Voegelin, Girard e Ortega y Gasset demonstram a necessidade de se reconquistar o significado ontológico dos símbolos.
Eric Voegelin identificou a gênese do conceito de alienação (allotiosis) na filosofia estóica, e a definiu como "um estado de retirada do próprio eu [...] um recuo da razão na existência" (2007, P. 118), fenômeno que causa em sua vítima uma profunda perda de sentido na existência humana, todavia, mesmo quando a função racional perde seu sentido superior, de buscar o sentido da vida humana no interior da realidade, a racionalidade permanece como uma ferramenta de justificação do próprio estado de alienação, mediante a racionalização da própria alienação.
O estado de alienação é, portanto, o império da violência sobre a razão, que legitima a vingança interminável, típico de crises miméticas, e, conforme a chave explicativa da teoria mimética há no ser humano uma tendência de racionalização dos motivos irracionais desencadeadores da sucessão de retaliações típicos da vingança, em que a violência desenfreada retroalimenta-se mediante o uso da lógica da reciprocidade, uma justificação sem fim até ao ponto da virtual autodestruição do corpo social na indiferenciação da violência, cuja solução de continuidade, eventualmente, é alcançada com o sacrifício de um para salvar a todos, o bode expiatório, o que nas sociedades arcaicas significou a criação do primeiro símbolo diferenciador, ao mesmo tempo nefasto e sagrado, pois a vítima representava ao mesmo tempo o bem que encerra o conflito e o mal que o iniciou, o sagrado e a violência.
René Girard, de forma análoga a Voegelin, descreve a necessidade de uma "teoria genética" que remeta à estrutura do real, na qual a linguagem simbolizada pelo rito sacrificial é uma metáfora da violência humana, que se não for ordenada e sacralizada implicará na libertação dos demônios da vingança sem medidas, o rito torna-se o símbolo da violência domesticada pela linguagem metafórica dos símbolos, e por isso adverte que:
[...] a teoria vitimária não confunde grosseiramente a perseguição espontânea com os sacrifícios rituais, mas permite que se descubra uma relação ao mesmo tempo metafórica e real entre a perseguição espontânea e todos os sacrifícios. A relação é metafórica, pelo de que todo gesto ritual consiste numa substituição da vítima, e real, pelo fato de que a vítima substituída também é imolada, mais do que nunca bode expiatório. (2009, p. 121)
A alienação que racionaliza a violência faz surgir o procedimento político da ação direta, que é descrita por Ortega y Gasset como a forma típica de atuação do homem-massa.
Ação direta é o outro nome de racionalização dos meios violentos para obtenção de resultados políticos e sociais, o que torna a linguagem uma arma de guerra social, e, assim, surge a necessidade de policiamento da própria fala e padronização de seu uso e "porte" como ocorre no fenômeno do "politicamente correto", em que a verdade é sacrificada no altar da opinião predominante.
Ortega y Gasset descreve a alienação do homem-massa ao descrever sua falta de percepção da realidade, uma vez que "o homem vulgar, ao se encontrar com este mundo técnica e socialmente tão perfeito, pensa que foi criado pela Natureza, e nunca se lembra dos esforços geniais de indivíduos excepcionais que a sua criação pressupõe" (1987, p. 76).
Cria-se, assim, um perfil humano mimado e irresponsável [1] que de forma violenta "não quer dar razão nem quer ter razão, mas que, simplesmente, mostra-se decidido a impor suas opiniões" (1987, 89), que "renuncia à convivência de cultura, que é uma convivência regida por normas, e se retrocede a uma convivência bárbara".
O homem-massa é tipo humano alienado da realidade e portador de um "hermetismo da alma, que [...] empurra a massa para que intervenha em toda a vida pública, também a leva, inexoravelmente, a um procedimento único: a ação direta" (idem, p. 90). Ortega y Gasset ressalta que a violência implicada na ação direta é a "razão exasperada" (idem).
A alienação é a razão exasperada, e, tal como Voegelin descreve, é o abandono da compreensão da realidade como uma "tensão entre o humano e o divino", e, sistemas, como o de Hegel, são a "sistematização de um estado de alienação", uma vez que há a rejeição da "razão divina", por meio da "revolta egofânica", e de forma emblemática esclarece que:
"Não é possível se revoltar contra Deus sem se revoltar contra a razão e vice versa" (2007, p. 118).
É da tensão entre o humano e o divino que emerge a ordem, que de forma eficaz conserva a experiência humana, com o grau de sentido necessário à sua perpetuação.
As idéias são um desenvolvimento conceitual secundário, pois segundo Voegelin "as idéias transformam os símbolos, que existem para expressar experiências, em conceitos" (2007, p. 121).
O símbolo é o ente originário da linguagem, cuja gênese analoga em forma de representação uma experiência, cujo sentido e significado é o produto da tensão do humano que se depara com as qualidades, cósmica (material) e divina (espiritual), da realidade.
O símbolo é a substância da linguagem dos mitos, e das revelações religiosas, enquanto que a criação de hipóteses e teses explicativas é oriunda da interpretação do significado secundário dos símbolos, processo hermenêutico que promove o desenvolvimento de conceitos, que com o tempo acabam sendo encarados, os conceitos, como integrantes de uma realidade abstrata e apartada da própria realidade da experiência, como se a unidade do real pudesse ser partida ao meio com uso da linguagem, e, como se houvesse "uma outra realidade que não a realidade da experiência" (2007, p. 121).
A negação da realidade como experiência viva e concreta, e a mera percepção conceitual e abstrata, que julga a existência de conceitos e idéias, como algo com uma existência à parte, é o fruto da ação deformadora das idéias sobre a "verdade da experiência" e "sua simbolização" (2007, p. 121).
Voegelin definiu que devemos distinguir a "experiência compacta do cosmos" ou "experiência primária do cosmos" das "diferenciações" que levam "à verdade da existência no sentido dos clássicos gregos, dos profetas de Israel e do cristianismo primitivo" (2007, p. 122), e, para caracterizar a transição entre verdade compacta e a verdade diferenciada na história da consciência cunhou o termo "salto no ser".
A definição de experiência compacta no cosmos, como criação de símbolos primários, casa muito bem com a definição de crise mimética, no âmbito da teoria de René Girard, uma vez que é do processo da indiferenciação violenta no âmbito do mecanismo mimético, que se cria o bode expiatório, que, assim, cria o símbolo que interrompe a mimesis violenta, com a instituição do rito sacrificial, que é a repetição do assassinato fundador.
A teoria mimética descreve a gênese do bode expiatório como a gênese do símbolo diferenciador, que favorece a constituição da estabilidade social necessária para a instituição da própria linguagem, cujo símbolo fundador é o próprio bode expiatório.
Voegelin presume em sua teoria uma experiência primária, que cria símbolos cosmológicos e compactos, que estabelecem o lugar do homem na criação, sendo o bode expiatório, na perspectiva mimética, este símbolo, que, ao possibilitar a criação do rito ,permitiu a experiência que engendrou a gênese dos símbolos, que, posteriormente, criou o ambiente social em que a racionalização conceitual possibilitou o "salto no ser", por meio da constituição de símbolos diferenciadores na história da consciência. Voegelin adverte que a:
"transformação das experiências e simbolizações originais em doutrinas podia conduzir a uma deformação da existência, caso o contato com a realidade tal como experienciada fosse perdido e o uso dos símbolos de linguagem engendrados pelas experiências e simbolizações originais degenerasse em um jogo[...]" (2007, p. 123)
O princípio orientador para Voegelin é que "a realidade da experiência é autoevidente. Os homens valem-se de símbolos para expressar suas experiências, e os símbolos são a chave para compreender essas experiências" (2007, p. 124), uma vez que o que "é experienciado e simbolizado como realidade, e um processo de progressiva diferenciação, é a substância da história" (idem).
A alienação, portanto, é uma exasperação da razão, que promove o processo de descolamento das idéias do tecido da realidade, perdendo-se a manifestação da unidade com o real presente na linguagem dos símbolos, pois a linguagem ideológica destrói a diferenciação conquistada a duras penas pelas gerações anteriores, é o primitivismo criticado por Ortega y Gasset.
O império de idéias abstratas não mais busca fundamento na realidade da experiência, e em sua complexidade, é o imperialismo da abstração que julga a realidade de forma simplificadora, é a hipótese idealista, que, com a força do negativo, impõe-se contra a substância do real. A alienação é a negação da realidade autoevidente, é a negação do senso comum constituído por símbolos representativos da realidade, em sua profundidade histórica e diferenciada.
Para exemplificar o processo de alienação Voegelin refere a excelente formação filosófica de Marx, e que o mesmo "sabia que o problema da etiologia na existência humana era central para uma filosofia do homem e que, se quisesse destruir a humanidade do homem fazendo dele um "homem socialista", precisava repelir a todo o custo o problema etiológico. (2007, p. 84).
O problema etiológico é o problema da origem de tudo, é colocação da questão da causalidade, é a percepção de que tudo possui uma causa anterior, até que se chega à causa primeira, e, neste ponto Voegelin afirma que:
"o charlatanismo marxista reside na terminante recusa de dialogar com o argumento etiológico de Aristóteles, isto é, com o problema de que a existência do homem não provém dele mesmo, mas do plano divino da realidade" (2007, p. 84).
O diagnóstico da alienação feito por Voegelin em relação a Marx é certeiro ao afirmar que sua trapaça intelectual "pretendia sustentar uma ideologia que lhe permitisse apoiar a violência contra seres humanos afetando indignação moral" (2007, p. 83).
A alienação é um processo de justificação da violência por meio de idéias racionalizadoras, é a legitimação da criação de bodes expiatórios a serem sacrificados no altar da ideologia.
A alienação perante a realidade concreta, por meio da eleição de uma irrealidade de idéias, torna-se característico das ideologias e dos ideólogos que produzem a "destruição da linguagem, ora no nível do jargão intelectual de alto grau de complexidade, ora no nível vulgar" (2007, p. 82).
Voegelin define que é necessária a honestidade intelectual (Intellektuelle Rechtschaffenheit), compreendida como a "intenção honesta de examinar a estrutura da realidade" (2007, p. 79), para que seja possível restaurar a linguagem, e para combater a alienação ideológica que fundamenta a ação direta, que hoje é facilmente identificável no fenômeno do politicamente correto.
O problema etiológico é o problema fundamental a ser resgatado, como o centro de qualquer debate, pois a negação da causalidade implica na constituição, e, na defesa, de idéias céticas e abstracionistas, que tomam o conceito e o juízo abstrativos da concretude do real, como realidades independentes da experiência.
A alienação, por meio da exasperação da razão, que cria quimeras de irrealidade conceitual, é a negação violenta dos limites impostos pelo real, cujo problema etiológico é o ponto de partida fundamental.
Alienação é o fruto, psicológico e intelectual, do ideário que promete o impossível como algo factível, tal qual se dá no caso da ideologia do socialismo, que pretende recriar o cosmos sem dor, sofrimento e desigualdade, e, que, por fim, só é capaz de conceder a igualdade no sofrimento e na morte.
[1] Ortega y Gasset define que "Mimar é não limitar os desejos, dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido, que não é obrigado a nada" (1987, p. 77)
Referências:
Ortega y Gasset, José. A rebelião das massas; tradução de Marylene Pinto Michael; revisão da tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro - São Paulo: Martins Fontes, 1987.
Voegelin, Eric. Reflexões autobiográficas; introdução e edição de textos de Ellis Sandoz; tradução de Maria Inês de Carvalho; notas de Martins Vasques da Cunha - São Paulo: É Realizações, 2007.
Girard, René. A rota antiga dos homens perversos; tradução Tiago José Leme - São Paulo: Paulus, 2009.
O anacronismo essencial da história está
na permanente diferença de vitalidade, interesses e anseios, que
condicionam o convívio entre os jovens, os adultos e os idosos, em
outras palavras, a história, entre outros fatores, é movida pelo
conflito de gerações no âmbito de um povo.
O Brasil, neste exato momento, vive intesamente esta experiência histórica!
José Ortega y Gasset (1) descreve o dinamismo do acontecer temporal, com base na percepção de que um povo existe em três tempos, presentes e simultâneos, representados por três gerações, que são cronologicamente contemporâneas, mas não são coetâneas, isto é, são compostas por pessoas de gerações diferentes, portadores de energias vitais distintas.
Um povo, segundo esta ótica filosófica, é movido, desde dentro, em sua história, pela diferença de coetaneidade entre gerações, são contemporâneas somente no tempo, mas no modo de viver há três presentes distintos em luta, um cheio de promessas futuras, outro vivendo um presente, que se manifesta na forma de futuro que emerge com urgência, e, por fim, um presente próximo a um futuro que se finda, e, que se aproxima cada vez mais de se tornar um passado consolidado, dada a aproximação da eternidade.
Quem hoje tem entre 35 e 45 anos de idade presenciou, por meio da cobertura da imprensa, desde o início dos anos 1990, uma sucessão contínua de escândalos e desastres políticos e sociais.
Confesso que, com base nesta experiência histórica, desenvolvi por volta dos anos 2010-2013, uma vaga impressão de que a história do Brasil havia estacionado, estagnado, tornado-se estática, com base num aparente triunfo petista sobre todas as instituições pátrias (até os programas humorísticos, e a sátira política haviam perdido a graça, o senso de humor estava anestesiado), e o vocabulário jornalístico já reportava termos políticos perigosos que começavam a entrar no vocabulário corrente por volta de 2013/2014, tais como "Governo Central" e "Constituinte Exclusiva para Reforma Política".
Há um velho recurso da narrativa histórica, na qual grandes mudanças são precedidas de desastres naturais, e, neste caso, tivemos um período atípico de seca, e a consequente crise hídrica (2), que, em grande parte, foi fruto da imprevidência e corrupção estatal brasileira.
Vieram os protestos de Junho de 2013, e, além dos eventos aleatórios de ordem social e climática, houve, finalmente, a emergência de nosso anacronismo histórico essencial, por meio de uma evidente luta entre gerações, e, entre tantos exemplos de campos de batalhas, o mais destacado de todos foi a Operação Lava Jato.
Observe-se o exemplo do Juiz Sérgio Fernando Moro, cujo início de carreira judicante ocorreu em 1996 (3), quando ainda poderia ser classificado na geração dos jovens, e, hoje, já pode ser considerado um homem maduro, na faixa dos 40 anos de idade, e, tal como este magistrado, há uma geração de brasileiros, que ocupam postos e funções, públicas e privadas, que vivenciam um conflito de gerações com a gerontocracia, que se encontra encastelada no poder, afinal, é fácil perceber que, as figuras dominantes da política nacional, se encontram na faixa dos 60/70 anos de idade ou mais.
Gerontocracia cubana
A crise entre gerações é um dado presente, uma luta social entre velhos senhores decrépitos da política nacional de um lado, e, de outro, a geração que atingiu a maturidade necessária para assumir as rédeas do governo, da lei, dos negócios e da história brasileira.
A tensão da luta entre gerações permanecerá um importante fator da nossa história, uma vez que a expectativa de vida da elite anciã (e o Hospital Sírio-Libanês de São Paulo) a habilita a resistir, em seu anacronismo, por muito tempo ainda.
(1) ORTEGA Y GASSET, José. Que é filosofia? : obras inéditas . 1ed.. Rio de Janeiro: Ed. Livro Ibero-Americano Ltda, 1961, p. 27.
[...] É isto a geração: uma variedade humana no sentido rigoroso que ao conceito de "variedade" dão os naturalistas. Os membros dela vêem ao mundo dotados de certos caracteres típicos, disposições, preferências que lhes emprestam uma fisionomia comum, diferenciando-os da geração anterior.
Mas esta idéia inocula súbita energia e dramatismo ao fato tão elementar como inexplorado de que em todo presente coexistem três gerações: os jovens, os homens maduros, os velhos.
Porque isto significa que tôda atualidade histórica, todo "hoje" envolve em rigor três tempos diversos, três "hoje" diferentes, ou, em outras palavras, que o presente é rico de três grandes dimensões vitais, as quais convivem alojadas nêle, queiram ou não, travadas umas com as outras e, por fôrça, como são diferentes, em essencial hostilidade.
"Hoje" é para para uns vinte anos, pra outros quarenta, para outros sessenta; e isso, que sendo três modos de vida tão diversos, tenham que ser o mesmo "hoje", declara sobradamente o dinâmico dramatismo, o conflito e a colisão que constitui o fundo da matéria histórica, de tôda convivência atual. [...]
Todos somos contemporâneos, vivemos no mesmo tempo e atmosfera, mas contribuímos para formá-los em tempo diferente.
Só se coincide com os coetâneos. Os contemporâneos não são coetâneos; urge distinguir em história
entre coetaneidade e contemporaneidade.
Alojados num mesmo tempo externo e cronológico convivem três tempos vitais diversos.
É isto o que costumo chamar o anacronismo essencial da história.
Graças a êsse desequilíbrio interior se move, muda, roda, flui.
Se todos os contemporâneos fôssemos coetâneos, a história se deteria anquilosada, putrefacta num gesto definitivo sem possibilidade de inovação fundamental alguma. (p. 26-7)
ORTEGA Y GASSET, José. Que é filosofia? : obras inéditas . 1ed.. Rio de Janeiro: Ed. Livro Ibero-Americano Ltda, 1961.
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SUMÁRIO: Intróito – 1. Que é o direito? – 2. Um
breve histórico do direito ocidental – 3. Fato, valor, norma e o direito
natural – 4. Crítica à teoria pura do direito – 5. Sintetizando o que já
foi dito – 6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de solução
– 7. Direito processual e direito material – 8. Que são princípios? – 9.
Normas-princípio e normas-limite – 10. Conclusão – Bibliografia.
Resumo: O direito é um fenômeno social e é objeto de
estudo de uma ciência cultural, a ciência do direito, d’entre os muitos
métodos científicos possíveis vislumbramos a teoria pura do direito,
que consideramos adequada como mero instrumento de análise lógica do direito
positivo numa perspectiva auto-referente, entretanto, tal postura é
insuficiente, pois a auto-referência do texto legal não é uma garantia de que
os direitos humanos serão protegidos segundo os valores e ideais que informam a
idéia de justiça. Propomos a solução desta insuficiência ética mediante a
adoção novos conceitos a respeito de princípios jurídicos estruturados
hierarquicamente: princípios, princípios-norma e princípio-limite; tudo com
fundamento num conceito físico-bio-racional de direitos humanos, partindo de
uma acepção de senso comum a respeito do direito enquanto fenômeno social.
Palavras-chaves: princípios – teoria pura do direito
– direito natural – princípios-norma – princípios-limite – norma
fundamental pressuposta.
Intróito.
Falemos sobre o direito, e antes de tudo, aviso que sempre me
referirei a direito em letra minúscula, e, para realçar, quando me referir ao
direito em suas manifestações – de ciência, norma vigente e válida ou
filosofia, etc. – simplesmente, acrescentarei o adjetivo adequado,
reservando-me a grafar a letra maiúscula somente quando gramaticalmente
necessário.
O estudo do direito enquanto ciência apresenta uma
perplexidade que mais dia menos dia afeta o seu pesquisador, e, é justamente o
fato de que por mais que a atitude do jurista busque uma postura neutral,
entretanto, sempre interferem valores, tais valores recebem o nome de
princípios que se sobrepõem inclusive sobre o texto constitucional quando a
doutrina revela princípios implícitos, como é o caso da segurança jurídica.
O objeto de estudo do direito é o conjunto de normas que
vigem em determinado contexto territorial, histórico e social; por que não
considerar tais princípios como normas, ? E, mais, tais normas não se
reportariam diretamente a princípios primeiros, tais como a vida, a liberdade e
a propriedade?
Portanto, os cognominados princípios seriam
princípios-norma que se reportariam aos verdadeiros princípios informadores do
direito! Sob esta perspectiva devemos prosseguir na tentativa de
melhor fundamentar tal assertiva.
1. Que é o direito?
Direito em acepção comum nos remete à idéia de posse. Posse é pretensão fundada num título, formal ou informal,
real ou imaginário, ou seja, é o produto de uma manifestação de vontade,
livre ou vinculada, sobre algo ou alguém, com a finalidade de usar, gozar,
dispor ou consumir (PIPES, 2001: 32) o bem possuído, isto é, a idéia de
direito é uma idéia de posse e/ou propriedade.
Ora, só há posse de algo se esta pertencer a alguém, e
este só poderá vibrar sua pretensão se a mesma for o objeto de desejo de
outrem, daí a natureza heterônoma do direito, sua natureza social, enquanto
objeto de desejo mimético (GIRARD, 1990), que necessariamente deve ser
condicionado por limites axiológicos e objetivos.
Entretanto, o direito como objeto produzido culturalmente
jamais deve ser encarado como um instinto social, pois não existe direito na
sociedade das abelhas ou numa alcatéia, o direito, além de social é racional,
melhor dizendo: é eminentemente racional, é em verdade a
racionalização da vida social possibilitadora da convivência baseada no
consentimento e na boa-fé recíproca, esta é minha definição de ética a
fundamentar a posse legítima de qualquer direito.
2. Um breve histórico do direito ocidental.
De tanto ler sobre sociedades primitivas e/ou arcaicas
(GIRARD), sobre a Civilização Clássica (COULANGES, 2001), sobre as luzes
medievais (CHESTERTON, 1957) e as trevas modernas (PIPES, 1997), nada é mais
fácil de se perceber que quanto mais primaveril uma sociedade mais se pode
afirmar que todas as normas sociais (morais, religiosas, de meras condutas
sociais ou simplesmente éticas) são eminentemente jurídicas, e jurídicas por
mandamento divino, o próprio direito romano, tão celebrado como o fundamento
do direito ocidental nada mais era, quando em vigor, que uma série de
formalidades rituais originadas na religião arcaica romana, daí a extrema
importância dos ritos e da forma para os habitantes do Lácio.
O cristianismo com seus dogmas da divisão entre o Estado e a
Igreja e sua ética de amor e perdão, associados aos sábios ensinamentos
helenos que demonstram filosoficamente que o direito positivo está submetido à
justiça, e, que esta se fundamenta no direito natural, tais tendências
preencheram de razão e sensibilidade o duro e frio pragmatismo jurídico do
conquistador romano para a formação do direito ocidental, e, com isso,
sedimentar o apogeu do direito ocidental, que fundamenta juridicamente àquele
fenômeno econômico e social que convencionalmente chamamos de globalização.
Assim do caldo das três culturas fundadoras do mundo
ocidental consumou-se após mais de dois milênios de fluxos e refluxos a atual
visão do direito como conjunto de normas jurídicas distintas no universo das
normas sociais.
O direito é composto de normas sociais cuja nota distintiva
é a sanção eficaz em seu grau máximo, ou seja, é a norma imposta pela
força se preciso for, enquanto as demais normas sociais quando possuem
sanções o são em grau de menor eficácia, pois não se operacionalizam pela
imposição mediante o uso da força legítima, pois então seriam jurídicas.
3. Fato, valor, norma e o direito natural.
Logo, para que haja uma norma jurídica basta que a sociedade
atribua valor a determinado objeto e o proteja com mecanismos eficazes
passíveis de atingir, potencialmente, o grau máximo de violência legítima
contra o transgressor dos limites socialmente impostos. Miguel Reale (1988: 103) em sua assertiva filosófica
identifica três dimensões no direito: fato, valor e norma; elementos
estruturados dialeticamente, pois fato sem valor jurídico não é subsumível a
uma norma, norma é fruto de fatos valorados, e fato associado à norma onde se
ausenta a relevância social da conduta é norma em desuso.
O Direito é, portanto, o fenômeno social apreensível
quando pretendemos estudar uma sociedade desde suas estruturas de convivência,
é o conjunto das leis phisicas de uma sociedade, pois phisis é o
mesmo que natureza, ou seja, em outra terminologia podemos dizer que o
Direito é o conjunto das leis naturais que possibilitam a vida social.
As leis da phisica social não são as mesmas leis que
regem os fenômenos físico-biológicos, aquelas são leis que existem com e
sobre estas, as leis naturais que incidem sobre o homem sofrem limitações do
meio físico-biológico, mas, possuem face racional e natureza discursiva, cuja
existência é relacionada com o contexto cultural e cronológico de dada
sociedade (Em oposição às leis físico-biológicas, que são leis sem
história e sem contexto, pois a água sempre terá duas moléculas de
hidrogênio e uma de oxigênio e o ferro sempre pigmentará o sangue de rubro.).
Antes de prosseguir, devo ressaltar que a consciência de um
certo condicionamento histórico relativo aos direitos naturais humanos
é um fato da vida que não pode ser ignorado, mas, esta percepção não é uma
tomada de postura evolucionista em sua versão aplicada às ciências sociais,
ou seja, o historicismo, o que percebo é que o contexto histórico e social
são fundamentais para que o direito seja aplicado, em maior ou menor grau,
conforme as constantes racionais presentes na phisica social, v. g.,
o direito à vida é uma constante que em diversos momentos e contextos
históricos é altivamente ignorada e em outros, como em nossa atual ordem
constitucional é elevada à categoria de cláusula pétrea com a vedação de
pena de morte (art. 5º, inciso XLVII, alínea ‘a’, da CF), salvo
em circunstância bélicas que implicam na suspensão de tal proibição.
Diante deste quadro, pintado em rápidas pinceladas, em que o
direito é encarado como realidade histórica condicionada a leis naturais
físico-biológicas e racionais, pergunto: que leis naturais e racionais são
essas?
Vejamos, quando acima falei num sentido coloquial da palavra
direito, e remeti à idéia de posse, quis frisar uma idéia de senso comum, e,
ainda com base nesse mesmo sentido comum pergunto-me: qual o direito, ou
posse, que pressupõe todos os direitos e posses, sem a qual não se pode
cogitar da posse de qualquer outro direito? Qual o direito que encontra o seu
fundamento na realidade natural físico-bio-racional?
A vida é ao mesmo tempo a posse que pressupõe todas as
posses e o pressuposto ontológico a qualquer posse, é ao mesmo tempo
fundamento material e formal para os demais direitos.
De posse da vida postulamos a liberdade, para usufruir uma e
outra necessitamos de ao menos duas posses ou propriedades fundamentais: a
primeira é posse da própria vida, a segunda é a da liberdade de dispor com
livre arbítrio o próprio destino.
Aqui a vida é tomada naquele sentido impresso por Ortega y
Gasset (1962: 184), de que a vida implica e é implicada por um cabedal de
circunstâncias lógicas e concretas. Nesta perspectiva todos os direitos são humanos, pois todos
estão subordinados à vida, à liberdade e à propriedade, suprima um e farás
ruir os demais.
Diante destas verdadeiras leis naturais (vida, liberdade,
propriedade) é que a ordem jurídico-positiva inteirinha deve se ajoelhar e
reverenciar a idéia de justiça, a idéia de proporção, pois justiça é
proporção direta ou inversa, regressiva ou progressiva, o justo é proporção
qualitativa e quantitativa, dependendo de que bem jurídico valorado seja
material ou intelectual.
4. Crítica à teoria pura do direito.
Quando encaramos o direito como ciência precisamos fazer um
corte metodológico que é puramente formal e abstrato, e, se não tomarmos
todas as contramedidas que nos impeçam de considerar o conceito científico
mais importante que o objeto de estudo, a abstração pela realidade, poderemos
incorrer no equívoco de querer dobrar a realidade viva do direito pela idéia
etérea da ciência do direito.
O método juspositivista em si é meritório ao isolar o
sistema de direito positivo e analisá-lo em suas interações dinâmica e
estática, em possibilitar a análise da ordem vigente e eficaz produzida por
autoridade competente e processo adequado, metodologia que possui muito valor
analítico, mas, em princípio, nenhum valor ético, seria o equivalente a uma
cromatografia que simplesmente separa os elementos constituintes do objeto de
pesquisa.
O diabo tentador vive justamente nesta última parte,
quando o juspositivista se agarra à idéia de processo adequado para a
formação da norma, ou seja, que o direito só é inaugurado por um processo de
enunciação normativa apropriada, passa-se a tomar a parte pelo todo, e,
conseqüentemente, a noção do direito enquanto processo formal acaba
suplantando a sua realidade substancial, que é, em certa medida um processo
concreto existencial cuja forma de constituição é tão livre quanto as
possibilidades de interação social.
O maior vício intelectual produzido pela visão do direito
somente como processo de produção positiva de normas, não obstante as
vantagens analíticas evidentes, proporcionadas pela postura científica aí
inerente, é que a idéia de norma fundamental pressuposta é só uma outra
forma de descrever o imperativo categórico kantiano.;
Kant efetivou uma grande trapalhada conceitual que acabou por
criar uma falsa distinção entre fundamentos ideais e pragmáticos da conduta
humana (CARVALHO, 1998), findou por definir que devemos obedecer a um dever
moral "porque sim", e, assim, quando Kelsen (2000: 221) cria a sua
hipótese científica nos impinge esta mesma noção, devemos pressupor uma
norma fundamental "porque sim", mas, a boa pedagogia ensina que até
para crianças em idade pré-escolar não devemos responder "porque
sim", pois não é resposta adequada para matar a sede de conhecimento
natural ao ser humano quando infante, que dizer para nós que somos quase "doutores".
Portanto, sem negar nem uma vírgula da doutrina kelseniana
naquilo que há de mais fundamental como método hipotético-dedutivo fornecedor
de instrumental teórico válido para analisar o direito positivo como sistema
auto-referente, critico somente o vazio ético inerente à idéia de norma
pressuposta fundamental, nosso Kelsen (2000: 242) tanto criticou a idéia de
direito natural como se fosse um ato de fé, que não se apercebeu que toda a
sua doutrina nada mais é que... um ato de fé; a fé na norma fundamental
pressuposta, num imperativo categórico, num "porque... sim" vazio de
conteúdo e passível de ser utilizado para qualquer finalidade.
Por mais que seja referida a necessidade de que haja uma
escolha política sobre o valor a ser adotado na escolha da finalidade a ser
dada ao direito positivo, a doutrina kelseniana acaba por se recolher numa falsa
neutralidade ao ignorar sistematicamente valores e fatos subjacentes às normas,
para o juspositivismo exagerado a norma é algo vivo e o valor e o fato jazem no
limbo do incognoscível da metafísica.
5. Sintetizando o que já foi dito.
O direito é realidade que se origina na matéria da vida
social, é o processo que possibilita a própria convivência; em suas origens
englobava todas as normas sociais, atualmente, somente aquelas passíveis de uma
valoração tal que implique no extremo do uso da força para sua defesa; é
fruto de processo histórico condicionado a leis naturais físico-bio-racionais;
o princípio fundamental do direito natural é a vida, seguida da liberdade e da
propriedade, toda a ordem jurídica compõe-se de variações sobre estes temas
que são a síntese dos direitos fundamentais.
Diante desta realidade material da vida, da liberdade e da
propriedade, vislumbramos a substância do direito, enquanto que o direito
posto, vigente e eficaz diz respeito à forma de garantir a integridade de tais
matérias.
A crítica que se faz ao juspositivismo extremado, que se
deixa levar pela idéia de que o direito positivo é o único que importa, não
diz respeito ao método e ao objetivo do estudo do direito como ciência, mas,
diz respeito ao perigo que há em se tornar o processo de garantia dos direitos
fundamentais numa forma de supressão destes mesmos direitos fundamentais
mediante uma crescente abstração em que as normas mais disparatadas quanto ao
conteúdo são consideradas legítimas somente em virtude do atendimento das
formas prescritas no processo de produção normativa.
A tendência de abstração do direito é inerente à postura
de kelsen, herdada de Kant, de resolver problemas fundamentais da filosofia
jurídica com a tosca idéia de imperativos categóricos que só se fundamentam
numa afirmação hipotética destituída de valor ou justificativa maior que a
necessidade de conferir um ponto de partida científico ao estudo filosófico ou
jurídico, é como transferir para o direito o fiat lux divino presente
no Gênesis, mas, nem o direito é religião, nem Kelsen foi profeta, logo, a
tentativa de fundar a ciência do direito numa hipótese puramente neutra só
serve como ato de fé vazio de conteúdo, apesar de a teoria pura do direito
ter seu valor metodológico para o estudo analítico e sistemático pretendido
pela ciência do direito em vista do direito positivo como sistema
auto-referente, o seu tendão de Aquiles está justamente em sua
pretendida neutralidade científica.
O direito é uma ciência que estuda a técnica de
determinação deôntica que atua sobre fatos sociais de natureza ôntica e
penetrados de valores, portanto, as limitações inerentes à neutralidade
científica nas análises de fundo kelseniano, e, mesmo os mais formalistas dos
juspositivistas, sempre, têm que se socorrer dos valores e raciocínios da
axiologia jurídica... porque sim.
6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de
solução.
Deve a postura juspositivista ser dosada pela idéia de
direito natural. Somente o direito natural, especificamente partindo da
realidade material e inconteste do direito natural à vida.
O direito natural à vida preenche com sucesso o
conteúdo ético faltante à noção de norma fundamental pressuposta, pois
somente através da existência material da vida se vive o processo existencial
do relacionar-se juridicamente.
O direito em seu sentido mais amplo possível é um reflexo
da realidade, pois quando a norma jurídica, consuetudinária ou escrita, regula
e tutela vida e os seus bens em seus aspectos estático de ser e
dinâmico de dever-ser, situações e relações, então podemos
identificar o direito material e seu corolário que é o princípio-norma da
verdade material.
Quando o direito tutela as relações jurídicas inerentes ao
viver individual e suas interações sociais, definindo os mais diversos
procedimentos, as mais diversas garantias aos direitos materialmente
considerados, quando surgem instrumentos de proteção, prevenção ou
reparação então teremos o direito adjetivo, ou processual, que faz surgir o princípio-norma
do devido processo legal, surge o direito enquanto garantias e mecanismos
efetivos de operacionalização das suas funções preventiva e repressiva de
conflitos sociais.
O ideal está em que verdade material se imponha à verdade
formal, pois o direito é um dever-ser sobre o ser, produto e não produtor,
quando muito indutor.
7. Direito processual e direito material.
Finalmente, esclarecida minha filosofia jurídica, vamos à
doutrina científica, já com base na idéia de direito natural acima expendida,
só me resta fazer o bom e velho corte metodológico e encarar o direito
processual e o direito material pertencentes ao gênero das normas jurídicas,
e, dependendo da perspectiva, as normas processuais podem ser encaradas como
normas de conduta ou de estrutura (BOBBIO, 1989: 45).
São normas de conduta na medida em indicam os limites
objetivos e subjetivos que devem ser atendidos pelos sujeitos passivo e ativo de
dada relação jurídica; de estrutura quando informarem a conduta do agente
público incumbido de julgar o mérito de dado processo, judicial ou
administrativo.
Norma material é a norma de conduta que versa sobre condutas
relativos a determinado bem jurídico, material ou intelectual, objeto de atos e
fatos jurídicos, sem que seja necessária a instauração de outra relação
jurídica em que um terceiro intervenha para solucionar eventual conflito ou
sanar ocasional dúvida.
Uma vez que seja necessária a intervenção de um agente
público para a solução de pretensões oriundas de uma relação jurídica
material, então teremos normas de natureza processual; normas de conduta para
as partes integrantes dos pólos em oposição de interesses, mas que vigerão
como normas de estrutura para o julgador que produzirá uma novel norma
jurídica constituída numa decisão solucionadora da lide, mediante a edição
de uma norma individual e concreta que confirmará, infirmará ou afirmará o
direito material de um dos contendores ou de partes dos interesses recíprocos
em conflito.
Em suma, num linguajar inspirado em Cossio (apud
CARVALHO, 1999: 36), afirmo que o direito material é o conteúdo composto de
bens jurídicos, presentes na endonorma, que sofre a proteção do direito
processual que é a forma de garantir eficazmente aquele mediante a introdução
de uma norma criada processualmente, ou seja, a perinorma, suscetível de
execução forçada, isto é, de coatividade.
8. Que são princípios?
Partindo da premissa maior de que princípios uma vez
fixados, não podem mais "ser questionados por serem auto-evidentes
demais", delimitam "o campo da ciência e as possibilidades do seu
desenvolvimento futuro", e, "tudo aquilo que forma o princípio
fundante de uma ciência não faz parte dela" e que o "desenvolvimento
posterior de uma ciência não mudará esses princípios", e, ainda, que
"o princípio jamais pode ser impugnado" (CARVALHO, 2002: 21).
Passando pela premissa menor de que o direito à vida
é auto-evidente, que sua fruição (liberdade e propriedade) delimitam o campo
de suas possibilidades, que o direito à posse da própria vida está para além
de qualquer consideração juspositiva legítima tendo em vista que o princípio
vital em si não é legislável, e que a sua impugnação é máximo do
arbítrio negador do Direito;
Portanto, concluo que princípio mesmo só o
direito à vida, princípios derivados imediatamente são os direitos à
liberdade e à propriedade, e derivados mediatamente temos normas-princípio
e normas-limite; normas-princípio, indicam limites lógicos
ao aplicador do direito; e, normas-limite determinam as fronteiras
objetivas que devem ser respeitadas pelo jurista.
Diante desta conceituação até admito a terminologia de
Paulo César Conrado (2002: 49 e ss.) de princípios constitucionais e
infraconstitucionais, lato sensu (limites objetivos) e estricto sensu (sobreprincípios),
genéricos e específicos, mas, com um reparo, todos estes princípios ou são
normas de conduta ou normas de estrutura, isto é, ou são limites à conduta
dos sujeitos de uma relação jurídica ou são normas destinadas a regrar a
conduta de um agente competente para produzir normas jurídicas, abstratas e
genéricas ou individuais e concretas. princípios, mesmo, só a fazenda, a
liberdade, e, claro, sobretudo a vida.
9. Normas-princípio e normas-limite:
O que Conrado chama de sobreprincípio, eu prefiro
nominar de normas-princípio, que são normas extraídas expressa ou
implicitamente do sistema positivo, racionalmente reveladas da análise
estrutural do mesmo sistema.
Tais normas-princípio podem até ter qualidades solares ou
de uma lamparina para iluminar a compreensão dos setores normativos (CONRADO,
p. 51), salvo a carga poética ou mesmo de fótons, prefiro dar o parecer de que
são essencialmente normas de estrutura cuja destinação está em orientar a
aplicação do direito, e, aí sim, podem até iluminar as trevas da dúvida
diante de um caso concreto, mas nada mais serão que normas com função
de princípios, ou princípios com função de normas,
normas-princípios, portanto.
Para mim sobreprincípio, ou princípio primeiro, ou
simplesmente princípio é o direito fundamental, cuja origem é natural
e apreensível pelo puro e simples bom-senso, ou seja, o princípio que deve
informar todo os sistema jurídico é a vida, cujas derivações necessárias
são a liberdade e a propriedade.
Para a doutrina tradicional, representada por Conrado, são
os princípios em sentido estrito, ou sobreprincípios que teriam prevalência
hierárquica sobre os princípios delimitadores de limites objetivos cujo
caráter interpretativo possui um caráter axiológico. Ocorre que tais
princípios, ou como prefiro: normas-princípio; são, quando muito, princípios
secundários ou derivados dos princípios pressupostos da vida, liberdade e
propriedade.
Em matéria processual, estas normas-princípio são normas
de estrutura orientadoras da conduta do julgador e garantidoras dos direitos
materiais das partes envolvidas.
Veja-se a norma-princípio do devido processo legal (dues
process of law) que se trata de uma norma orientadora de todo e qualquer
processo que tanto pode inquinar de ineficácia uma sentença que interprete
inadequadamente os dispositivos que garantem a isonomia entre os postulantes do
processo, bem como pode servir para invalidar a própria lei que fira um dos
princípios específicos do processo, como lei que eventualmente suprima o
contraditório e a ampla defesa para desconsiderar administrativamente os atos
jurídicos perfeitos sobre os quais incida uma norma tributária, mesmo que tal
desconsideração se dê sob a égide de uma suposta repressão à evasão
fiscal.
Havendo, ainda, os princípios-limite que Conrado denomina de
princípios em sentido amplo que indicam um limite-objetivo de natureza
instrumental e técnica. ; Patenteia-se, portanto, uma hierarquia tripartite de
princípios jurídicos: princípios, normas-princípio e normas-limite que
sujeitam a interpretação e aplicação estrutural da norma jurídica de
conduta incidente nas relações jurídicas.
10. Conclusão.
A grande conclusão a ser tirada é que o fundamento ético
necessário à norma fundamental pressuposta de Kelsen é o direito
natural fundamental à vida, cuja base físico-bio-racional preenche todos
os requisitos para a definição de um princípio científico, definidor do
âmbito de interesse e dos limites do estudo.
E, tendo em vista que pretendemos somente iniciar um debate
no fecundo âmbito da teoria geral do direito, com especial enfoque no direito
tributário, só nos resta concluir postulando que todo o sobredito é uma
tentativa teórica de fundamentar a norma-limite da verdade real ou material que
se propõe atuar na determinação de limites à sanha arrecadatória do Estado,
pois o direito de tributar é mero direito de confiscar conforme o ordenamento
legal uma parcela razoável do patrimônio do particular, pessoa física ou
jurídica, para sustentar o aparato de serviços públicos destinados a amparar
as garantias e direitos individuais e a Ordem Pública que lhe é vinculada.
Em outros termos, o direito de tributar é uma espécie de
confisco consentido, cujos recursos são destinados ao financiamento do Estado,
cuja finalidade é disponibilizar garantias legais, materiais e processuais, ao
patrimônio jurídico do contribuinte, patrimônio este que principia na posse
de sua própria vida e na livre disposição da mesma.
A estrutura teórica acima descrita, também, tem o sentido
de explicitar o caráter declaratório de toda e qualquer atuação estatal, e,
mais especificamente, quando o Estado efetiva um lançamento tributário jamais
constituirá uma relação jurídica, somente a declarará, quando muito irá
constituir o fundamento jurídico de um título executivo extra-judicial, haja
vista que a obrigação tributária é fruto da incidência abstrata da norma,
enquanto o crédito é necessariamente um produto da incidência concreta da
norma, realizável mediante ato de declaração, a natureza constitutiva será
limitada somente ao crédito, e, sua constituição implicará na interrupção
do prazo decadencial, quando o lançamento é realizado tempestivamente, e, no
início do prazo prescricional, para a propositura da execução fiscal.
Ao nascermos o Estado somente declara que viemos ao mundo com
o atributo da vida, a certidão de nascimento é mera norma individual e
concreta que serve de pressuposto a outras normas individuais e concretas, como
a carteira de identidade, logo, tal qual no lançamento tributário, a vida, e
os fatos econômicos da vida, são mero objeto de declaração, numa de
constituição, o que o Estado constitui são somente normas, abstratas e gerais
ou individuais e concretas.
Quando o Estado se propõe a manipular os conceitos
jurídicos a ponto de ignorar o fundo ontológico do direito, mediante a
edição de leis que definem e punem supostos abusos de direito, criando
ficções jurídicas em que o contribuinte é punido por atuar regular e
licitamente conforme o ordenamento jurídico quando efetiva o seu planejamento
fiscal, então, preparemo-nos porque tal Estado se esqueceu das garantias e
direitos fundamentais do indivíduo, e, no lugar dos direitos humanos de fundo
real e concreto baseado na própria vida, pretende instaurar o totalitarismo
da supremacia do interesse público fundado na abstração jurídica e
formal de uma norma fundamental pressuposta vazia de conteúdo ético.
A norma fundamental pressuposta, mera hipótese
científica, quando tomada não como meio, mais como fim, acaba por ser
passível de servir à velha promessa messiânica de instauração do paraíso
terrestre, projeto que sempre ao ser executado se converte na própria visão do
inferno sobre a Terra.
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Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)
COELHO, Werner Nabiça. Princípios jurídicos e direito natural.. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 88, 29 set. 2003.
Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4361>. Acesso em: 4 jun. 2016.