. 82)

"Em um estado de sentimentalismo, certamento do tipo vivido em público, a pessoa é mais comovida pelo fato de ser comovida do que por aquilo que supostamente a está comovendo. Além disso, está interessada em que todos vejam o quão comovida está. O trigo do sentimento genuíno é logo perdido no joio das considerações secundárias; e, tendo o exagero uma lógica própria, o joio tende a aumentar." (p. 83)

"Sem dúvida, todos nós caímos no sentimentalismo às vezes (porque é mesmo estranho que a música barata seja tão forte), sem que ninguém sogra nenhum mal. [...] Mas aquilo que é inofensivo em privado não é necessariamente inofensivo, muito menos benéfico, em público; e aqueles que acham que sua conduta privada e pública deveria ser sempre a mesma, por medo de na diferenciação introduzir a hipocrisia, têm uma visão da existência humana que carece de sutileza, de ironia e, sobretudo, de realismo." (p. 84-5)

"Contudo, diz Solomon, pessoas como os filósofos gostam de usar a razão e a lógica não só para obter as verdades que resultarão de seu uso, mas porque fazer isso é satisfatório em si mesmo, e também um traço distintivo em relação aos outros. Num mundo de individualistas, se não de indivíduos, isso é importante." (p. 85)

"Será então que condenamos os filósofos, como se fossem autoindulgentes? A resposta é sim, se seu apego à (digamos) satisfação de parecer mais inteligentes do que o resto do mundo é maior do que seu apego à verdade ou à sabedoria, ou tão grande que são incapazes de mudar, se não suas mentes, ao menos suas palavras. Outra vez, o orgulho pode obstruir o caminho da busca da verdade: preferimos vencer uma discussão com sofismas a chegar à verdade por uma investigação honesta, ainda que os melhores dentre nós sorrateiramente mudem de opinião após termos vencido aquilo que é correto usando jogo sujo e sofismas." (p. 85)

"A última acusação contra o sentimentalismo citada por Solomon é que ele distorce nossas percepções e impede o pensamento racional e o entendimento. O sentimentalismo demanda o apego a um conjunto de crenças distorcidas a respeito da realidade, e também à ficção da inocência e da perfeição, atuais e potenciais." (p.86)

"Quando se permite que o emocionalismo transborde para a esfera das políticas públicas, não é provável que disse saia algo de bom, exceto por acaso." (p. 87)

"O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento. Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de um condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade." (p. 87)

"A necessidade de julgamento implica que nossa situação no mundo, assim como a de outras pessoas, é quase sempre incerta e ambígua, e que nunca se pode fugir da possibilidade de erro. em nome de uma vida mental quieta, portanto, queremos simplicidade, não complexidade: o bem deveria ser inteiramente bom, o mal inteiramente mau; o belo inteiramente belo, e o feio inteiramente feio; o imaculado inteiramente imaculado, o e estragado inteiramente estragado; e assim por diante." (p. 87-8)

"[...] não quero sugerir que não exista distinção entre bem e mal e nada que distinga o assassino da vítima. Contudo, insinuar a mentes jovens que a história humana (e, por extensão, a vida humana inteira) tem sido e não é nada mais do isto, um conflito entre vítimas e perpretadores, entre oprimidos e opressores, entre bem e mal, é fazer com que seja improvável que elas desenvolvam aquele senso de proporções sem o qual (como afirmei alhures) a informação não passa de uma forma superior de ignorância." (p. 88)

"[...] Para muitas crianças nas escolas, os estudos do genocídio parecem ter tomado o lugar de todo e qualquer outro aspecto da história." (p. 88)

domingo, 15 de abril de 2018

TÉCNICAS DE MANIPULAÇÃO PSICOLÓGICA: O CONFORMISMO



A tendência ao conformismo foi estudada por Asch, em sua célebre experiência. Ao sujeito avaliado, apresenta-se uma linha traçada sobre uma folha, além dela, três outras linhas de comprimentos diversos. Em seguida, se lhe pede para apontar, entre essas três linhas, aquela cuja medida é igual à da linha-padrão. Por exemplo: esta última mede quatro polegadas, enquanto as linhas que devem ser a ela comparadas medem, cada qual, três, cinco e quatro polegadas. À experiência estão presentes indivíduos associados ao pesquisador, que devem igualmente responder à questão. Estes, cujo papel real na experiência é ignorado pelo avaliado, dão, nos ensaios válidos, a mesma resposta errônea, combinada anteriormente à experiência. O indivíduo testado tem duas alternativas: ou dar uma resposta errônea ou se opor à opinião unânime do grupo. A experiência é repetida diversas vezes, com diferentes linhas-padrão e linhas para comparar. Há ocasiões em que os colaboradores respondem de modo correto (ensaios neutros). Aproximadamente três quartos dos indivíduos realmente avaliados deixam-se influenciar nos ensaios válidos, dando uma ou várias respostas errôneas. Assim, 32% das respostas dadas são errôneas, mesmo que a questão não ofereça, naturalmente, qualquer dificuldade. Na ausência de pressões, o percentual de respostas corretas chega a 92%. Verifica-se também que os indivíduos conformistas, interrogados após a experiência, depositaram sua confiança na maioria, decidindo-se pelo parecer desta, apesar da evidência perceptiva. Sua motivação principal está na falta de confiança em si e em seu próprio julgamento. Outros conformaram-se à opinião do grupo para não parecer inferiores ou diferentes. Eles não têm consciência de seu comportamento. Assim, a percepção de uma pequena minoria de sujeitos avaliados foi modificada: seus membros enxergaram as linhas tais como a maioria as descreveu. Lembremos que o indivíduo não sofria qualquer sanção caso errasse ao responder, da mesma forma que, na experiência de Milgram, ninguém se iria opor a quem desejasse abortar a experiência.

Convém notar que, se um dos colaboradores dá a resposta correta, o indivíduo avaliado então se sente liberto da pressão psicológica do grupo e dá, igualmente, a resposta correta, resultado que ilustra bem o papel dos grupos minoritários. A realidade social, contudo, é para estes bem menos favorável, uma vez que as pressões ou sanções são aí muito intensas.

BERNARDIN, Pascal. Maquiavel Pedagogo - ou ministério da reforma psicológica, 1ª ed., Campinas: Ecclesiae e Vide Editorial,  p.18-19


Obras referidas:

S. E. Asch, Influence interpersonnelle, Les effets de la pression de groupe sur la modification et la distorcion des jugements, In: C. Faucheux, S. Moscovici (eds.). Psychologie sociale théorique et expérimentale, Mouton Editeur, Paris, 1971, p. 235-245.

TÉCNICAS DE MANIPULAÇÃO PSICOLÓGICA: A SUBMISSÃO À AUTORIDADE



"Em uma série de experiências célebres, o professor Stanley Milgram evidenciou de maneira espetacular o papel da submissão à autoridade no comportamento humano. Milgram repetiu suas experiências com 300 mil pessoas, experiências estas que foram produzidas em numerosos países. Os resultados abtidos são indiscutíveis. A experiência de base envolve três pessoas: o pesquisador, um suposto aluno, que na verdade é um colaborador do pesquisador, e o verdadeiro objeto da experiência, o professor. A experiência pretende supostamente determinar a influência das punições no aprendizado. O professor deve então mostrar ao suposto estudante extensas listas de palavras e, em seguida, testar sua memória. Em caso de erro, uma punição precisa ser imposta ao colaborador. O objeto da experiência ignora, naturalmente o status real do colaborador, e crê que este, como ele próprio, não tem qualquer relação com a organização da experiência. As punições consistem em descargas elétricas de 15 a 450 volts, as quais o próprio professor deve acionar contra o suposto estudante, situado em uma peça vizinha. A voltagem das descargas aumenta a cada erro cometido. O colaborador, é claro, não recebe essas descargas, contrariamente ao que acredita o professor - este é quem recebe, no início do experimento, uma descarga de 45 volts, para "assegurar-se de que o gerador funciona". As reações que o colaborador deve simular estritamente codificadas: a 75 volts ele começa a murmurar; a 120 volts, ele reclama; a 150 volts ele pede que parem com a experiência e, a 285 volts, ele lança um grito de agonia, depois do qual se cala completamente. É assegurado ao professor que os choques são dolorosos mas não deixam sequelas. O pesquisador deve zelar para que a experiência chegue a seu termo, tratando de encorajar o professor, caso este venha a manifestar dúvidas quanto à inocuidade da experiência ou caso deseje encerrá-la. Também esses encorajamentos são estritamente codificados: à primeira objeção do professor, o pesquisador lhe responde: "Queira continuar, por favor"; na segunda vez: "A experiência exige que você continue"; na terceira vez: "É absolutamente essencial que você continue"; na quarta e última vez: "Você não tem escolha. Deve continuar". Se o professor persiste em suas objeções após o quarto encorajamento, a experiência é encerrada.




O resultado da experiência é espantoso: mais de 60% dos professores levam-na até o final, mesmo convencidos de que estão realmente administrando correntes de 450 volts. Em alguns países a taxa chega a alcançar 85%. É preciso acrescentar que a experiência é extremamente penosa para os professores, e que eles vivenciam uma forte pressão psicológica mas seguem, não obstante, até o fim.

Há algo, porém, ainda mais inquietante. No caso de o professor limitar-se a simplesmente ler a lista de palavras enquanto as descargas são enviadas por outra pessoa, mais de 92% dos professores chegam a concluir integralmente a experiência. Assim, uma organização cuja operação é setorizada pode-se tornar um cego e temível mecanismo: "Esta é talvez a lição fundamental de nosso estudo: o comum dos mortais, realizando simplesmente seu trabalho, sem qualquer hostilidade particular, pode-se tornar o agente de um processo de destruição terrível".

Houve quem considerasse a hipótese de que, em tais experimentos, os professores devam livre curso a pulsões sádicas. Mas essa hipótese é falsa. Se o pesquisador se afasta ou deixa o local de experiência, o professor logo diminui a voltagem das descargas. Quando podem escolher livremente a voltagem, a maioria dos professores emite a voltagem mais baixa possível.

A autoridade do pesquisador é um fator fundamental. Se já de início o colaborador pede que o pesquisador troque de lugar consigo, encorajando em seguida o professor a continuar a experiência, agora sobre o pesquisador, suas recomendações não têm efeito, uma vez que ele não está investido de qualquer autoridade.

Quando a experiência envolve dois professores, um dos quais, atuando em colaboração com o pesquisador, abandona precocemente a experiência, em 90% dos casos o outro professor segue-lhe o exemplo.

Finalmente, e é isto o que mais chama a atenção, nenhum professor tenta deter a experiência ou denunciar o pesquisador. A submissão à autoridade é, portanto, muito mais profunda do que aquilo que os percentuais acima sugerem. A contestação se mantém socialmente aceitável.

Quais conclusões se podem tirar dessa experiência inúmeras vezes repetida? Inicialmente, que existem técnicas muito simples que permitem modificar profundamente o comportamento de adultos normais. Em seguida, que essas técnicas podem ser, e são, objeto de estudos científicos aprofundados. Enfim, que seria bastante surpreendente que tais trabalhos fossem executados por mero amor à ciência, sem qualquer aplicação prática."

BERNARDIN, Pascal. Maquiavel Pedagogo - ou ministério da reforma psicológica, 1ª ed., Campinas: Ecclesiae e Vide Editorial,  p.13-18

Obras  referidas:

D. Winn. The Manipulated Mind. London, The Octagon press, 1984.

R. V. Joule, J. L. Beauvois. Soumission et idéologies. Paris, PUF, 1981.

R. V. Joule, J. L. Beauvois. Petit traité de manípulation à l'usage des honnêtes gens. Grenoble. Presses universitaires de Grenoble, 1987.

S. Milgram, Soumission à l'autorité, Paris, Calmann-Lévy, 1974.

S. Milgram, Obecience to Authority, New Yory, Harper & Row, 1974. Citado por Winn, Op. cit., p. 47.

FICHAMENTO: A ORIGEM DA LINGUAGEM



Ora, a polaridade de vestuário e linguagem é a polaridade do "antes" e do "depois". (p. 175)

Uma mesma vida tem de ser investida em seu aspecto de algo que vai ser no futuro e de ser lembrada no aspecto de coisa passada. (p. 175)

Logo, investidura e registro são atos indispensáveis para a vida na Terra. (p. 175)

Em sua unidade de vestuário e linguagem, chamamo-los ritual. Em sua polaridade, chamamo-los "cerimônias" e "acontecimentos da história". (p. 175)

...precisamos de fórmulas que protejam a sua indefinição no início da carreira. As fórmulas dão liberdade aos nossos poderes criativos indefinidos até que tenhamos dado nossa contribuição. (p. 175)

A vida humana não é nua nem anônima. É ritualística. (p. 175)

Nosso corpo natural não tem função social. Entramos no corpo social graças ao vestuário, que representa um corpo temporário. (p. 175-6)

Um homem ter feito um nome para si significa literalmente ter feito com que outras pessoas falem dele e pensem nele! (p. 176)

Uma cerimônia que invista de determinada função ou título acadêmico um homem, ou que lhe confira qualquer poder, é eloqüente em sua tentativa de fazer com que o candidato ouça. (p. 176)

A cerimônia pretende formar a audição, chamar a atenção e despertar o entendimento de uma criança para todo o seu período de crescimento. (p. 176)

Roupas são investimentos a crédito para uma vida inteira: nomes são fruto de vidas completamente vividas. É nesses espaços de tempo que devemos buscar os processos originais da linguagem. (p. 177)

O ritual criou a durabilidade da linguagem. (p. 177)

A linguagem articulada humana irrompe onde homens são iniciados ou sepultados, porque tais ordenações de uma vida inteira são as verdadeiras tarefas com que se deparam os que tentam pôr fim à guerra, à depressão, à degeneração ou à revolução. (p. 177)

Um ritual não pode ser levado muito a sério nem será formalmente bom onde seja aplicado a expectativas breves. Aí ele se torna humorístico. (p. 177)

Na atual realidade histórica, os rituais são por toda a parte desvalorizados por se voltarem cada vez mais para curtos períodos de vida. (p. 177)

As palavras são como machados e espadas antes que o humor lhes tire o gume, pois o ritual verbal varre longos corredores de tempo para o futuro e para o passado, a fim de que a vida de um homem não permaneça subumana. (p. 177-8)

É uma lei: o homem não se torna humano sem que determinada organização física e indeterminado órgão social - ou o corpo do homem e seu caráter temporal - sejam integrados numa unidade. (p. 178)

O ritual, que consiste em cerimonial e memória nomeada, é o processo dessa integração. (p. 178)

Por isso ritual é medido em geração; a medida da perfeição de um ritual é o se poder de atar várias gerações de homens. (p. 178)

Para interpretar o ritual primário, talvez seja melhor concentrarmo-nos na questão do poder. Abrir corredores de trinta ou quarenta anos em direção ao passado e ao futuro requer poder. (p. 178)

Requer muito mais poder do que aquele que atribuímos à fala. (p. 178)

A filosofia vulgar da linguagem diz-nos que a fala comunica o pensamento de um homem a outro. (p. 178)

Se o objetivo da fala fosse transmitir idéias, ela necessitaria de poder mínimo. E é verdade: os falantes moderno balbuciam quase sem mudar de tom. (p. 178)

Mas sua filosofia da linguagem interpreta tipos secundários de linguagem; nem sequer tenta interpretar o caráter monumental dos nomes. Acredita, com Kant, que "tempo" é uma forma de pensamento. (p. 178)

A história e nossa própria e calamitosa experiência provam que o tempo é criado pela linguagem. (p. 178)

Todos podemos estar no tempo antes de falar. (p. 178-9)

Mas não temos o tempo senão porque podemos distinguir um presente entre o passado e o futuro. (p. 179)

Esse presente não existe em lugar algum da natureza, mas podemos criá-lo unindo nossas diversas vidas num só nome e reunindo-as num grande reservatório de sobretempo. (p. 179)

O homem tem tanto tempo quanto tenha nomes sob os quais gerações inteiras estejam dispostas a cooperar ao longo das eras. (p. 179)

Desfrutamos um presente quando damos a mão a pessoas de outros tempos, passado e futuro, num só espírito. (p. 179)

Quanto mais honramos os nomes do passado, mais reclamamos um longo futuro. (p. 179)

Essa é a essência da vida consciente, vida capaz de articular tempos e lugares entre passado e futuro de forma tão convincente, que recebemos direção e orientação claras quanto a nosso lugar no tempo. (p. 179)

A língua que é "materna" através dos milênios e o "cabeça", que é o modo de chamar o chefe de geração em geração, são expressões simbólicas. (p. 180)

A língua materna não é senão a experiência de um grupo que recebe e aceita nomes acima de si mesmo mediante um processo criativo e atual, investido num cabeça. (p. 180)

Em nossa própria época, a morte e o artificialismo transformam a linguagem numa arena de interesses políticos e econômicos. (p. 181)

O primeiro resultado de nossa análise é que cabeças e línguas eram compelidos a falar em nome de heróis sepultos. (p. 181)

Os cabeças conferiam cerimoniosamente a autoridade de nomeadores àqueles que a vestiam como seu corpo social. (p. 181)

Toda liberdade é poder para o futuro. A necessidade de criar sucessores para os líderes criou o direito à liberdade. (p. 181)

Queremos dizer que, enfim, todos alcançaram a liberdade dos sacerdotes e reis. (p. 181)

A democracia, é fato, busca estender a todos a liberdade dos mais altos cargos, os de sacerdotes e reis, de oradores e escribas. Não obstante, sem os graus de sacerdotes e de rei, na haveria para ser estendido. (p. 181-2)

Não será que por muito tempo o clamor por um emprego virá em primeiro lugar, já que ele é na verdade o clamor por alguém que me diga o que fazer por um salário? (p. 182)

Nós, que chegamos a reconhecer que todos os homens podem agir como sacerdotes e reis, teremos um longo caminho a percorrer antes que a economia do futuro tenha um lugar para o imperativo: "Todo o homem é um chefe!" Deveríamos acalentar isso como objetivo supremo. (p. 182)

O poder sobre o futuro está nas mãos daqueles sujeitos que podem dar emprego, e isso significa ordens. (p. 183)

Essa é, evidentemente, uma das razões para aprender a pensar mais corretamente acerca da linguagem e do vestuário na atual conjuntura. Pois é sempre o poder sobre o futuro o que se confere mediante o vestuário e a linguagem. (p. 183)

O que criava o herdeiro era sua aceitação formal pelo pai e não seu nascimento. (p. 184)

A linguagem emerge da sutura entre morte e nascimento. (p. 184)

O realismo da linguagem consiste em que ela vem após as obscuridades da vida comum e do sofrimento pessoal. (p. 184)

A história de todas as leis faz-nos parecer correta a nossa interpretação do intervalo entre a morte e o nascimento. (p. 184)

A primeira e, originalmente, única lei é a lei da sucessão. (p. 184)

A distinção entre o código penal e o civil funda-se na diferença entre a morte violenta e a morte natural. (p. 184)

Em quase todas as línguas, a queixa em juízo por uma morte violenta e o planctus, luto formal por morte natural, são chamados por nomes idênticos ou parecidos. (p. 184)

Quase todas as civilizações não-cristãs preservam os sinais da irrupção da queixa legal e formal a partir de uivos e gritos naturais e animais. (p. 184)

OBS.: CRISE MIMÉTICA

...o aparecimento da ordem a partir do caos, da forma a partir da confusão, pode ser revivido todas as vezes que se executa o ritual. (p. 185)

A situação negativa anterior torna-se parte do ritual, para que a solução positiva que se segue não fique incompreensível. (p. 185)

Rituais cuja pré-história, cuja "irritação" deixa de ser compreensível não nos tocam. (p. 185)

A reverência pelo poder humano de falar depende do nosso medo de submergir no estado animal. (p. 185)

...representar o processo que vai do grito à fala, executando os procedimentos pelos quais essa emergência é alcançada. (p. 185)

O espírito procede, por um lado, na interação entre mulheres e crianças e, por outro, na interação dos homens. Esse é o significado do termo "processo do espírito". (p. 185)

A emergência é um processo natural, e na natureza o indivíduo e o meio ambiente são vistos como entidades separadas. (p. 186)

No ritual prevalece a atitude oposta: os gritos são tansubstanciados, e a fala procede das origens mesmas: dos sons que compunham gritos. (p. 186)

Por milhares de anos, quando se cometia uma assassínio, exigiu-se que os parentes do morto levassem o corpo ante os juízes. Na corte, a queixa era feita tanto pela lamentação das mulheres como pelas acusações verbais do parente mais próximo. (p. 186)

Esse dualismo tornou transparente o concentus [harmonia, conformidade] entre nossa natureza animal e nossa história formal. (p. 186)

O homem primeiro gritou e depois falou, porque falar era o primeiro passo longe do grito. (p. 186)

Choros e gritos eram inseridos na cerimônia como medida da linguagem articulada. Tal interação na religião entre grito e nome, entre mulher e homem, representou a reconciliação entre nossa natureza animal e nossa natureza intelectual. (p. 186)

Paulo tornou a linguagem formal acessível ás mulheres... (p. 186)

O ritual tribal comunicava religião, lei, escrita e fala. O ritual criou o tempo - como passado e futuro - , o poder - como liberdade e sucessão -, a ordem - como título e nome - , a expectativa - como cerimônia e vestuário - , a tradição - como canto fúnebre e mito do herói. O ritual ligo o homem ao tempo, e isso é expresso pelo termo "religião" (p. 187-8)

...os trivia das línguas, literatura e lógica...(p. 217)

Línguas estrangeiras deveriam ser aprendidas, em primeiro lugar, como línguas elevadas, antes que se enfatizasse o uso coloquial. Canções, leis e salmos constituem bom ponto de partida. (p. 217)

...a descoberta de que o discurso racional pressupõe o discurso ritualístico. Descobrimos que a lógica de nossas escolas cobria, na melhor das hipóteses, um quarto do território real da lógica. (p. 218)

Antes de qualquer coisa possa ser computada, calculada, observada ou testada, ela tem de ter sido algo nomeado, com que se falou, com que se operou, algo com que se teve alguma experiência. (p. 218)

Com suas generalizações e numerais, a ciência priva as coisas de nomes. Mas não pode fazer isso senão com coisas que previamente se revestiram de nomes. (p. 218)

A ciência é uma aproximação secundária e abstrata à realidade. (p. 218)

Devemos estar imersos e enraizados num universo nomeado, para depois dele nos podermos emancipar pela ciência. (p. 218)

Esta breve investigação das novas vias mostra que, dentre as sete artes liberais, o chamado trivium - gramática, retórica e lógica - é o que mais se beneficia de nossos estudos. (p. 219)

Nossa abordagem eleva as "trivialidades" desses três campos introdutórios do saber à estatura de ciências plenamente desenvolvidas. (p. 219)

Elas tornar-se-ão as grandes ciências do futuro. (p. 219)

Tal ascensão ao poder teve um paralelo quatrocentos anos atrás, quando o chamado quadrivium (aritmética, geometria, música, astronomia) e o trivium (gramática, retórica, lógica) não passavam de meros serviçais e ferramentas auxiliares. (p. 219)

É preciso substituir a faculdade de direito por todo um conjunto de ciências sociais, incluindo uma acerca de nossa própria consciência. (p. 219)

A consciência não funciona senão quando a mente responde a imperativos e utiliza metáforas e símbolos. (p. 219)

Até os cientistas devem falar com confiança e segurança antes de poder pensar analiticamente. (p. 219)

Que é um símbolo? Que é uma metáfora? Constituem o pão nosso de cada dia? Símbolos são fala cristalizada. E a fala cristaliza-se em símbolos porque, em seu estado criativo, é metafórica. Símbolos e metáforas relacionam-se como a juventude e a velhice da linguagem. (p. 219-20)

 Até os símbolos dos lógicos a provam... são fala cristalizada. [...] A fala deve levar aos símbolos. Os símbolos resultam da fala. "Ouvimos" os símbolos como se fossem fala. "Olhamos" para a fala porque ela nos levará aos símbolos. (p. 220)

Os símbolos representam o estado "real" ou principal de uma pessoa a despeito de quais aparências. Representam meu melhor eu em sua ausência... (p. 221)

Isso nos dá uma pista dos autênticos lugares dos símbolos. Eles sucedem a atos de investidura, por meio dos quais se tornam indeléveis e importantes elementos da realidade. (p. 221)

Um ritual antecede ao símbolo. Se nenhum ritual investiu a pessoa, o símbolo não passa de mero brinquedo frívolo. (p. 221) (OBS. tem uma nota de rodapé interessante)

Quanto mais seriamente o ritual é "falado", mais o símbolo se fixa. Não há, porém, símbolo sem fala. (p. 222)

Os símbolos reiteram o fato de que a fala visa à verdade de longo alcance e de que, para tanto, ela procura substituir as aparências do mundo visível por uma ordem mais elevada,  melhor ou mais penetrante. (p. 222)

Porque o símbolo mostra melhor sua eficiência após o término da cerimônia de investidura, e concebem-se as cerimônias de investidura precisamente como um poder capaz de criar um segundo mundo. (p. 222)

A linguagem humana é metafórica por definição. Nada nela é o que é. Tudo significa algo que, em sim mesmo, não é. (p. 222)

Necessitamos que alguém nos dirija a palavra, senão enlouquecemos ou adoecemos. (p. 231)

A primeira condição para a saúde é que alguém fale conosco co sinceridade de propósitos, como se fôssemos únicos. (p. 231)

A relação entre a saúde e o ato de falarem conosco com o poder de nosso "vocativo" único torna imperiosa a resistência a que a educação seja monopólio do Estado. (p. 231)

A posse é algo terrível, mas é também a fonte de grandeza, quanto tomada no verdadeiro e genuíno espírito de exclusividade. (p. 233)

Esse espírito consiste simplesmente no seguinte conhecimento: "Ninguém é tão querido", "Eu sou a única pessoa no mundo", "Esta é a única criança no mundo". (p. 233)

Quem quer que tenha tal espírito de exclusividade para com outro ser humano tem uma qualidade, uma qualidade "gramatical" que ninguém mais tem e que indispensável - a qualidade de dar ordens, de dizer: escuta, vem, come, ama-me, vai dormir. (p. 233)

É derivado da maternidade ou da paternidade genuínas. O direito de dar ordens depende da qualidade de pôr aqueles a quem se dirigem essas ordens acima de tudo o mais. (p. 234)

A pessoa que nunca foge à responsabilidade, que sabe que não pode fugir à responsabilidade, adquire o direito de dar ordens. (p. 234)

As mães não se tornam conscientes da maternidade senão na experiência de dar ordens, cantar canções e contar histórias aos filhos. E as crianças tornam-se filhos e filhas graças à voz da mãe. (p. 234)

Toda a potência original do ritual da fala se encontra na relação entre mãe e filho. (p. 234)

 E sabemos que a potência de qualquer imperativo depende de que o falante se lance para fora de si mesmo na ordem que dá, e de que o ouvinte seja lançado à ação. Ambos então se direcionam para fora, ou, como costumamos dizer, não são autocentrados. (p. 234)

No chamado da mãe "Vem, Johnny", a invocação "Johnny" projeta para fora o eu da mãe, e a forma verbal "vem" faz vir para fora o do filho. Ambos se entregam a uma interação mútua. (p. 234)

O papel do vocativo é tão pouco entendido hoje quanto o do imperativo. (p. 235)

Qualquer vocativo mostra a fala em seu estádio criativo, porque a princípio falamos não de coisas mortas, mas para pessoas vivas. (p. 235)

O Crátilo de Platão é um triste modelo dessa abordagem chã de linguagem. (p. 235)

O falante projeta-se a si mesmo para eles. Encontramo-nos em nossos vocativos. Assim como a mãe se torna mãe chamando o nome do filho, nós nos tornamos oficiais ao chamar nossos soldados, chefes ao chamar nossos operários, professor ao chamar nossos alunos. (p. 236)

Os vocativos fazem algo aos falantes: trazem-nos para fora. Os vocativos são nossa fé e vêm antes dos nominativos, não importa o que digam os gramáticos. (p. 236)

Quem está pronto para abandonar-se a si mesmo e depositar toda a sua fé no nome de outra pessoa é trazido para fora e para cima de si mesmo, e se torna depositário, líder e representante do nome invocado. (p. 237)

...a taça temporal de expectativa e cumprimento. (p. 238)

Há um termo algo batido para designar essa forma da saúde do falante; chamamo-la "responsabilidade". Mas o termo perdeu sua pujança por ter sido usado de maneira demasiado ativa. (p. 238)

"Vem, Johnny!" é um responsório em que mãe e filho se perdem a si mesmo: ela lançando todo o seu peso sobre o vocativo; ele permitindo que o imperativo se acomode nele, o paciente da ação, como num "escabelo". Ninguém pode ser "responsável" sem resposta; seria uma existência por demais unilateral. (p. 238)

A gramática moderna faz vista grossa ao fato de que qualquer vida é ambivalente, oscilante entre o ativo e o passivo. [...] Eles e ele são concomitantemente ativos e passivos. E essa é a norma humana. (p. 239)

Qualquer grupo feliz e afável, sem autoquestionamento nem autoconsciência grupal, vive numa voz média na qual a divisão entre ativo e passivo permanece subdesenvolvida e é menos importante que o responsório entre pessoas que acreditam em sua solidariedade única. (p. 239)

O casamento seria impossível sem tal correlação entre vocativo e imperativo. O falante vive no vocativo; o ouvinte vem à vida no imperativo. (p. 239)

Eugen Rosenstock-Huessy (1888-1973) A origem da linguagem; edição e notas Olavo de Carvalho e Carlos Nougué: introdução, Harold M. Sathmer e Michael Gorman-Thelen: tradução Pedro Sette Câmara, Marcelo de Polli Bezerra, Márcia Xavier de Brito e Maria Inêz Panzoldo de Carvalho. - Rio de Janeiro: Record, 2002.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

RAZÕES, LINGUAGEM, POLÍTICA E EDUCAÇÃO



RAZÕES DISCURSIVAS E RAZÕES EMOCIONAIS

Não realizo uma radical distinção entre razão discursiva e razão emotiva.

Não existe um racional puro distinto de um irracional puro, ambos são modos de manifestação da linguagem.

Ocorre que a emoção é a primeira linguagem, aquela que mais nos aproxima de nossa matriz animal.

Por isso aprecio muito a teoria do desejo mimético de René Girard que apresenta uma razoável explicação entre o controle da emoção em sua forma de linguagem não verbal e o início da linguagem verbal por meio do fenômeno da crise mimética e do bode expiatório.

A Ética Clássica, que por sua vez é um dos fundamentos da Ética Cristã, sempre destacou que o problema da virtude é um equilíbrio entre as intenções morais e a prática efetiva das ações, não é à toa que se cunhou a expressão de "que o inferno está cheio de boas intenções"

Phronesis é a boa e velha razão prática que se preocupa com a relação de causa e efeito entre ação, intenção e resultado, conforme a régua da virtude que está no justo meio.

Ética é o nome grego para o conjunto de teorias sobre comportamento humano ideal segundo a virtude, moral é somente sua denominação latina, portanto, quando há uma "desmoralização" de uma sociedade, então temos a criação de um "conjunto de teorias sobre o comportamento ideal para negar a virtude"

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ANTROPOLOGIA E LINGUAGEM POLÍTICA

A antropologia de René Girard é interessante na medida em que descreve uma bela hipótese para o surgimento da própria linguagem verbal.

O nascimento da linguagem é a condição de possibilidade para a descrição das descobertas em todas as demais ciências.

Evidencia-se, também, que o controle da violência é operado pelo surgimento da linguagem verbal, pois é a comunicação eficaz que cria a paz necessária para os demais desenvolvimentos da humanidade.

É como no Brasil de hoje, pois enquanto nossa insegurança pública for predominante não teremos níveis satisfatórios de crescimento econômico, porque o crime impede os negócios de prosperarem em todo seu potencial.

Hoje a linguagem do povo e a linguagem do governo não vem sendo compartilhada, situação que faz prevalecer a linguagem da violência, pois violência é incompreensão e vingança, o cálice que nos resta quando a surdez e a cegueira prevalecem.

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MAQUIAVEL NA EDUCAÇÃO

Vamos fazer assim: seja professor e ensine aos alunos que Maquiavel é brilhante e está certo em sua apreciação de que o mal na política "é um mal necessário", depois de alguns anos reclame que os cidadãos votam em políticos que aplicam a política maquiavélica. Quem é o maior responsável?!


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O MITO DA MEDICINA E A HARMONIA ENTRE ALMA E CORPO - MATERIAL DE ESTUDO



"O problema consiste precisamente em saber se alma e corpo, funcionamento psíquico e funcionamento somático, na realidade complementares, podem ser radicalmente separados do ponto de vista da terapia." (Paul Diel)


"O valoroso esforço de Apolo para salvar sua amada Coronis, e como tal esforço leva à dedicação de Asclépio à cura, trata de como a busca pela cura está fundamentada em amor e lamento. A falha de Apolo em salvar Coronis, morta por um deus, assim como a história da punição de Asclépio por ressuscitar os mortos ensinam que a medicina deve aceitar a mortalidade humana como limite apropriado para seu trabalho. A docilidade que infunde os nomes de Asclépio (incessantemente gentil) e Epiona (que acalma) trata da arte da cura não como uma guerra contra a doença ou contra o corpo, mas da procura, junto ao corpo, em levá-lo à saúde. Tal docilidade é tema recorrente em muitas obras médicas antigas." (Cf. Steven H. Miles, apud Hélio Angotti Neto, p. 49-50)

Detalhe de Apolo e as Musas (Simon Vouet). 
Apolo, como Senhor da beleza 
e da perfeição, é patrono das artes.


"Apolo representa a cura, a razão e a profecia, isto é, o prognóstico, o entendimento do está por vir na vida do paciente. A racionalidade de Apolo orienta a tendência mais naturalista presente nos médicos a partir de então, fator em comum nos diversos escritos hipocráticos. Higia representa a busca pela prevenção e pelos bons hábitos, pela higiene. Panaceia representa a cura por meio da terapia farmacológica, das medicações. E Asclépio (ou Esculápio), filho de Apolo, pai de Higia e Panaceia e aprendiz do centauro Quíron, também demonstra diversos valores e inclui uma curiosa censura ao desejo indevido de lucro acima do que é sábio, pois morreu alvejado por Zeus ao ceder - movido pela ambição - à tentação de ressuscitar um mortal preso no reino de Hades." (Angotti Neto, p. 50)

"Os valores e as atitudes demonstradas pela evocação dos deuses antigos são: gentileza, busca pela cura, prevenção dos males por meio de bons hábitos, autoconhecimento, sabedoria frente aos limites da própria arte e uso da razão." (Angotti Neto, p. 51)

Quíron e Aquiles, ânfora ática (~520a.C.), Museu do Louvre, França.


"Na mitologia grega são encontradas muitas figuras simbólicas cuja significação guarda estreita relação com a medicina. As mais importantes são: Apolo, Quíron, e Asclépio. A significação dos símbolo "Asclépio" só poderá ser encontrada se estabelecermos precisamente sua posição nesta tríade, na qual Apolo, suprema divindade da saúde, simboliza o princípio da cura. Ora, Apolo preside à harmonia da alma. Aparece, assim, desde o início, com perfeita clareza, a posição do mito em relação à saúde em geral ressaltando em especial a saúde psíquica. Nesta constatação inicial poderia estar a chave da tradução do mito da medicina, do mito de Asclépio." (Paul Diel, p. 206)

Estátua de Esculápio no museu do Teatro de Epidauro, Grécia


"Quanto à relação entre harmonia psíquica e a saúde, é importante sublinhar que qualquer símbolo mítico, sejam divindades ou monstros, possui uma significação em relação à arte médica. A simbolização em seu conjunto serve para representar a constelação sadia ou doentia da psique. A tradução do mito de Asclépio permitirá o desenvolver essa questão fundamental em toda a sua extensão e determinar a visão em relação à cura, não somente da psique como também do corpo." (Paul Diel, p. 206-7)

[...]"a condição de harmonia interior, a vitória sobre a vaidade culposa"  (Paul Diel, p. 207)

"Mesmo sendo filho de Apolo, Asclépio preside menos ao equilíbrio da alma que à saúde do corpo. Seria que o interesse predominantemente pelo corpo, caractetístico do símbolo "Asclépio", a causa do castigo final que o herói da medicina sofre segundo o relato mítico? Uma comparação com o destino de Hércules permitirá um melhor julgamento.

"Hércules sacrifica seu corpo, e carnalidade, e Zeus lança seu relâmpago para iluminar a alma do herói. O espírito ajuda o herói na realização do sacrifício, símbolo de sublimação. O sacrifício do corpo (a renúncia ao apego exaltado aos desejos carnais) é aceito pelo espírito e torna-se a condição essencial da divinização simbólica. Asclépio, ao contrário, por sua qualidade de curador dos males físicos, apega-se às necessidades corporais. Contra ele, Zeus não lança o relâmpago iluminador, mas o raio punitivo. O simbolismo parece querer manifestar que a ciência médica, da qual Asclépio é o representante mítico, mesmo que implique, como toda ciência, um esforço de ordem espiritual (simbolicamente divinizado), muitas vezes pode apegar-se exclusivamente às necessidades do corpo."  (Paul Diel, p. 207)

"Uma tal concepção contém o perigo de abrir um profundo abismo entre a sabedoria mítica e a mais marcada das tendências da medicina moderna. A aparência de uma contradição no símbolo "Asclépio" (divinizado-fulminado) e a tentativa de destituí-lo, desde o princípio, de sua significação, chave da tradução, conduzem a um dilema: ou o mito, em razão de sua predileção pela vida da alma, exagerou a importância de seu princípio de cura, a harmonização dos desejos [...]; ou então a predileção da medicina moderna pelo estudo do funcionamento orgânico a teria levado a negligenciar a importância do funcionamento psíquico. (Paul Diel, p. 207-8)

"Este dilema exige uma solução, antes mesmo de entrar nos detalhes da tradução. Não se trata de forma alguma de discutir as bases da arte médica, mas unicamente de evidenciar o fundamento da visão mítica encontrado no símbolo "Asclépio" e de assim preparar a compreensão dessa figura cuja significação ultrapassa o quadro mítico no qual é tratado, visto que a formação e a deformação da alma, portanto, a cura dos distúrbios psíquicos, são tema comum a todos os mitos. O problema consiste precisamente em saber se alma e corpo, funcionamento psíquico e funcionamento somático, na realidade complementares, podem ser radicalmente separados do ponto de vista da terapia. Convém enfrentar antes de tudo esse problema fundamental, ainda que necessite de um preâmbulo teórico um pouco longo e complicado." (Paul Diel, p. 208)

"A tradução de um número bastante grande de mitos demonstrou que sua significação oculta constitui uma verdadeira psicopatologia, uma pré-ciência psicológica, expressa por imagens, mas capaz de explicitar a motivação subconsciente, produtora de ações ilógicas e sintomáticas, alcançando até os delírios e as alucinações, cujo conjuntou constitui as doenças mentais. Esta pré-ciência mítica parece merecer a censura de considerar com demasia exclusividade o encadeamento psíquico das causas e dos efeitos, dos motivos e das ações. Seria sem dúvida errôneo pretender que a doença do espírito se deva unicamente a causas de ordem psíquica. A verdade é que a cada causa psíquica corresponde um distúrbio orgânico (lesão da substância nervosa ou desregramento da função endócrina). O ideal seria conhecer tanto o encadeamento das causas fisiológicas quando dos motivos psíquicos. A desordem da psiquiatria moderna poderia muito bem advir da incapacidade de estabelecer um paralelo entre essas duas vias explicativas, bem como das tendências que buscam preencher as lacunas da explicação fisiológica através de explicações psíquicas, e as lacunas da explicação psíquica por explicações de ordem fisiológica. Nesse sentido, a sabedoria mítica teria muita razão em limitar -se à  explicação figurativa dos motivos e de seu encadeamento.  Esta limitação seria um princípio econômico que não poderia de modo algum suscitar a censura de negar a unidade corpo-psique,ou de se opor a priori a qualquer preocupação no tocante às causas orgânicas e aos cuidados somáticos. Ao contrário,  teríamos o direito de dizer que a sabedoria mítica,  apesar de explicar-se somente através de imagens simbólicas,  mostra -se mais avançada"  (Paul Diel, p. 208-9)

Fontes: 

https://editoramonergismo.com.br/products/a-tradicao-da-medicina

https://www.amazon.com.br/Simbolismo-na-Mitologia-Grega/dp/8585115181/ref=sr_1_2?s=books&ie=UTF8&qid=1519054280&sr=1-2

domingo, 20 de agosto de 2017

O SÍMBOLO GERA O RITO E O MITO



O símbolo, até onde entendi com base em Eric Voegelin e René Girard, é a fonte primária da linguagem como participação em realidades fundamentais à existência humana.

A primeira realidade fundamental que tem que ser apreendida é a necessidade de autocontrole social da violência, e, nas origens da humanidade tal fato social se configura mediante a necessidade do respeito ao sagrado e à divindade, o princípio do respeito às hierarquias dentro da realidade humana e divina, para que haja uma ordem capaz de conter os riscos inerentes à eclosão da violência sem limites em um ciclo sem fim de destruição.

O mecanismo mimético, quando encontra sua solução pacificadora no bode expiatório, a vítima simboliza o significado divino daquele que é portador do malefício e do benefício, é o algoz e o benfeitor.

A violência social ao ser pacificada pela violência do sacrifício, esta capaz de ordenar o caos daquela, assume, assim, um significado diferenciador, torna-se um símbolo, em que morte da vítima possibilita a instituição de uma ordem sagrada porque foi eficaz, é um ato fundador.

A vítima concentra em si o bem e o mal inerentes à violência da comunidade, o rito é a religação à esta estrutura fundadora de significado, na forma de um conjunto de ações e reações, expressões, sons e memórias que nem precisam estar verbalizadas, basta que sejam reproduzíveis.

É o rito que, ao reproduzir continuamente o sacrifício (por séculos, por milênios), funciona como a primeira forma cultural, na qual o símbolo (rito) é um dado empírico e concreto, necessário para a manutenção da ordem sagrada que afasta o caos da violência sem freios e sem diferenciação, e este símbolo é representado no rito que conduz à vítima sacrificial.

Com o tempo, o rito se estrutura linguisticamente e favorece a criação da narrativa mítica, pois sua repetição permite a paz necessária para a sociedade desenvolver a língua e o vocabulário com base na estabilidade criada por meio do próprio rito.

A vítima se converte no deus e/ou no herói, neste sentido, o símbolo nem verbal é em sua origem, e quando se torna verbalizável, origina a linguagem poética na forma de narrativas sagradas, os mitos.

Werner Nabiça Coêlho - 20/08/2017