sábado, 21 de janeiro de 2017

UM DESEMPREGADO É ALGUÉM QUE PROCURA ORDENS!



Felipe G. Martins traduziu (1) o discurso de posse de Donald Trump , e, entre tantas passagens memoráveis, destaco um momento na qual fica muito evidente o renascimento da linguagem objetiva que descreve verdades da vida, cujo sentido é fundador de uma ordem superadora da guerra e da crise:

"Tenham certeza de uma coisa: nós não iremos falhar; nosso país irá progredir e prosperar. Não mais aceitaremos políticos que só sabem falar e que jamais colocam a mão na massa. A era dos discursos vazios chegou ao fim. É chegada a era da ação! É chegada a era de quem se preocupa menos com discursos e mais com resultados! "

Toda a campanha presidencial de Donald Trump foi, em essência, um resgate do poder da linguagem como instrumento de intervenção na realidade, pois conforme a chave explicativa de Eugen Rosenstock-Huessy (1888-1973), para quem a "linguagem faz transpor o caos da natureza, as contendas entre mero indivíduos, sua falta de continuidade e liberdade" e "cria paz, ordem, continuidade e liberdade" (p. 73)
 
O que Donald Trump fez, e continuará a realizar, é refundar a linguagem sadia, objetiva, realista, comunicacional e formal, cuja função é (re)criar formas de convivência civilizada, cuja linguagem foi sistematicamente esvaziada de sentido pelo ataque da ideologia deformadora do "politicamente correto", ou seja, Trump é o agente responsável por dar as ordens verbalizadas que orientarão a ação material da sociedade americana, carente de ordens que transformam linguagem em ação, e ação em obras, pois boas ações e  boas obras necessitam de boa linguagem, afinal, como diria Eugen Rosenstock-Huessy:

"Um desempregado é alguém que procura ordens e não encontra ninguém que lhas dê. Por que as procura? Porque ordens cumpridas dão direitos. Se faço por conta própria uma imagem de barro, não posso exigir que me dêem dinheiro por isso. Mas, quando recebo ordens para fazer imagens de barro, estabeleço uma reinvindicação. As respostas às ordens dadas fundam direitos. Os milhões de desempregados dos anos 30 esperavam alguém que lhes dissesse o que fazer. Na guerra, dá-se exatamente a discrepância oposta. Nela não escutamos o inimigo. Na crise, não encontramos quem nos diga o que fazer. Na guerra, há muito pouca vontade de escutar; na crise, pouquíssimas pessoas querem dar ordens, falar fundadas no poder original da linguagem, no poder de direção." (p. 60)

Referência:

Eugen Rosenstock-Huessy (1888-1973) A origem da linguagem; edição e notas Olavo de Carvalho e Carlos Nougué: introdução, Harold M. Sathmer e Michael Gorman-Thelen: tradução Pedro Sette Câmara, Marcelo de Polli Bezerra, Márcia Xavier de Brito e Maria Inêz Panzoldo de Carvalho. - Rio de Janeiro: Record, 2002.


Werner Nabiça Coêlho - 21.01.2017

domingo, 15 de janeiro de 2017

Era uma vez um monge irlandês do século IX...



Era uma vez um monge irlandês do século IX, que anotou no pé da página um belo poeminha de um amante das letras:
 
Eu e Bichano, meu gato,
Praticamos o mesmo ato;
Caçar rato é sua alegria,
Caçar palavra, minha agonia.

Mas dá muito gosto ver
Trabalharmos com prazer;
Em casa, sempre ao batente,
Juntos, distraímos a mente.

Ele prega o olho no muro,
Esperto, enxerga no escuro;
Eu prego o olho no papel,
E do saber sou um réu.

Assim, vivemos em paz,
Eu e Bichano, meu ás;
Lado a lado pela vida,
Cada um na sua lida.


Fonte:

Thomas Cahill, Como os irlandeses salvaram a civilização, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1999.

Cooperatoris Veritatis: algumas considerações sobre o diálogo platônico Fedro



Seguindo a trilha aberta de Carlos Alberto Nunes, cujos comentários destacam a natureza teatral da obra platônica, e, após a reunião do grupo de estudos relativo ao diálogo platônico Fedro, considero ser útil guardar a memória de alguns pontos objeto de discussão.

Carlos Alberto Nunes (1897-1990)
Ao ser encontrado por Sócrates, fora dos muros de Atenas, às proximidades do Rio Ilisso,  Fedro afirma estar a "passear nas estradas" por recomendação do amigo comum Acumeno por ser uma forma de repouso melhor que descansar "em galerias cobertas" (227a) (p. 33)

Fedro relata a Sócrates que Lísias discursara em torno do amor, e defendera "que é preferível alguém ceder às instâncias de quem não lhe dedica amor, a entregar-se a quem o ama de verdade" (227c) (p. 33-4), ao que Sócrates ironiza que então "o pobre é de preferir ao rico e o velho ao moço, ou falasse das misérias que me são peculiares e à maioria dos homens, teria o mesmo feito um discurso civil e verdadeiramente democrático" (idem).

Diante da afirmação de Fedro, de que não poderia declamar o discurso de Lísias, Sócrates se sai com mais uma tirada irônica, e descreve o método de estudo de Fedro, descrição esta que por si só tem seu valor pedagógico:

II - Sócrates - Fedro! Fedro! Se eu não conhecesse o Fedro é que já me teria esquecido de mim mesmo. Porém nada disso é verdade. Tenho absoluta certeza de que, por tratar-se de um discurso de Lísias, ele não se satisfez com uma audição apenas, mas insistiu junto do autor para que o lesse várias vezes, ao que o outro acedeu de muito bom grado. Mas, nem isso lhe bastou; tomando do livro, mergulhou na lição dos trechos mais interessantes. Nesse estudo passou sentado a manhã toda, até que, vencido da fadiga, saiu a espairecer cá fora, porém já com o discurso de cor, como tenho que de fato aconteceu [...] Só veio passear fora dos muros para declamá-lo, e, ao topar com um tipo doente por discursos, exultou por haver encontrado um parceiro para seus delírios coribânticos e o convidou a acompanhá-lo. Depois, instado por esse amante de discursos par que o lesse, fez-se rogado, como se não tivesse o menor desejo disso" (288b a 288c) (p. 34)

Fedro é apanhado em outra malandragem estudantil, pois quando já iria começar um exercício de declamação do texto memorizado, com base em seus estudos acima descritos, Sócrates percebe que seu companheiro de diálogo escondia o texto escrito do discurso de Lísias, e, certamente, com um meio sorriso no rosto, e um tom de divertida admoestação se dirige ao jovem efebo:

"Sócrates - Pois não, amor; mas, antes disso mostra-me o que trazes na mão esquerda, debaixo do manto. Suspeito que seja o tal discurso. Se for o caso, podes ter a certeza de que, embora eu te dedique muita estima, uma vez que Lísias se acha presente, não deixarei que te exercites à minha custa. Vamos, descobre-o logo." (228e) (p. 35)

Esta colocação de Sócrates, de que "Lísias se acha presente", é muito interessante, como uma antecipação da noção posterior apresentada de que há um risco em potencial, relacionado ao culto do texto, sem levar em conta que as idéias escritas, também, possuem uma vida para além dos livros, o que torna relacionarmos esta passagem com a discussão posterior, neste mesmo diálogo, em que se destaca a natureza "muito perigosa" da palavra escrita:

"LX – Sócrates – Logo, quem presume ter deixado num livro uma arte em caracteres escritos, ou quem a recebe, na suposição de que desses caracteres virá a sair algum conhecimento claro e duradouro, revela muita ingenuidade e o desconhecimento total do oráculo de Amão, dado que imagine ser o discurso escrito mais do que um meio para quem sabe, a fim de lembrar-se do assunto de que trata o documento.
Fedro – É muito certo.
Sócrates – É que a escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto, parecidíssima com a pintura, pois esta, em verdade, apresenta seus produtos como vivos; mas, se alguém lhe formula perguntas, cala-se cheia de dignidade. O mesmo passa com os escritos. És inclinado a pensar que conversas com seres inteligentes; mas se, com o teu desejo de aprender, os interpelares acerca do que eles mesmos dizem, só respondem de um único modo e sempre a mesma coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita, rolam daqui dali os discursos, sem o menor descrime, tanto por entre os conhecedores da matéria como os que nada têm a ver com o assunto de que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não. E no caso de serem agredidos ou menoscabados injustamente, nunca prescindirão da ajuda paterna, pois por si mesmos são tão incapazes de se defenderem como de socorrer alguém." (275c a 275e) (p. 93-4)
Retornemos ao contexto inicial, em que Fedro e Sócrates acabaram de se encontrar, e buscam um local de descanso enquanto passeiam, cenas cujo caráter bucólico é ressaltado pela descrição de cenários idílicos, muito favoráveis à discussão dos conceitos relacionados ao sumo bem.

Após Fedro ser apanhado em suas artimanhas estudantis, e ser forçado a concordar em ler o discurso de Lísias, nossos amigos do saber prosseguem seu caminho em direção à uma localidade encimada por um plátano, uma árvore frondosa, cujas forma característica da folha está desenhada na bandeira do Canadá.

Ao caminhar na direção de seu local primaveril, em que se travará a parte principal do diálogo, Fedro observa que fez bem em sair sem sandálias, que é como Sócrates sempre anda (229a) (p. 35), o que me remete à etimologia da palavra humildade, derivada do latim "humus", e a expressão significa "estar com os pés descalços sobre o chão".

E, a propósito da descrição do local, em que a conversa de desenvolve, destaco alguns elementos descritivos, para depois prosseguir tratando de alguns passagens outras, que me remeteram à teoria mimética de René Girard, mas, enquanto isso, surpreendamos os amigos tratando do local em que o diálogo realmente iniciar-se-á:

Plátanos

Fedro - Estás vendo aquele plátano alto?
Sócrates - Como não?
Fedro - Ali há boa sombra, brisa agradável e relva suficiente para nos sentarmos e até mesmo para deitar, se assim nos aprouver.
Sócrates - Então sigamos. (229b) (p. 35)
[...]
IV - Sócrates [...] E, por falar nisso, companheiro, não é esta a árvore para onde querias conduzir-nos?
Fedro - É essa mesmo.
V - Sócrates - Por Hera! Que belo sítio para descansar! Este Plátano, realmente, é tão copado quanto alto, e aquele pé de agnocasto além de sombra agradabilíssima que sua altura proporciona, embalsama toda a redondeza, por estar em plena florescência. E sob o plátano, também, que fonte encantadora! A água é bastante fria, o que os pés nos confirmam. Deve ser consagrada às Ninfas e a Aquelôo, a julgarmos por estas imagens e figurinhas. Observa também como aqui a brisa é delicada e aprazível; sua melodia clara e estival acompanha o coro das cigarras. Porém, o mais admirável de tudo é a relva, que se eleva gradualmente para formar uma camada espessa. Se nos deitarmos neste ponto, disporemos de travesseiro em tudo cômodo. Revelaste-te excelente guia, amigo Fedro. (230a a 230 c) (p. 36-7)
Agnocasto 

Percebo que um dos mais importantes aspectos relacionados ao exercício de uma boa leitura, por vezes, é o tempo decorrido entre os anos que medeiam as visitas a um texto, pois da primeira vez que li este diálogo, e já fazem quase 20 anos, pouco me importei com aspectos lúdicos ou com o cenário, mas, após reler este trecho, pude perceber que o contexto bucólico descrito, pode ter sido uma rica fonte de referencias literárias aos irlandeses (1), quando salvaram a cultura ocidental, pois foi sob plátanos e outros locais análogos (2), conforme descrito por Platão nesta peça literário-filosófica, que os monastérios irlandeses do século V surgiram, como centros de preservação e divulgação da herança milenar greco-romana e judaico-cristã.

Agora, retomando o fio da meada, faço algumas indicações de elementos relacionados à teoria mimética (3) apanhados no texto, com a finalidade de registro para futuras elucubrações deste escriba, e, quem sabe, inspirar terceiros, a respeito da violência sagrada, presente no texto deste diálogo segundo a chave explicativa da teoria girardiana.

Rio Ilisso
Antes de chegar ao plátano, cujos arredores são poeticamente descritos no diálogo, Fedro comenta que estavam passando pelas margens do Ilisso, local em que Bóreas raptou Oritia, ao que Sócrates indica que o local certo ser um pouco mais adiante (229b) (p. 36-7), e neste ensejo Fedro questiona de forma cética a respeito do mencionado mito: "acreditas nessa história?" (229c) (p. 36).

Sócrates, então, discorre a respeito do mito, e de sua natureza questionável do ponto de vista racional, o que dá a entender que naquele tempo histórico contemporâneo ao nosso filósofo, as verdades religiosas tradicionais estavam sendo duramente criticadas, vejamos:

IV - Sócrates - Se, a exemplo dos sábios, eu não acreditasse, não seria de estranhar. Interpretação sutil da lenda fora dizer que o ímpeto de Bóreas a derrubou dos rochedos próximos, quando ela brincava com Farmaceia, e que as próprias circunstâncias de sua morte deram azo a dizerem que Bóreas a havia raptado. (229d) (p. 36)

Ora, este trecho revela-se perfeito, para análise com a utilização da chave explicativa de René Girard (4), pois descreve um mito em que há um bode expiatório (Oritia), e um deus (Bóreas) que personifica, neste caso, a multidão, que em sua fúria lança a vítima do rochedo, sem contaminar-se ritualmente com a violência bruta, pois utiliza-se de meios sagrados de imolação, e, por outro lado, a própria explicação dos sábios referidos por Sócrates, são um claro indício de um forte processo de dessacralização da religião ateniense, submetida à crítica racionalista que busca razões humanas para o surgimento das lendas.

Como o tempo urge, e o texto tem que ser concluído, indico que no trecho de 231a -234c está contido o discurso integral de Lísias, ao qual Sócrates qualifica de "demoníaco", e refere como ficou contagiado "do mesmo furor báquico" de Fedro enquanto este declamava a leitura de tal discurso (234d) (p. 41), o que me remete à lembrança das descrições sobre o magnetismo da arte no diálogo Íon (5), ou Ião como na tradução de Carlos Alberto Nunes.

Em seguida, há o discurso retórico que Sócrates é levado a fazer, pois Fedro impõe tal dever, inicialmente, por uma coação,  manifestada nestes termos: "Resolve-te, pois, a falar, antes que eu recorra à violência" (236d), e, finalmente, de forma eficaz, mediante a oração ritual em que faz o seguinte juramento:

Fedro - [...] Juro... Por qual divindade hei de jurar? Por qual? Aceitas este Plátano? Pois bem: se não declamares teu discurso diante deste plátano, juro que nunca mais te mostrarei nem indicarei discurso de nenhuma pessoa. (p. 236e) (p. 45)

E, mesmo sem ter tocado no assunto relativo à iniciação de natureza pitagórica cujos indícios surgem ao longo do texto, nem me deter nos aspectos concernentes às classificações sobre as virtudes e vícios do desejo amoroso, presentes no discurso retórico de 237b-241d, em que Sócrates discursa de rosto velado de vergonha (237a)(p. 44), e, muito menos, sem tocar nas profundas digressões sobre os conceitos platônicos que principiam pela descrição dos delírios sagrados da divinação, das musas e do amor, passa pela descrição mitológica do mundo das idéias, e prossegue pela metempsicose, que surgem a partir de 244a (p. 53 e seguintes), quando Sócrates declama:

Sócrates - De vergonha, pois, dessa pessoa e de medo de Eros, pretendo limpar-me com a boa água de um novo discurso de toda a salsugem dos conceitos há pouco enunciados. Aconselho também Lísias a escrever quanto antes que, em iguais circunstâncias, um jovem deve preferir quem o ama, não quem não lhe dedique amor. (243d) (p. 53)

Uma anotação final que deixo, é que o amor definido por Sócrates, no prosseguimento do diálogo, em seu mais alto nível, é o amor que se deve guardar pela contemplação da verdade, do bem, do justo e do belo no grau da pureza divina, e, que o eventual amor carnal entre os amantes do saber, é uma forma de apequenar e dessacralizar o amor ao saber, cuja origem é divinal, que deve ser cultivado e resguardado entre amigos, em suma, o saber é muito mais profundo quando associado à castidade, por ser um dever sagrado perante Deus.


Fonte:


Platão, Diálogos de Platão: Fedro, Cartas e O primeiro Alcebíades, Coleção Amazônia, Série Farias Brito, vol. V, tradução de Carlos Alberto Nunes, UFPA, Belém, 1975





sábado, 14 de janeiro de 2017

ERIC VOEGELIN: REFLEXÕES AUTOBIOGRÁFICAS - 02


Em suas Reflexões autobiográficas Eric Voegelin disserta a respeito do problema dos estudos comparados, como elemento "fundamental a aquisição de um ampla gama de conhecimentos", que promove "O necessário alcance empírico do conhecimento" que "é a base de toda a qualquer ciência social digna de nome" (p. 35), e, exemplifica o processo de construção de tal metodologia com as obras Declínio do Ocidente, de Oswald Spengler e História da Antiguidade, de Eduard Meyer, e destaca a importância de Toynbee.
Voegelin em 1922-1923 assistiu às aulas do curso de história da Grécia de Eduard Meyer, e julgo interessante transcrever a descrição de tais aulas:

"Entrava na sala - uma figura esguia, levemente curvada por conta da idade, cabelos emaranhados - , subia, posicionava-se no atril, ajeitava os braços, cerrava os olhos, e então falava por uma hora inteira, sem interrupções, em linguagem impecável, jamais cometendo um erro gramatical ou estilístico e não se confundindo em uma única sentença. Quando o sinal tocava, concluía a palestra, abria os olhos e se retirava. [...] tratava as situações históricas do ponto de vista dos homens engajados na ação. [...] Gosto de acreditar que a técnica de Meyer de compreender uma situação histórica pela forma como os indivíduos nela enredados a pensavam foi incorporada ao meu trabalho como um fator permanente " (p. 36).

Destaca, também, a influência de Alfred Weber, cujo curso de sociologia da cultura frequentou em 1929, como outro exemplo de prática de estudos comparados.

Voegelin frequentou o grupo cultural criado pelo poeta simbolista Stefan George, mas, o ponto mais importante está no que é dito de Karl Kraus "que nos dava a todos uma compreensão crítica da política e, especialmente, do papel da imprensa na desintegração das sociedades alemã e austríaca, preparando o terreno para o nacional-socialismo" (p. 38).

 
A nota de rodapé nº 2 (p. 38-9) faz uma séria de considerações a respeito da influência do humor sarcástico e ríspido de Voegelin, como uma herança dos escritos de Karl Kraus (1874-1936), que era:
"Satirista na melhor tradição de Jonathan Swift, Kraus foi o editor e praticamente o único jornalista da publicação independente Die Fackel. Seus ensaios e aforismo denunciavam a hipocrisia da sociedade vienense e entre eles podemos encontrar pérolas deste tipo: "Como o mundo é comandado e como começam as guerras? Os diplomatas contam mentiras aos jornalistas e então acreditam no que lêem", ou "Meu inconsciente sabe mais sobre a consciência do psicólogo do que a consciência dele sabe sobre o meu inconsciente", uma alfinetada certeira em Freud, Kraus também podia ser extramamente brutal: "A estupidez é uma força fundamental e nenhum terremoto pode combatê-la" - uma opinião compartilhada por Voegelin em sua análise do ambiente intelectual alemão em Hitler e os alemães, em que Kraus é citado como um dos modelos de retidão moral que previram a loucura que seria o nazismo. Foram publicados em língua portuguesa os seguintes livros de sua autoria: Ditos e feitos (São Paulo, Brasiliense, 1988) e Os últimos dias da humanidade (Lisboa, Antígona, 2001), uma peça teatral que tem treze horas de duração [em seguida há uma referência a Eugen Rosenstock-Huessy, que julgo muito interessante mas que remeto para uma leitura na própria obra]."

Voegelin  relata que a obra de Stefan George "deve ser entendida no contexto da espantosa destruição da língua alemã durante o período imperial, depois de 1970" (p. 39), e, aqui confesso que foi a primeira vez que ouvi falar nisso.

Pois bem, Stefan George se propunha:

"Resgatar a linguagem significava recuperar o objeto a ser por ela expresso, o que, por sua vez, significava sair do que hoje se chamaria a falsa consciência da burguesia ordinária (aí incluindo os positivistas e marxistas), cujos representantes literários eram as vozes dominantes no meio cultural. Daí que essa preocupação com a linguagem fizesse parte da resistência contra as ideologias. As ideologias destroem a linguagem, uma vez que, tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideólogo passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela. Transpor esse simulacro de linguagem e restaurar a realidade por meio da restauração da linguagem era o trabalho não só de Karl Kraus, mas também o de Stefan George e dos que integravam seu círculo na época" (p. 39).





Voegelin refere que  naquele tempo vigorava um "linguajar insultuoso típico da oclocracia" (p. 40), ou seja, a típica linguagem utilizada pelo governo da multidão, e, afirma que "é impossível empreender um estudo sério do nacional-socialismo sem recorrer a Dritte Walpurgisnachit e aos anos de crítica de Die Fackel, pois é aí que se evidencia a miséria intelectual que tornou possível a ascensão de Hitler" (idem).



Por fim, Voegelin afirma que o fenômeno de Hitler fundou-se no "quadro geral de uma sociedade arruinada intelectual ou moralmente" , em que "marginais podem ascender ao poder público por representarem formidavelmente o povo", e, o mais importante, é que a "destruição interna" da Alemanha não terminou com o fim da guerra "mas continua até hoje", e "não é possível entrever seu fim, de sorte que consequências surpreendentes são possíveis" (p. 41), talvez aí esteja uma das possíveis explicações para a atual política de acolhimento de refugiados por parte do governo alemão.

Há, em seguida, uma bela defesa da ciência do direito fundada na hierarquia da norma fundamental, e uma crítica à metodologia neokantiana de desvirtua ideologicamente o processo científico.

Voegelin define que Hans Kelsen contribuiu de forma fundamental para a ciência com "a aplicação de uma análise lógica a um sistema jurídico. Essa análise do sistema feita por Kelsen, que culmina em seu conceito de Grundnorm (norma fundamental)" (p. 43).

Afirma que esta contribuição ainda é "o núcleo de qualquer teoria analítica do direitos" e enfatiza que nunca divergiu de Kelsen "quanto à validade fundamental da Teoria Pura do Direito" (p. 43-4).

Por outro lado, afirma que suas divergências são sobre aspectos ideológicos "que se sobrepõem à lógica do próprio sistema jurídico sem, no entanto, comprometer sua validade" (p. 44).

Tratava-se da ideologia da metodologia neokantiana "que definia cada ciência com base em seu respectivo método de investigação - e, neste caso, o método era a lógica do sistema jurídico" (p. 44).

Voegelin relata que "de acordo, com a terminologia da época, a área de Kelsen representava como professor era a Staatslehre [teoria política]" (p. 44), a teoria política tinha que se transformar em Rechtslehre [teoria jurídica], e, uma vez feito o corte metodológico, a ciência do direito não mais poderia tratar nem da política, nem da história, nem da filosofia, o objeto desta ciência passaria a ser somente o sistema normativo, ou seja, propunha-se um aprofundamento do estudo especializado (1).

Na sequência Voegelin faz uma síntese das duas principais escolas neokantianas, a Marburger Schule, de Hermann Cohen, que era representada por Kelsen, que interpretava a Crítica da Razão Prática, de Kant com base na "constituição da ciência pelas categorias de tempo, espaço e substância - ciência significando a física newtoniana tal como Kant a entendia. Esse padrão de constituição de uma ciência a partir das categorias aplicadas a um conjunto de fontes foi o modelo usado na construção da Teoria Pura do Direito. O que não coubesse nas categorias da Normlogik não mais poderia ser considerado ciência" (p. 45-6).

A outra escola neokantiana era denominada Escola Alemã do Sudoeste, de Windelband e Rickert:

"[...] para quem o objeto das ciências históricas era constituída por "valores". Essa vertente metodológica remonta à década de 1870, quando o teólogo Albrecht Ritschl fez, pela primeira vez, a distinção entre [...] [ciências de fatos] e [...] [ciências de valores]. Os termos escolhidos revelam que a origem do problema está no antigo predomínio das ciências naturais como modelo da ciência em geral. Contra o prestígio das ciências naturais, os pobres teólogos, historiadores e cientistas sociais incipientes precisavam deixar claro que seus campos de estudo também eram, afinal de contas, científicos" (p. 46).

Voegelin, com sua fina ironia, relata que foi assim que se inventaram os "valores" (p. 46), e explica que no "entender de Rickert, os valores são forças culturais cuja existência está acima de qualquer suspeita, tais como o Estado, a arte e a religião" (idem).

A crítica de Voegelin a tal "técnica de reconstituição das ciência sociais e históricas pelo "wertbeziehende Methode" (isto é, por referência a um valor) padecia de grave insuficiência por não perceber que os valores são símbolos altamente complexos, condicionados por seu significado na "cultura" estabelecida da sociedade liberal ocidental", e que "os valores precisavam ser aceitos. E que fazer se alguém os rejeitasse, como faziam certos ideólogos que desejavam fundar uma ciência relacionando as fontes já não mais ao valor do Estado, mas ao valor de sua destruição?" (p. 46).

Então, evidencia-se que a ideologia neokantiana pode tanto aplicar corte metodológico, em que a hipótese de estudo é mais importante que o próprio objeto, ou eleger arbitrariamente um objeto, de forma discricionária, cujos referenciais passam a ser palavras ou sentimentos, que poderiam ser valorados como fundamentos da própria cultura, não como seus produtos.

Fonte:
 

Eric Voegelin, Reflexões autobiográficas, São Paulo, É Realizações, 2007.

THOR HEYERDHAL: É NECESSÁRIO ALGUÉM JUNTAR OS PEDAÇOS

A propósito da influência da metodologia neokantiana, que torna em dogma o processo de especialização da pesquisa científica, cito uma passagem da obra Na trilha de Adão: memórias de um filósofo da aventura, de Thor Heyerdhal, que na minha opinião foi um dos maiores cientistas a aplicar métodos empíricos na pesquisa arqueológica do século XX, vejamos o que o mesmo diz a respeito do conhecimento científico especializado:



"Era consenso entre todos nós que, para acompanhar o progresso da ciência, o homem deveria se especializar cada vez mais. Não era mais possível ser superficial, mas sim estreitar os horizontes e ir ao fundo das questões, mas ainda nos bancos da universidade comecei a perceber que algo estava errado. Especialistas estão a caminho de saber cada vez mais sobre cada vez menos, e o preço a pagar por isso é o da ignorância, que campeia e invade as fronteiras da área em que detém o conhecimento. Não poderia ser diferente, porque foram os próprios especialistas que nos levaram a concluir que é incrivelmente grande a quantidade de coisas sobre as quais nada sabemos."

"Também é consenso que a função dos especialistas é se aprofundar nas questões, mas para isso ele não deveriam entocar-se em covas e desaparecer, ensimesmados em seus cubículos de sabedoria. A universidade também precisa de instituições que não estejam submersas tão profundamente, mas se localizem na superfície e possuam uma visão privilegiada do que está ocorrendo, a fim de coordenar os resultados das pesquisas que os especialistas enviam lá de baixo. É necessário alguém capaz de juntar os pedaços" (p. 90-1).

Fonte: 

Thor Heyerdahl, Na trilha de Adão: memórias de um folósofo da aventura, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

ALLAN BLOOM: O RETORNO AOS GRANDES LIVROS ANTIGOS



Um dos primeiros livros de nível universitário que comprei na vida, lá bem no início dos anos 1990, na agora extinta Livraria Cejup que se localizava à Av. Assis de Vasconcelos em Belém, Pará, foi O declínio da cultura ocidental, de Allan Bloom, obra escrita em 1987, que já diagnosticava os efeitos perniciosos do marxismo cultural nos Estados Unidos, e cujo problema poderia ser solucionado mediante o tratamento de reencontrarmos a coerência da vida e da realidade através da leitura dos grandes clássicos, assim, deixo-vos com esta passagem que opera uma síntese geral do problema e apresenta o início da correção:


O que determina a vida de um organismo inteiro é o local onde reside o poder.

E os problemas intelectuais que não são resolvidos no ponto máximo não podem sê-lo ao nível inferior da administração.

A dificuldade está na total carência de unidade das ciências e na falta de vontade e de meios para discutir a questão.



A doença no nível superior causa a doenças no nível inferior [...].
 
Evidentemente, a única solução séria é que quase todo mundo rejeita: o retorno aos Grandes Livros antigos (negritamos). 

Para adquirir uma cultura geral, cumpre ler certos textos clássicos de valor reconhecido, 

apenas ler, 

deixando que eles ditem as questões e o método para abordá-las - 

não os obrigando a entrar nas categorias que nós engendramos, 

não os tratando como produtos históricos, 

mas procurando lê-los como seus autores gostariam que fossem lidos. 


Estou perfeitamente a par e na verdade até concordo com as objeções ao culto dos Grandes Livros: 

é amadorísticos e encoraja a presunção dos autodidatas sem competência, não é possível que se leiam detidamente todos os Grandes Livros e, se apenas lemos essa coleção, jamais saberemos o que é uma grande obra por oposição a outra comum; 

ninguém sabe quem deve decidir o que é um Grande Livro ou qual é o cânone; 

os livros se transmutam em fins, em vez de ser meios; 

todo o movimento em prol da sua leitura tem tom de evangelismo grosseiro, contrário ao bom gosto; gera uma intimidade espúria com a grandeza - e assim por diante. 

Uma coisa é certa, porém: quando os Grandes Livros constituem uma parte basilar do currículo, os alunos ficam emocionados e satisfeitos, têm a impressão de estar fazendo um trabalho independente em que se realizam, recebendo da universidade algo que não poderiam conseguir fora dela. 

O simples fato dessa experiência particular, que não conduz a nada além de si mesma, oferece aos alunos uma nova alternativa a respeito pelo próprio estudo.
 

Agora, eis as vantagens

consciência da importância dos clássicos, deveras importante para os calouros; 

o conhecimento do que eram as grandes questões, quando ainda havia grandes questões; 

modelos, no mínimo, para tentar equacioná-las; 

e, o que talvez seja o mais importante de tudo, um fundo de experiências e de pensamentos compartilhados, que serve de fundamento para o estreitamento das amizades. 

Programas baseados no uso judicioso dos grandes textos abrem a estrada larga que leva ao coração dos estudantes. 

Ao aprenderem sobre Aquiles ou sobre o imperativo categórico, exprimem uma gratidão ilimitada. 

Alexander Koyré, o historiador da ciência já falecido, contou-me que sentiu enorme estima pelos Estados Unidos quando um aluno, no primeiro curso que ele ministrou na Universidade de Chicago, no começo de seu exílio, em 1940, se referiu numa prova ao Sr. Aristóteles, o que é impensável para muitos intelectuais. 

Um bom programa de cultura geral incute no estudante o amor da verdade e a paixão de viver uma existência feliz. 

Seria a coisa mais fácil do mundo programar cursos adaptados às condições particulares de cada universidade, capazes de emocionar quem os siga. 

A dificuldade reside em que a faculdade o aceite. (p. 346-7)
 
Fonte:

Allan Bloom, O declínio da cultura ocidental, 3ª edição, São Paulo, Best Seller, 1989.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

HUGO DE SÃO VITOR: TIPOLOGIA DO ESTUDANTE


Hugo de São Vitor (1096 - 10.02.1141) estabelece uma tipologia do estudante, cujo critério de diferenciação está na virtude da vontade de querer o saber, mesmo que se enfrente dificuldades pessoais e sociais, e, assim, condena o ócio improdutivo e vicioso, abaixo uma passagem do prefácio que descreve tal tipologia:



"Há muitas pessoas que a própria natureza deixou tão desprovida de capacidades, que têm dificuldade para entender até as coisas fáceis, e destas pessoas parece-me haver dois tipos."

 

"Há alguns que, mesmo não ignorando os seus próprios limites, buscam o saber com tal afinco e insistem tão obstinadamente no estudo, que merecem obter, por obra da vontade, aquilo que não obteriam pela eficácia do estudo em si."

 
"Mas há outros os quais, sentindo que nunca poderiam compreender as coisas altíssimas, desprezam também as coisas mínimas e, como que repousando em seu próprio torpor, tanto mais perdem a luz da verdade nas coisas sumas, quanto mais fogem das coisas mínimas que poderiam aprender. Por isso, o salmista diz: "Não quiseram entender, para não ter que agir retamente". Não saber e não querer saber são de longe duas coisas bem diversas. Não saber é questão de incapacidade, mas detestar o saber é perversidade da vontade."

 
"Há um outro tipo de indivíduos, todavia, que a natureza dotou de engenho, oferecendo-lhes um acesso fácil para chegar à verdade. Nestes, todavia, mesmo havendo uma alta capacidade de engenho, nem em todos há a mesma virtude e a mesma vontade de educar a capacidade natural por meio de exercícios e de instrução. Com efeito, muitos destes, mergulhados mais do que o necessário nos afazere e nas preocupações desta vida ou dados aos vícios e aos prazeres do corpo, sepultam na terra o talento recebido por Deus e não almejam obter dele nem o fruto da sabedoria nem os juros das boas obras. Estes são realmente muito detestáveis."

 
"Em outras pessoas, ainda, a pobreza do patrimônio familiar e os recursos escassos dificultam a possibilidade de aprender. Achamos, todavia, que estes não podem ser minimamente desculpados, uma vez que vemos muitos os quais, mesmo sofrendo de forme, sede e nudez, alcançam o fruto do saber. Uma coisa é você não poder aprender, ou melhor, não poder com facilidade, outra coisa é poder e não querer aprender. Se é mais glorioso aprender a sabedoria somente por meio da virtude, sem dispor de possibilidade alguma, é certamente mais torpe possuir o engenho, abundar em riquezas, e entorpecer no ócio."

 
"Existem principalmente duas coisas por meio das quais uma pessoa adquire conhecimentos, ou seja, a leitura e a meditação. Destas, a leitura detém o primeiro lugar na instrução, e dela se ocupa este livro, dando as regras do ler."


[...]


(Hugo de São Vítor, Didascálicon - Da arte de ler, Petrópoles-RJ, Editora Vozes, 2001, p. 43-5)

sábado, 7 de janeiro de 2017

ERIC VOEGELIN: REFLEXÕES AUTOBIOGRÁFICAS - 01

Eric Voegelin

Eliz Sandoz, na introdução às Reflexões autobiográficas, diz que Eric Voegelin nesta obra possui a virtude de nos fazer participar da concretude de sua experiência pessoal, e que este filósofo serve-nos de guia no caminho para fora da "confusão do colapso das instituições, do embotamento intelectual e da corrupção pessoal" (p. 14).

Voegelin buscou "recuperar a realidade em um mundo dominado por segundas realidades, sem falar em realidades virtuais" (p. 15), e, neste ponto, Sandoz destaca o conflito entre a percepção da realidade empírica e as percepções ideológicas e metastáticas, pelo que extraímos algumas definições da obra Israel e a revelação a respeito do assunto:


"A fé metastática é uma das grandes fontes de desordem, se não a principal, no mundo contemporâneo; e é uma questão de vida ou morte para todos nós compreender o fenômeno e encontrar remédios para combatê-lo antes que ele nos destrua"
 
"A ideologia é a existência em rebelião contra Deus e o homem. É a violação do primeiro e do décimo mandamentos, se quisermos empregar a linguagem da ordem israelita, é a nosos, a doença do espírito, empregando a linguagem de Ésquilo e Platão. A filosofia é o amor ao ser por meio do amor ao Ser divino como a fonte de sua ordem. O Logos do ser é o objeto próprio da investigação filosófica, e a busca da verdade concernente à ordem não pode ser conduzida sem um diagnóstico dos modos de existência na inverdade" (Eric Voegelin, Israel e a revelação, 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2014, p. 31-2)

Se bem que ainda não consegui distinguir a noção de segundas realidades (ideologia?) e realidades virtuais (fé metastática?), este ponto merece alguma pesquisa complementar.



Cronologicamente, o capitulo dois precede o primeiro, pois relata a experiência de Voegelin no ensino médio, seu domínio da matemática, favorecido pelo ensino de seu professor Philip Freud, ao ponto de, já naquela tenra idade, compreender a teoria da relatividade, como ele mesmo relata, e, inclusive, referido docente chamou a atenção para:
"o fato de que, de acordo com a nova teoria dos átomos, quando você serra um pedaço de madeira, está separando estruturas atômicas. A possibilidade de separar estruturas atômicas cm uma serra de mão era para ele a coisa mais intrigante de toda a estrutura da realidade física, Freud vira ali o problema da redução e da autonomia dos vários estratos da realidade do ser." (2007, p. 28)

Voegelin, ainda a propósito do tema da "estratificação da realidade", rememora que, num teste de química, ignorava que o ácido cítrico poderia ser obtido espremendo-se limões, mas, cuja composição conhecia teoricamente,  e,  por conta disso, tirou nota baixa.

Ainda no ensino médio, Voegelin relata como passou um semestre estudando Hamlet, com base nas teorias de psicológicas de Alfred Adler.

Interessante a passagem em que Voegelin afirma que foi marxista por alguns meses, após ler O Capital, por conta do prestígio da Revolução Russa, mas, que o efeito desta conversão durou pouco quando passou a estudar economia.

De tal relato emerge um nível de ensino escolar que hoje julgamos ser digno de pós-graduação, e, então, quando se inicia o ensino superior propriamente dito, temos as influências, entre outros, de Mises e Kelsen, que por meio de seus seminários, tanto na universidade, quanto privados, possibilitaram relações pessoais e intelectuais fecundos, que perduraram por toda a sua vida.

Voegelin relata, ainda, que a instituição da República,  com a queda da monarquia, intensificou-se o antissemitismo na sociedade e no governo, fato que impediu diversos de seus amigos judeus de seguirem carreiras universitárias, fazendo-os enveredar para o mundo dos negócios, enquanto, simultaneamente, continuavam suas vivências intelectuais.
Max Weber
Chegamos, assim, ao terceiro capítulo, em que relata a influência de Max Weber, o que me atiçou curiosidade de ler o texto "Ciência e política: duas vocações", sob a perspectiva apontada por Voegelin, de que Weber compreendeu que os chamados "valores" são ideologias, não proposições científicas (p. 31), e, que o citado sociólogo aplicava a ética da responsabilidade, segundo a qual autor de determinada ação é responsável pelas consequências de seus atos, e que  "A intenção moralizadora não justifica a imoralidade da ação" e a "Ideologia não é ciência, e os ideais não substituem a ética" (p. 32).

Voegelin indica, porém, que a metodologia de Weber errou ao excluir os "juízos de valor", na busca de uma certa neutralidade científica não ideológica, que implicava em não se distinguir valores ideológicos, arbitrários, de juízos de valores éticos, racionais, o que tornava não declarado e "oculto" o próprio fundamento ético-cultural, judaico-cristão e greco-romano, da ética da responsabilidade.

Portanto, Weber, formalmente, por uma questão de metodologia, ignorava as razões empíricas existentes no desenvolvimento histórico e cultural que fundamentam a "a ordem racional da existência" (p. 33) da civilização Ocidental, assim, o desenraizamento de tais fundamentos lança a pessoa e a sociedade na "espiral de aventuras idealistas e ideológicas em que os fins se tornem mais fascinantes que os meios." (idem), e, para concluir, Voegelin considera que:

"Weber comprovou de uma vez por todas que, no campo das ciências sociais e  políticas, não se pode ser um acadêmico qualificado sem conhecer profundamente o assunto. Isso significa adquirir o conhecimento comparado das civilizações - não apenas da civilização moderna, mas também da medieval e da antiga, e não apenas do Ocidente, mas Também do Oriente Próximo e o Extremo Oriente - e, em contato com as diversas especializações científicas, manter atualizado esse conhecimento. Quem assim não procede não tem o direito de dizer-se um cientísta empírico, e decerto deixa a desejar como acadêmico da área." (2007, p. 33)

Fonte:
 

Eric Voegelin, Israel e a revelação, 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2014.
 

Eric Voegelin, Reflexões autobiográficas, São Paulo, É Realizações, 2007.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

RENÉ GIRARD: O RISO E AS LÁGRIMAS

Abaixo transcrevo uma passagem do artigo "Um equilíbrio perigoso", no qual René Girard tece considerações muito interessantes a respeito do papel do riso e do choro como elementos catárticos, tanto na tragédia como na comédia, e, como ambos são fenômenos fisiologicamente semelhantes, e, como, psicologicamente, cumprem o mesmo papel. 

"O esquema fundamental de um presunçoso vítima da sua presunção aparece constantemente. Mas se esta proximidade é real, porque é que os efeitos da tragédia são diferentes dos da comédia? 

Quando se assiste a uma tragédia, ou, mais geralmente, ao que se chama um "melodrama", podemos reagir derramando lágrimas - metafóricas ou mesmo reais. Com a comédia reage-se com o riso. O riso e as lágrimas opõem-se como dois contrários, duas emoções no mais alto grau distintas uma da outra.
 


Os dois são fenômenos físicos; neste plano a comparação é fácil. Revela bem depressa que a oposição entre o riso e as lágrimas é muito exagerada, ou antes, como para tantas oposições culturais, estabelecida a partir de uma base comum, o que se abandona geralmente quando prevalecem as considerações de gênero e de técnica literárias. Quando, fora do estreito contexto literário, se põe a pergunta: "O que é o riso?", é preciso descobrir esta base comum ainda escondida, sob pena de limitar o alcance da resposta.

 


Os fisiologistas dizem que a função normal das lágrimas é lubrificar os olhos. Mas deitam-se lágrimas mais abundantes que habitualmente, sobretudo em duas ocasiões. Em  primeiro lugar, quando acontecimentos considerados como "tristes", quer sejam reais ou representados, provocam este estado emocional de que acabámos de falar; depois, quando entra  para um olho um corpo estranho, um grão de pó, por exemplo, que irrita. Estas lágrimas, de ordem puramente física, têm como evidente função de afastar o intruso, expulsá-lo do órgão que ele insiste querer irritar. (p. 201)

Sabe-se que Aristóteles,  na sua Poética, empregava a palavra catarse para representar o efeito produzido pela tragédia nos espectadores. A palavra significa ao mesmo tempo purificação religiosa e purga médica. Uma medicina catártica purga o corpo de seus maus humores.
 
[...]
 
Quando o corpo humano reage a uma representação trágica com lágrimas, parece comportar-se segundo Aristóteles. Apesar de o olho não ter nenhum grão de pó para eliminar, funciona contudo como se tivesse que expulsar qualquer coisa. Deve existir, em qualquer lado no complexo alma/corpo, uma necessidade de expulsar, uma vez que dispomos desse órgão expulsivo. A objeção que as lágrimas não são feitas para isso é inaceitável. Porque o olho funciona metaforicamente. Face a uma necessidade do corpo, o corpo, muito frequentemente, reage como um todo; mobiliza diversos órgãos que, apesar de completamente inaptos para responderem à função pedida, não deixam de tentar trazer a sua ajuda. E pode acontecer que esta reacção aparentemente excessiva seja reveladora da natureza da necessidade em questão.


William James



Não é minha intenção voltar a William James e à sua teoria fisiológica. Não considero o corpo como origem da emoção mas, mais convencionalmente, como um acompanhamento, quase no sentido musical do termo. Assim como um solista, aqui invisível e inaudível, em todo o caso para nós, se acompanha ao piano, da mesma maneira o sentimento trágico se acompanha com lágrimas. (p. 201-2)
 
[...]
 
Para voltarmos agora ao rito, notar-se-á que as lágrimas fazem parte integrante dele. Trata-se de um detalhe que conta mas que se minimiza ou abandona muitas vezes. Porque queremos à viva força opor o riso e as lágrimas como dois contrários, somos levados a pôr o acento nos únicos aspectos do riso que parecem diferenciá-lo do choro. Mas aqui as considerações teóricas importam muito menos do que aquilo que se poderia chamar a praxis moderna do riso. O homem moderno ri constantemente quando não há razão para isso. O riso é a única forma socialmente aceite de cartase. Por conseguinte, todas as espécies de riso que não têm nada a ver com o riso são confundidas com ele: o riso de cortesia, o riso sofisticado, o riso mudano. Todos estes falsos risos aumentam muitas vezes a tensão que devem aliviar e, naturalmente, não se acompanham com manifestações autênticas e involuntárias como as lágrimas.

 
Fonte: http://www.institutodafelicidade.org.br/?pg=riso


Apesar dos sintomas físicos do riso se imitarem mais facilmente do que os das lágrimas, tornam-se também involuntários e reprimíveis quando se trata do verdadeiro riso. O corpo inteiro é agitado por convulsões; o ar é rapidamente expulso para fora das vias respiratórias graças aos movimentos reflexos análogos à tosse ou ao espirro. Todas estas manifestações têm a mesma função que as lágrimas visto que o corpo age como se tivesse qualquer coisa de concreto a expulsar. A única diferença é que um número maior de órgãos entra em jogo no riso.
 
O que se aproxima mais de um riso puramente natural e físico é sem dúvida a reacção do nosso corpo a uma sensação de cócegas. Analisada só em função da sua intensidade, esta reacção parece fora de proporção com a fraqueza do estímulo mas pode muito bem acontecer que corresponda à verdadeira natureza da ameaça não ainda identificada. Num contexto de hostilidade natural, poderia acontecer que uma ameaça de morte iminente, uma mordedura de cobra, por exemplo, não fosse precedido por nenhum outro aviso a não ser umas ligeiras cócegas. O carácter desconhecido e não precisamente localizado do estímulo, pelo menos no imediato, aumenta a intensidade da reacção.
 
O riso, noutros termos, sobretudo nas formas menos "culturais", parece significar, exactamente como as lágrimas, que devemos livrar-nos de alguma coisa; mas essa qualquer coisa é aqui mais importante e deve ser eliminada mais depressa do que no caso de simples choros. Se o corpo é a orquestra, o solista invisível e inaudível é acompanhado por um número muito maior de instrumentos. (p. 203-4)

Note-se também que a partir de uma certa intensidade as lágrimas se transformam em soluços e acabam por se parecer cada vez mais com o riso. Diz-se de alguém cujo riso é incontrolável, que ri portanto verdadeiramente e não finge, que chora a rir. (p. 204-5)
 
Há por conseguinte entre o riso e as lágrimas uma diferença não de natureza mas de grau, residindo precisamente o verdadeiro paradoxo na maneira como se marca esta diferença. Ao inverso do que dita o senso comum, o elemento de crise é mais agudo no riso que nas lágrimas. O riso parece mais próximo de um paroxismo tendendo a traduzir-se por verdadeiras convulsões, mais próximo de um esforço frenético de rejeição e de expulsão. Mas do que as lágrimas, é assimilável a uma reacção negativa de todo o ser a um perigo que lhe parece intransponível. (p. 205)
 
[...]
 
Ri-se verdadeiramente de qualquer coisa que poderia e, num sentido, deveria acontecer a qualquer pessoa que ri, incluindo nós. Creio que isto mostra claramente a natureza da ameaça, despercebida mas sempre presente, contra a qual o riso não pára de se defender, a do objecto ainda não identificado que precisa de se expulsar. A pessoa que ri está prestes a ser anexada pela estrutura de que a sua vítima já faz parte. Enquanto ri, acolhe e rejeita ao mesmo tempo a percepção desta estrutura na qual o objecto do seu riso já está preso; acolhe-a de boa vontade na medida em que é outro que não ele que é apanhado na armadilha, mas ao mesmo tempo tenta mantê-la à distância. A estrutura, que nunca é individual, tende a fechar-se sobre a pessoa que ri. Compreende-se agora porque é que o riso, mais do que as lágrimas, tem as propriedades de uma crise; a estrutura é muito mais visível no cómico do que no trágico; a autonomia do espectador é nela mais imediatamente e mais gravemente ameaçada. (p. 209)
 
[...]
 
O riso físico, como dissemos, tem como objectivo repelir uma agressão vinda do exterior e de proteger o corpo contra uma eventual intrusão. mas as quase convulsões do riso, se se prolongam, acabam por resultar no desmoronamento desde domínio de si que deveriam preservar. O verdadeiro riso torna-nos fracos e reduz-nos quase a uma semi-impotência. (p. 210)

René Girard, A voz desconhecida do real: uma teoria dos mitos arcaicos e modernos, Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

domingo, 1 de janeiro de 2017

É JANEIRO!


Janus, que viria a dar o nome ao primeiro mês do nosso calendário, é o deus da Iniciação na Antiguidade, detentor das duas chaves, a de Ouro e a de Prata, representando os Grandes e os Pequenos Mistérios (essas duas chaves, assim como a barca de Janus, premanecem depois como atributos de S. Pedro e dos outros Papas). Deus da Iniciação, ele é também, por isso mesmo, e para os Romanos, o protector das corporações de artífices.


Janus está igualmente relacionado com os solstícios - "Janus Caeli", a "porta do Céu", é o Inverno; "Janus Inferni", a "porta do inferno", é o Verão. Estas duas festas solsticiais vão depois tornar-se as dos dois S. João do Cristianismo [...]. Neste aspecto, Janus é o Senhor do triplo tempo e da eternidade - como Cristo. E não esqueçamos que o aspecto esotérico da tradição cristã é geralmente chamado de "joanita".
 

O deus é sempre representado com duas faces, uma anterior e outra posterior, ou uma exterior e outra interior, exotérica e esotérica. Mas existe ainda uma terceira face, a invisível, não representada, não representável, por isso mesmo a mais importante. (p. 8)

 
(Trecho extraído do prefácio de Antônio Carlos Carvalho)


Fonte: Antônio Telmo, História secreta de Portugal, Lisboa, Vega, 1977.