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quinta-feira, 5 de abril de 2018

RAZÕES, LINGUAGEM, POLÍTICA E EDUCAÇÃO



RAZÕES DISCURSIVAS E RAZÕES EMOCIONAIS

Não realizo uma radical distinção entre razão discursiva e razão emotiva.

Não existe um racional puro distinto de um irracional puro, ambos são modos de manifestação da linguagem.

Ocorre que a emoção é a primeira linguagem, aquela que mais nos aproxima de nossa matriz animal.

Por isso aprecio muito a teoria do desejo mimético de René Girard que apresenta uma razoável explicação entre o controle da emoção em sua forma de linguagem não verbal e o início da linguagem verbal por meio do fenômeno da crise mimética e do bode expiatório.

A Ética Clássica, que por sua vez é um dos fundamentos da Ética Cristã, sempre destacou que o problema da virtude é um equilíbrio entre as intenções morais e a prática efetiva das ações, não é à toa que se cunhou a expressão de "que o inferno está cheio de boas intenções"

Phronesis é a boa e velha razão prática que se preocupa com a relação de causa e efeito entre ação, intenção e resultado, conforme a régua da virtude que está no justo meio.

Ética é o nome grego para o conjunto de teorias sobre comportamento humano ideal segundo a virtude, moral é somente sua denominação latina, portanto, quando há uma "desmoralização" de uma sociedade, então temos a criação de um "conjunto de teorias sobre o comportamento ideal para negar a virtude"

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ANTROPOLOGIA E LINGUAGEM POLÍTICA

A antropologia de René Girard é interessante na medida em que descreve uma bela hipótese para o surgimento da própria linguagem verbal.

O nascimento da linguagem é a condição de possibilidade para a descrição das descobertas em todas as demais ciências.

Evidencia-se, também, que o controle da violência é operado pelo surgimento da linguagem verbal, pois é a comunicação eficaz que cria a paz necessária para os demais desenvolvimentos da humanidade.

É como no Brasil de hoje, pois enquanto nossa insegurança pública for predominante não teremos níveis satisfatórios de crescimento econômico, porque o crime impede os negócios de prosperarem em todo seu potencial.

Hoje a linguagem do povo e a linguagem do governo não vem sendo compartilhada, situação que faz prevalecer a linguagem da violência, pois violência é incompreensão e vingança, o cálice que nos resta quando a surdez e a cegueira prevalecem.

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MAQUIAVEL NA EDUCAÇÃO

Vamos fazer assim: seja professor e ensine aos alunos que Maquiavel é brilhante e está certo em sua apreciação de que o mal na política "é um mal necessário", depois de alguns anos reclame que os cidadãos votam em políticos que aplicam a política maquiavélica. Quem é o maior responsável?!


sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

COM A INTELIGÊNCIA SENTIMOS, DESEJAMOS, DECIDIMOS E INVESTIGAMOS



A inteligência é uma harmonia musical composta de sentimento, desejo, vontade e razão.

A filosofia moderna reduziu-se a considerar a inteligência como o mero exercício do elemento racional, e, pior, somente considera o aspecto racional em sua forma discursiva, como se palavras e abstrações mentais fossem realidades mais tangíveis que a própria realidade concreta.

A chave teórica dos quatro discursos, proposta por Olavo de Carvalho, nos habilita a afirmar que a inteligência principia pelo sentimento, que é um fruto direto da percepção estabelecida no contato com a realidade concreta em seu nível empírico e intuitivo, que possibilita o desenvolvimento do discurso mito-poético, esta linguagem do ponto vista antropológico recebe um forte aporte quando enfocado pela teoria mimética de René Girard.

A poética é forma inicial da linguagem que processa a percepção primária em formas imaginativas de representação simbólica do real, é o salto no ser descrito por Eric Voegelin, justamente por ser a forma que mais entra em contato com o esplendor da criação, e de onde se origina a linguagem simbólica grávida de significados, cujos infinitos sentidos são decantados nos demais níveis da linguagem.

O desejo de se impor perante seus pares é o instinto humano essencial, e, com base em posturas que postulam a dominância nas relações interpessoais cria-se a linguagem retórica, que nada mais é que o domínio da linguagem para defesa de interesses e objetivos pessoais na luta pelo poder social.

Mas, como necessitamos viver em sociedade, e como há resistências que devem ser vencidas constantemente, e, constata-se que quando é excluída a possibilidade de exercício da força e da violência pura e simples, há a necessidade de ser estabelecido um acordo de vontades para possibilitar o confronto controlado (dialético) das retóricas.

O objetivo de obter o consenso é o de estabelecer instituições que dependem de trocas e acordos possibilitadores do convívio em sociedade, assim, a vontade de coexistir deverá obter meios de gerenciar os desejos e os sentimentos interindividuais para possibilitar a discussão civilizada e política, este é padrão da linguagem dialética, o meio pela qual a linguagem investiga a realidade e obtém padrões conceituais e de conduta que podem ser aceitos como verdades estabelecidas e são condições de possibilidade para sobrevivência da comunidade.

A linguagem dialética é fértil por adotar o referido modelo investigativo, que imprime o hábito da racionalidade no processo de discussão de fenômenos e idéias, e, quanto mais aperfeiçoado o método dialético, mais clareza se obtém na formulação de conceitos e descrições de fatos, ao ponto de estabelecer certezas que influirão no processo de criação da própria ciência.

Prosseguindo-se nesse processo revelam-se os marcos práticos e teóricos da razão, que na posse das premissas reveladas nas etapas anteriores, é capaz de promover raciocínios silogísticos, que instrumentalizam a linguagem lógica, que é a forma de expressão do conhecimento científico, mas sua base é o processo de investigação dialética.

Ora, o momento decisório é a situação na qual há necessidade de se obter algum nível de certeza, a ciência bem estabelecida é tal qual uma arte premonitória, pois estabelece corretamente as relações de causa e efeito, que são tão bem expressas pelas estruturas silogísticas.

Sentimos, desejamos, decidimos e investigamos a realidade com nossa inteligência, pois é inegável que nunca deixaremos de nos deleitar em contemplar o arranjos que presenciamos na criação.

Werner Nabiça Coêlho

domingo, 20 de agosto de 2017

O SÍMBOLO GERA O RITO E O MITO



O símbolo, até onde entendi com base em Eric Voegelin e René Girard, é a fonte primária da linguagem como participação em realidades fundamentais à existência humana.

A primeira realidade fundamental que tem que ser apreendida é a necessidade de autocontrole social da violência, e, nas origens da humanidade tal fato social se configura mediante a necessidade do respeito ao sagrado e à divindade, o princípio do respeito às hierarquias dentro da realidade humana e divina, para que haja uma ordem capaz de conter os riscos inerentes à eclosão da violência sem limites em um ciclo sem fim de destruição.

O mecanismo mimético, quando encontra sua solução pacificadora no bode expiatório, a vítima simboliza o significado divino daquele que é portador do malefício e do benefício, é o algoz e o benfeitor.

A violência social ao ser pacificada pela violência do sacrifício, esta capaz de ordenar o caos daquela, assume, assim, um significado diferenciador, torna-se um símbolo, em que morte da vítima possibilita a instituição de uma ordem sagrada porque foi eficaz, é um ato fundador.

A vítima concentra em si o bem e o mal inerentes à violência da comunidade, o rito é a religação à esta estrutura fundadora de significado, na forma de um conjunto de ações e reações, expressões, sons e memórias que nem precisam estar verbalizadas, basta que sejam reproduzíveis.

É o rito que, ao reproduzir continuamente o sacrifício (por séculos, por milênios), funciona como a primeira forma cultural, na qual o símbolo (rito) é um dado empírico e concreto, necessário para a manutenção da ordem sagrada que afasta o caos da violência sem freios e sem diferenciação, e este símbolo é representado no rito que conduz à vítima sacrificial.

Com o tempo, o rito se estrutura linguisticamente e favorece a criação da narrativa mítica, pois sua repetição permite a paz necessária para a sociedade desenvolver a língua e o vocabulário com base na estabilidade criada por meio do próprio rito.

A vítima se converte no deus e/ou no herói, neste sentido, o símbolo nem verbal é em sua origem, e quando se torna verbalizável, origina a linguagem poética na forma de narrativas sagradas, os mitos.

Werner Nabiça Coêlho - 20/08/2017

sábado, 19 de agosto de 2017

SENTIMENTOS, EMOÇÕES E LINGUAGEM


Ao se adotar um foco relativo à etiologia da linguagem é possível detectar que em animais superiores o sentimento é manifestação da primeira linguagem codificada seja em gestos, expressões faciais ou corporais, sons musicais ou de ênfase como rosnados.

A humanidade necessitou erigir o verbo em meio aos gritos com base na harmonia dos símbolos, que inicialmente surgiram de uma progressiva harmonização dos sentimentos em emoções, estruturas de linguagem sentimental possuidoras de conteúdo comunicacional mais consistente e expressiva de um estado psicológico específico.

A conversão da reação do sentimento cego na estabilidade das emoções significativas, simbolizadas por nomes próprios, foi o fruto da repetição de rituais religiosos originados das crises miméticas, que operaram o progressivo nascimento dos símbolos diferenciadores da cultura.


Cabe aqui esclarecer que a chave da teoria mimética de René Girard é fundada na criação do bode expiatório, uma vítima sacrificada pela violência sagrada, originada na violência caracterizada pela espiral da vingança que eventualmente domina a comunidade quando os processos miméticos fogem do controle.


O sacrifício do bode expiatório, fenômeno que ocorre dentro do mecanismo mimético, contém o processo da violência sem fim, assim, o ato sacrificial origina o rito, que é a reprodução dessa violência sagrada mantenedora da paz social, em contraponto à violência profana e irracional na qual os sentimentos são inominados e indiferenciados.

Neste sentido, o temor ao sagrado é um mecanismo que origina a linguagem, e explica como somos capazes de racionalizar o temor em amor, pois o próprio fato de atribuirmos nomes às emoções e aos sentimentos implica na criação de símbolos, imagens, referências, diferenciações.

A conversão de reações sentimentais em emoções racionalizadas é uma técnica de sobrevivência da espécie humana que possibilita o controle da violência humana e social.

Daí a criação de emoções e o ato nominá-las ser um tipo de racionalidade com foco na necessidade de sobrevivência, um exemplo misterioso, e já bem vulgarizado no senso comum, é o processo descrito como "Síndrome de Estocolmo", em que a vítima converte o temor ao algoz em respeito à autoridade, ou mesmo em amor ao tirano, por isso que ditaduras e totalitarismos são tão longevos, pois o medo é uma emoção que conforma o verbo "obedecer", e, da mesma forma,  em sociedades republicanas e/ou democráticas, o amor funda a caridade e a autonomia de pessoas livres por meio do senso de responsabilidade.

Werner Nabiça Coêlho - 19/08/2017

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O MITO DO HERÓI E JAIR BOLSONARO



A página do STJ no facebook nunca foi tão "avaliada" em sua existência, como depois da confirmação da condenação do Deputado Federal Jair Bolsonaro ao pagamento de uma indenização civil àquela senhora defensora de menores infratores.

Jair Bolsonaro foi condenado a pagar a bagatela de 10 mil reais, e, em troca recebeu gratuitamente uma massiva campanha de "marketing involuntário", gerenciada por aquela "agência de propaganda" denominada STJ que destacou com tanta ênfase a notícia com a seguinte chamada: "Jair Bolsonaro terá de indenizar deputada Maria do Rosário por danos morais".

O Deputado Jair Bolsonaro é tão sortudo, mas tão sortudo, que até quando é condenado obtêm resultado prático melhor que o de uma absolvição, uma vez que uma condenação tão evidentemente injusta e contraditória tem mais forte repercussão social que uma óbvia decisão coerente com a realidade. A narrativa mitológica bolsonariana só se fortalece com tal condenação.

Por falar em narrativa mitológica, há uma distinção fundamental entre o mito na antiguidade e a compreensão sobre o mito após a boa nova cristã, que está justamente no reconhecimento da inocência fundamental do herói trágico, transformação operada pelo exemplo histórico presente na Paixão de Cristo.

O herói trágico, nas narrativas antigas, é a vítima sacrificial eleita pela fatalidade, que mesmo inocente de culpa e dolo aceita sua condenação, pois nem o herói é capaz de perceber-se fora da lei do eterno retorno mitológico da violência sagrada tão forte na cosmovisão pré-cristã.

O herói, após a instauração da percepção cristã da realidade, foi reconhecido como uma vítima da injustiça do sacrifício em nome da necessidade de se aplacar a violência social, o herói foi rebatizado de vítima inocente, mártir, e dependendo das circunstâncias pode ser reconhecido como um santo.

O brasileiro tem a clara percepção da injustiça inerente à condenação civil de Jair Bolsonaro, isso consolidará a sua narrativa heróica, pois nossa cultura é penetrada até a raiz pela percepção cristã da inocência da vítima injustamente sacrificada em nome dos poderes deste mundo.

Werner Nabiça Coêlho - 17.08.2017

terça-feira, 25 de julho de 2017

A ALIENAÇÃO É A RAZÃO EXASPERADA NO POLITICAMENTE CORRETO


A “deusa razão”, representada por uma prostituta, sendo carregada pelas ruas de Paris



Voegelin, Girard e Ortega y Gasset demonstram a necessidade de se reconquistar o significado ontológico dos símbolos.

Eric Voegelin identificou a gênese do conceito de alienação (allotiosis) na filosofia estóica, e a definiu como "um estado de retirada do próprio eu [...] um recuo da razão na existência" (2007, P. 118), fenômeno que causa em sua vítima uma profunda perda de sentido na existência humana, todavia, mesmo quando a função racional perde seu sentido superior, de buscar o sentido da vida humana no interior da realidade, a racionalidade permanece como uma ferramenta de justificação do próprio estado de alienação, mediante a racionalização da própria alienação.

O estado de alienação é, portanto, o império da violência sobre a razão, que legitima a vingança interminável, típico de crises miméticas, e, conforme a chave explicativa da teoria mimética há no ser humano uma tendência de racionalização dos motivos irracionais desencadeadores da sucessão de retaliações típicos da vingança, em que a violência desenfreada retroalimenta-se mediante o uso da lógica da reciprocidade, uma justificação sem fim até ao ponto da virtual autodestruição do corpo social na indiferenciação da violência, cuja solução de continuidade, eventualmente, é alcançada com o sacrifício de um para salvar a todos, o bode expiatório, o que nas sociedades arcaicas significou a criação do primeiro símbolo diferenciador, ao mesmo tempo nefasto e sagrado, pois a vítima representava ao mesmo tempo o bem que encerra o conflito e o mal que o iniciou, o sagrado e a violência.

René Girard, de forma análoga a Voegelin, descreve a necessidade de uma "teoria genética" que remeta à estrutura do real, na qual a linguagem simbolizada pelo rito sacrificial é uma metáfora da violência humana, que se não for ordenada e sacralizada implicará na libertação dos demônios da vingança sem medidas, o rito torna-se o símbolo da violência domesticada pela linguagem metafórica dos símbolos, e por isso adverte que:

[...] a teoria vitimária não confunde grosseiramente a perseguição espontânea com os sacrifícios rituais, mas permite que se descubra uma relação ao mesmo tempo metafórica e real entre a perseguição espontânea e todos os sacrifícios. A relação é metafórica, pelo de que todo gesto ritual consiste numa substituição da vítima, e real, pelo fato de que a vítima substituída também é imolada, mais do que nunca bode expiatório. (2009, p. 121)

A alienação que racionaliza a violência faz surgir o procedimento político da ação direta, que é descrita por Ortega y Gasset como a forma típica de atuação do homem-massa.

Ação direta é o outro nome de racionalização dos meios violentos para obtenção de resultados políticos e sociais, o que torna a linguagem uma arma de guerra social, e, assim, surge a necessidade de policiamento da própria fala e padronização de seu uso e "porte" como ocorre no fenômeno do "politicamente correto", em que a verdade é sacrificada no altar da opinião predominante.

Ortega y Gasset descreve a alienação do homem-massa ao descrever sua falta de percepção da realidade, uma vez que "o homem vulgar, ao se encontrar com este mundo técnica e socialmente tão perfeito, pensa que foi criado pela Natureza, e nunca se lembra dos esforços geniais de indivíduos excepcionais que a sua criação pressupõe" (1987, p. 76).

Cria-se, assim, um perfil humano mimado e irresponsável [1] que de forma violenta "não quer dar razão nem quer ter razão, mas que, simplesmente, mostra-se decidido a impor suas opiniões" (1987, 89), que "renuncia à convivência de cultura, que é uma convivência regida por normas, e se retrocede a uma convivência bárbara".

O homem-massa é tipo humano alienado da realidade e portador de um "hermetismo da alma, que [...] empurra a massa para que intervenha em toda a vida pública, também a leva, inexoravelmente, a um procedimento único: a ação direta" (idem, p. 90). Ortega y Gasset ressalta que a violência implicada na ação direta é a "razão exasperada" (idem).

A alienação é a razão exasperada, e, tal como Voegelin descreve, é o abandono da compreensão da realidade como uma "tensão entre o humano e o divino", e, sistemas, como o de Hegel, são a "sistematização de um estado de alienação", uma vez que há a rejeição da "razão divina", por meio da "revolta egofânica", e de forma emblemática esclarece que: 

"Não é possível se revoltar contra Deus sem se revoltar contra a razão e vice versa" (2007, p. 118).

É da tensão entre o humano e o divino que emerge a ordem, que de forma eficaz conserva a experiência humana, com o grau de sentido necessário à sua perpetuação.

As idéias são um desenvolvimento conceitual secundário, pois segundo Voegelin "as idéias transformam os símbolos, que existem para expressar experiências, em conceitos" (2007, p. 121).

O símbolo é o ente originário da linguagem, cuja gênese analoga em forma de representação uma experiência, cujo sentido e significado é o produto da tensão do humano que se depara com as qualidades, cósmica (material) e divina (espiritual), da realidade. 

O símbolo é a substância da linguagem dos mitos, e das revelações religiosas, enquanto que a criação de hipóteses e teses explicativas é oriunda da interpretação do significado secundário dos símbolos, processo hermenêutico que promove o desenvolvimento de conceitos, que com o tempo acabam sendo encarados, os conceitos, como integrantes de uma realidade abstrata e apartada da própria realidade da experiência, como se a unidade do real pudesse ser partida ao meio com uso da linguagem, e, como se houvesse "uma outra realidade que não a realidade da experiência" (2007, p. 121).

A negação da realidade como experiência viva e concreta, e a mera percepção conceitual e abstrata, que julga a existência de conceitos e idéias, como algo com uma existência à parte, é o fruto da ação deformadora das idéias sobre a "verdade da experiência" e "sua simbolização" (2007, p. 121).

Voegelin definiu que devemos distinguir a "experiência compacta do cosmos" ou "experiência primária do cosmos" das "diferenciações" que levam "à verdade da existência no sentido dos clássicos gregos, dos profetas de Israel e do cristianismo primitivo" (2007, p. 122), e, para caracterizar a transição entre verdade compacta e a verdade diferenciada na história da consciência cunhou o termo "salto no ser".

A definição de experiência compacta no cosmos, como criação de símbolos primários, casa muito bem com a definição de crise mimética, no âmbito da teoria de René Girard, uma vez que é do processo da indiferenciação violenta no âmbito do mecanismo mimético, que se cria o bode expiatório, que, assim, cria o símbolo que interrompe a mimesis violenta, com a instituição do rito sacrificial, que é a repetição do assassinato fundador.

A teoria mimética descreve a gênese do bode expiatório como a gênese do símbolo diferenciador, que favorece a constituição da estabilidade social necessária para a instituição da própria linguagem, cujo símbolo fundador é o próprio bode expiatório.

Voegelin presume em sua teoria uma experiência primária, que cria símbolos cosmológicos e compactos, que estabelecem o lugar do homem na criação, sendo o bode expiatório, na perspectiva mimética, este símbolo, que, ao possibilitar a criação do rito ,permitiu a experiência que engendrou a gênese dos símbolos, que, posteriormente, criou o ambiente social em que a racionalização conceitual possibilitou o "salto no ser", por meio da constituição de símbolos diferenciadores na história da consciência. Voegelin adverte que a:

"transformação das experiências e simbolizações originais em doutrinas podia conduzir a uma deformação da existência, caso o contato com a realidade tal como experienciada fosse perdido e o uso dos símbolos de linguagem engendrados pelas experiências e simbolizações originais degenerasse em um jogo[...]" (2007, p. 123)

O princípio orientador para Voegelin é que "a realidade da experiência é autoevidente. Os homens valem-se de símbolos para expressar suas experiências, e os símbolos são a chave para compreender essas experiências" (2007, p. 124), uma vez que o que "é experienciado e simbolizado como realidade, e um processo de progressiva diferenciação, é a substância da história" (idem).

A alienação, portanto, é uma exasperação da razão, que promove o processo de descolamento das idéias do tecido da realidade, perdendo-se a manifestação da unidade com o real presente na linguagem dos símbolos, pois a linguagem ideológica destrói a diferenciação conquistada a duras penas pelas gerações anteriores, é o primitivismo criticado por Ortega y Gasset.

O império de idéias abstratas não mais busca fundamento na realidade da experiência, e em sua complexidade, é o imperialismo da abstração que julga a realidade de forma simplificadora, é a hipótese idealista, que, com a força do negativo, impõe-se contra a substância do real. A alienação é a negação da realidade autoevidente, é a negação do senso comum constituído por símbolos representativos da realidade, em sua profundidade histórica e diferenciada.

Para exemplificar o processo de alienação Voegelin refere a excelente formação filosófica de Marx, e que o mesmo "sabia que o problema da etiologia na existência humana era central para uma filosofia do homem e que, se quisesse destruir a humanidade do homem fazendo dele um "homem socialista", precisava repelir a todo o custo o problema etiológico. (2007, p. 84).

O problema etiológico é o problema da origem de tudo, é colocação da questão da causalidade, é a percepção de que tudo possui uma causa anterior, até que se chega à causa primeira, e, neste ponto Voegelin afirma que:

"o charlatanismo marxista reside na terminante recusa de dialogar com o argumento etiológico de Aristóteles, isto é, com o problema de que a existência do homem não provém dele mesmo, mas do plano divino da realidade" (2007, p. 84).

O diagnóstico da alienação feito por Voegelin em relação a Marx é certeiro ao afirmar que sua trapaça intelectual "pretendia sustentar uma ideologia que lhe permitisse apoiar a violência contra seres humanos afetando indignação moral" (2007, p. 83).

A alienação é um processo de justificação da violência por meio de idéias racionalizadoras, é a legitimação da criação de bodes expiatórios a serem sacrificados no altar da ideologia.

A alienação perante a realidade concreta, por meio da eleição de uma irrealidade de idéias, torna-se característico das ideologias e dos ideólogos que produzem a "destruição da linguagem, ora no nível do jargão intelectual de alto grau de complexidade, ora no nível vulgar" (2007, p. 82).

Voegelin define que é necessária a honestidade intelectual (Intellektuelle Rechtschaffenheit), compreendida como a "intenção honesta de examinar a estrutura da realidade" (2007, p. 79), para que seja possível restaurar a linguagem, e para combater a alienação ideológica que fundamenta a ação direta, que hoje é facilmente identificável no fenômeno do politicamente correto.

O problema etiológico é o problema fundamental a ser resgatado, como o centro de qualquer debate, pois a negação da causalidade implica na constituição, e, na defesa, de idéias céticas e abstracionistas, que tomam o conceito e o juízo abstrativos da concretude do real, como realidades independentes da experiência.

A alienação, por meio da exasperação da razão, que cria quimeras de irrealidade conceitual, é a negação violenta dos limites impostos pelo real, cujo problema etiológico é o ponto de partida fundamental.

Alienação é o fruto, psicológico e intelectual, do ideário que promete o impossível como algo factível, tal qual se dá no caso da ideologia do socialismo, que pretende recriar o cosmos sem dor, sofrimento e desigualdade, e, que, por fim, só é capaz de conceder a igualdade no sofrimento e na morte.

[1] Ortega y Gasset define que "Mimar é não limitar os desejos, dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido, que não é obrigado a nada" (1987, p. 77)

Referências:

Ortega y Gasset, José. A rebelião das massas; tradução de Marylene Pinto Michael; revisão da tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro - São Paulo: Martins Fontes, 1987.

Voegelin, Eric. Reflexões autobiográficas; introdução e edição de textos de Ellis Sandoz; tradução de Maria Inês de Carvalho; notas de Martins Vasques da Cunha - São Paulo: É Realizações, 2007.

Girard, René. A rota antiga dos homens perversos; tradução Tiago José Leme - São Paulo: Paulus, 2009.

domingo, 18 de junho de 2017

ÁGORA VIRTUAL: DIÁLOGO SOBRE NÚMEROS MATEMÁTICOS

Ágora de Atenas
Introdução: tendo em vista que a internet é a nova Ágora, e que ao passearmos por esta praça virtual, em que se comercializam produtos e idéias, tecemos com amigos espacialmente longínquos interessantes redes de pensamentos, e, por sermos seres caridosos e benevolentes, divulgamos o diálogo abaixo transcrito, ocorrido entre os dias 17 e 18 de Junho de 2017, no qual são tratados alguns aspectos sobre a natureza dos números, numa apreciação filosófica do tema, com base em um referencial que "olavetes" amam:


Fórmulas

Werner Nabiça Coêlho: O número é uma pequena forma, uma fórmula, que reduz uma realidade extremamente mais complexa. 

 
Monteiro Haroldo: Mas, para se tornar um símbolo, precisa ter se apreendido meio mundo, invisível aos matemáticos atuais.

 
Werner Nabiça Coêlho: Num certo sentido os símbolos em estado bruto abundam, só não são percebidos como tais, cada vez que surge uma dízima periódica há um símbolo do infinito matemático, que na verdade é um desafio que a realidade impõe ao estudioso, pois uma coisa é mensurabilidade matemática, outra a mensurabilidade hilemórfica, pois as formas não são meramente quantitativas.


***

Idiomas
 
Werner Nabiça Coêlho: A matemática é um tipo de idioma que aborda a realidade com uma linguagem redutora dos objetos a seus aspectos quantitativos, com base numa abstração operada por símbolos, que significam quantidade mensuradas de forma discreta.

 
Monteiro Haroldo: Por isso que no fim, a linguagem matemática pode ser retraduzida em modo simbólico.

Da velha cadeia platônica do mito se extrai os conceitos, e, no limite dos conceitos, a única saída é a formulação de novos mitos.
 
O que o Voegelin denominara de realidade é realidade coisa. A área conceptual da realidade é mais reduzida do que muitos pensam.
 
No fundo a linguagem poética tem muito mais abrangência, e é sempre imprescindível para ampliação do horizonte conceitual.
 
Os filósofos sempre compreendem o que os poetas intuíram primeiramente.
 
Acho que o Zubiri, não sei se estou fugindo do tema, matou a charada quando percebeu que o sentir e o inteligir são um só e único processo indivisível no plano do discurso humano, esse processo se torna mais evidente com a teoria dos quatro discursos, ou da compactação e descompactação de Consciência Noética do Voegelin, explicam bem isso.
 
Acho até que a Filosofia da Crise do Mário, a Presença do Ser do Lavelle, a Teoria dos Quatro Discursos do professor Olavo, a Teoria da Consciência Noética do Voegelin e a Trilogia Senciente do Zubiri chegaram ao ápice de uma possibilidade conceitual que, ao meu ver, são a antessala para uma nova filosofia da história.
 
Deus queira que eu não esteja enganado!

Pois só com uma nova visão da teoria da história será possível sairmos desse interregno da era das ideologias e dar à Igreja Católica a possibilidade do domínio da cultura!
 

Werner Nabiça Coêlho: Eu acrescento a este cabedal teórico o aspecto antropológico do mimetismo de René Girard, que refere-se à constituição ritual dos símbolos da própria fala, e apresenta uma hipótese evolutiva dessa transição entre o sentir e o inteligir, e do nascimento da própria poética como uma manifestação primária do sagrado.


***

Abstrações

Werner Nabiça Coêlho: Há um permanente processo de raciocínio lógico na matemática, pois a sua própria aceitação necessita de alguns passos que podem ser enumerados assim:

a) abstração de uma realidade concreta e contínua por meio de criação de um símbolo que representa uma determinada quantidade discreta e abstrata, o conceito de número;

b) criação de um idioma específico (figuras geométricas, números romanos, números árabes) que traduzam os conceitos em padrões transmissíveis de linguagem;

c) descrição de fenômenos e hipóteses com base no princípio quantitativo e abstrato, por meio de sofisticados processos de raciocínios lógicos.

 
Monteiro Haroldo: Eu não sei se é bem a criação de um símbolo, pois o símbolo tem sempre uma parte virtual e outra real bem ancorada a uma realidade referida.

Os números matemáticos me parecem, posso estar enganado, estritamente ideais, pois dizer que A=A é, em realidade, uma impossibilidade pura e simples, afinal não há nada que seja idêntico no devir, só a Deus se aplicaria então tal abstração de identidade que está na base do edifício matemático.
 
A matemática, fora da área de aplicação prática, é pura abstração. Não estou discutindo o que você disse, só apenas comunicando-lhe aqui uma questão que tenho, e que não está ainda bem resolvida.

 
Werner Nabiça Coêlho: Fizeste uma descrição do número que na metafísica representa a identidade, que é a unidade, que simboliza a não-contradição consigo mesmo, e, só para efeito de esclarecimento, quando refiro a símbolo matemático falo de conjuntos de unidades quantitativas, ao modo dos números euclidianos, e quando refiro ao idioma da matemática, estes são os símbolos gráficos, no resto é pura aplicação de lógica formal mesmo que opera a parte dos cálculos.

 
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Método

Werner Nabiça Coêlho: O método da ciência matemática é uma redução de um aspecto da realidade, basta lembrar que a matemática tem suas limitações, ela não é a ferramenta adequada para avaliações morais, ou estéticas, a matemática é uma forma especializada de avaliação de dados quantitativos.

 
Monteiro Haroldo: é realmente muito limitado e é um verdadeiro pedantismo moderno achar que o mundo físico pode ser ele totalmente matematizável.

Apesar de eu ver nesse símbolo da matematização da realidade, rebatido para o plano simbólico, até bem revelador sob certos aspectos geométricos bem evidentes.
 
O senso geral de harmonia, por exemplo, seja além do musical, que é plenamente matematizável, o pictórico, até certas núcleos de significado histórico, como o dos ciclos culturais, o fenômeno do cinesismo espacial e etc, parece-me ter no fundo de tudo algum "q" de matemático.

 
Werner Nabiça Coêlho:  Divertido é que a matemática tem algumas semelhanças com os diálogos platônicos, pois da mesma forma que estes nos levam aos mistérios das aporias, os cálculos de precisão nos encaminham para os campos do incomensurável, que nos força a recorrer a símbolos como o Pi, da mesma forma que Sócrates se referia aos mitos.

O cartesianismo reinante é uma aposta na materialidade mensurável, que se defronta permanentemente com dados incomensuráveis da realidade objetiva, a realidade refuta repetidamente o dogmatismo materialista da modernidade

 
Monteiro Haroldo: O Mário Ferreira dos Santos diz que uma tese que seja logicamente bem armada em premissas verdadeiras implicará em que a realidade não tardará em comprová-la, a realidade parece que tem um gosto de assim o fazer.

 
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Limites

Werner Nabiça Coêlho: Os limites da ciência matemática devem ser reconhecidos, para se evitar a utilização indevida em áreas na qual seu uso é inadequado, temos que lembrar os diversos aspectos da realidade não tangenciados pelo estudo meramente quantitativo.

 
Monteiro Haroldo: Sim, como o da moral. Apesar de que no fundo de toda realidade há uma certa geometria, portanto, uma ordem matemática superior, uma meta-matemática.

 
Werner Nabiça Coêlho: Pitágoras e Platão postularam a matemática das formas existentes na eternidade.

Aristóteles descreveu a transição de tais formas para a existência com base no conceito de hilemorfismo e enteléquia, oriundas de Deus, e o Wolfgang Smith descreve o mesmo fenômeno como causalidade vertical, este sentido da matemática é essencialmente o sentido da metafísica deísta tradicional, na qual o conjunto de todas as qualidades e quantidades e suas relações mútuas interagem para formar o número existencial de cada ser.

Isso não é número matemático no sentido moderno

 
Monteiro Haroldo: Sim, claro. Eu acho que nesse sentido o Mário Ferreira dos Santos chegou ao ápice.

 
***

Ciência Pura

Werner Nabiça Coêlho: O caráter abstracionista é um axioma do processo de redução, operado na metodologia matemática, e demais metodologias científicas, afinal, é o estudioso que pretende traduzir em linguagem, seja em prosa, em verso, ou em matemática, um dado do real e não o contrário.

 
Monteiro Haroldo: Sim, mas dado as categorias aristotélicas, os axiomas já vem de certa forma fechando para uma univocação conceitual, pois, na medida em que o foco de linguagem vai se aperfeiçoando, subindo de nível, com a penetração do objeto, esse também vai delimitando os conteúdos de linguagem digna ou válida para a formulação dos seus princípios.

 
Werner Nabiça Coêlho: A ciência pura cria constantemente campos estritos e especializados, a técnica filosófica reúne os dados e confere um sentido global e interativo aos dados na busca do sentido superior e unificante, como ensina o Olavo de Carvalho.

terça-feira, 28 de março de 2017

A SUBMISSÃO DO ATEU INTELECTUAL OCIDENTAL

A Disputa (ou Discussão) sobre o Santíssimo Sacramento de Rafael


Outro dia um amigo solicitou-me o empréstimo do livro "Eu via satanás cair do céu como uma raio" de René Girard, publicado em 1999, e, enquanto hesitava no ato de dar cumprimento ao compromisso, folheei as páginas como quem se despede de um livro muito querido, por não saber se o empréstimo teria bom termo, mas, promessa pronunciada deve ser cumprida, ocasião em que dei de cara com o anúncio da religião como espécie em extinção, naquela véspera do milênio cristão, na qual Girard assim se expressou:


"Lenta mas irresistivelmente no planeta inteiro, esmaece o domínio do religioso. Entre as espécies vivas, cuja sobrevivência o nosso mundo ameaça, é preciso contar as religiões. As mais pequenas estão mortas desde há muito tempo, as maiores passam por um momento menos bom do que aquilo que se diz, mesmo o indomável islão, mesmo o inumerável induísmo." (René Girard, Eu via satanás cair do céu como uma raio, Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 11)


Como a memória é uma coisa traiçoeira lembrei de um livro velho e empoeirado, na qual a Revista Veja comemorava seus primeiros 25 anos, em que foi publicado o célebre artigo "Choque do Futuro" de Samuel Huntington.


Huntington já lançara os olhos para a realidade objetiva do "choque de civilizações", e recomendava "compreensão muito mais profunda dos pressupostos religiosos e filosóficos que formam o alicerce das outras civilizações":


"A fonte fundamental de conflito nesse novo mundo não será essencialmente ideológica nem econômica. As grandes divisões na humanidade e a fonte predominante de conflito serão de ordem cultural. As nações-Estados continuarão a ser os agentes mais poderosos nos acontecimentos globais, mas os principais conflitos ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As linhas de cisão entre as civilizações serão as linhas de batalha do futuro." (Samuel Huntington, Choque do Futuro,in Veja 25 anos: reflexões para o futuro, São Paulo: Editora Abril, 1993, p. 135)


"[...]Será preciso, então, que o Ocidente desenvolva um compreensão muito mais profunda dos pressupostos religiosos e filosóficos que formam o alicerce das outras civilizações, bem como das maneiras como as pessoas daquelas civilizações vêem seus próprios interesses. Será necessário, ainda, um esforço para  identificar elementos comuns entre a civilização ocidental e as demais. No futuro próximo, não haverá uma civilização universal, mas um mundo de diferentes civilizações, e cada qual precisará aprender a coexistir com outras  (Idem, p. 146-7)


Como acabara de ler "Submissão" de Michel Houellebecq, que retrata a rendição da Europa ao islã, cito um dos mais significativos momentos em que é descrita a conversão de um intelectual:


"'Essa Europa que estava no auge da civilização humana realmente se suicidou, no espaço de alguns decênio", continuou Rediger com tristeza; ele não tinha acendido a luz, a sala só estava iluminada pelo abajur que havia em sua mesa. "Houve em toda a Europa os movimentos anarquistas e niilistas, o apelo à violência, a negação de qualquer lei moral. E depois, alguns anos mais tarde, tudo terminou por essa loucura injustificável da Primeira Guerra Mundial. Freud não se enganou, Thomas Mann também não: se a França e a Alemanha, as duas nações mais avançadas, mais civilizadas do mundo, eram capazes de se entregar a essa carnificina insensata, então era porque a Europa estava morta. Portanto, passei aquela última noirte no Métrople, até seu fechamento. Voltei para casa a pé, atravessando a metade de Bruxelas, margeando o bairro das instituições europeias - essa fortaleza lúgubre, cercada de casebres. No dia seguinte fui ver um imã em Zaventem. E no outro dia - segunda-feira de Páscoa - , em presença de umas dez testemunhas, pronunciei a fórmula ritual da conversão ao islã"' (Michel Houellebecq, Submissão, Objetiva, 2015, p. 217)


A conversão do personagem Rediger ao islamismo é rica em símbolos sobre o triunfo do ateísmo militante, do anarquismo e do niilismo, refere-se a Freud e Mann e suas conclusões sobre a morte da Europa, e, na parte final descreve-se a saída de um restaurante chamado "Métropole" após seu fechamento, o que induz ao sentido da percepção da morte da civilização ocidental, seguido pela caminhada de um homem perdido interiormente pelas ruas da capital europeia, entre prédios governamentais grandiosos e "casebres", e, ao fim, relata-se uma conversão religiosa formal, que de forma muito significativa se dá em plena segunda-feira da Páscoa.


Num único parágrafo Houellebecq descreve a negação da história, da literatura, da filosofia e do cristianismo ocidentais como pressupostos nos caminho da conversão islâmica.


Houellebecq cria imaginativamente um enredo possível daquilo que Huntington descreveu, e tal estado de coisas afasta para o limbo das teorias obsoletas a descrição de Girard sobre o fim do domínio religioso, esta dominância jamais acabará, pois a civilização é a consequência e não causa da realidade da religião, para finalizar cito alguns trechos do artigo "Adeus mundo ateu", de Olavo de Carvalho, que em 2007 já antecipara o conteúdo intelectual da obra literária "Submissão":


Todas as civilizações nasceram de surtos religiosos originários. Jamais existiu uma “civilização laica”. Longo tempo decorrido da fundação das civilizações, nada impede que alguns valores e símbolos sejam separados abstrativamente das suas origens e se tornem, na prática, forças educativas relativamente independentes.


Digo “relativamente” porque, qualquer que seja o caso, seu prestígio e em última análise seu sentido continuarão devedores da tradição religiosa e não sobrevivem por muito tempo quando ela desaparece da sociedade em torno. Toda “moral laica” não é senão um recorte operado em códigos morais religiosos anteriores.


[...]


O presente estado de coisas nos países que se desprenderam mais integralmente de suas raízes judaico-cristãs está demonstrando com evidência máxima que a pretensa “civilização leiga” nunca existiu nem pode existir.


Ela durou apenas umas décadas, jamais conseguiu extirpar totalmente a religião da vida pública, malgrado todos os expedientes repressivos que usou contra ela e, no fim das contas, sua breve existência foi apenas uma interface entre duas civilizações religiosas: a Europa cristã moribunda e a nascente Europa islâmica. (Olavo de Carvalho, Adeus mundo ateu, 03 de março de 2007)

Referências:

Michel Houellebecq, Submissão, Objetiva, 2015

René Girard, Eu via satanás cair do céu como uma raio, Lisboa: Instituto Piaget, 1999

Samuel Huntington, Choque do Futuro,in Veja 25 anos: reflexões para o futuro, São Paulo: Editora Abril, 1993

Olavo de Carvalho, Adeus Mundo ateu, disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/adeus-mundo-ateu/

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

REFLEXÕES SOBRE A TEORIA MIMÉTICA DE RENÉ GIRARD



O ponto que me proponho a discutir é justamente o conceito de racionalidade precipitado pelo cartesianismo, pois o fato de existir uma razão matematizante não exclui que o fenômeno da racionalidade inclua outras manifestações racionais.


Vou exemplificar com minha curiosidade relativa ao problema da origem da linguagem, pois não existe qualquer forma de o método cartesiano explicar o fenômeno da linguagem em sua gênese, há necessidade de se definir a linguagem pré-verbal e sua evolução para a linguagem verbal.


Neste sentido há que se considerar que há a uma linguagem não-verbal atuando antes, durante e depois, e que tal linguagem não é mensurável de forma quantitativa, mas é um qualidade da comunicação ser mais ou menos intensa, e esta intensidade no nível linguístico não verbal é o fenômeno emocional, que não é mensurável numericamente, e antes de existir a linguagem falada houve a linguagem emocional.


O complexo processo de manifestação da interação social por meio das emoções que possibilitou através do mecanismo mimético o desencadeamento do fenômeno sócio-religioso do bode expiatório, e com o sacrifício primordial que ocorreu diversas vezes em diversas culturas que se obteve a condição de possibilidade para a criação da própria razão que se utiliza da linguagem como ferramenta de comunicação.


A repetição de ritos sacrificiais consolida paulatinamente a própria linguagem verbal, criam-se os mitos originadores das primeiras expressões verbais.


E assim justifico minha percepção de que a razão que mensura dentro do corte metodológico da razão matemática não é suficiente para explicar o próprio fenômeno da razão mesma.


Werner Nabiça Coêlho - 10/06/2016
 

 

 

O fato de não existirem livros religiosos em algum tempo pretérito não implica na inexistência de religião, pois esta existe desde sempre, ao ser considerado o conceito de tempo de existência do ser humano.


A comunicação não escrita, ou melhor dizendo, a comunicação oral, é uma das fontes primordiais do conhecimento religioso, mas não é o seu pressuposto, a própria fala foi criada e conformada pela religião.


O marco teórico presente na teoria mimética, desenvolvida por René Girard é um adequado referencial explicativo para o fenômeno religioso, e, por tabela, serve para descrever a própria constituição da linguagem humana que necessitou transitar da fase pré-verbal para a expressão verbal.


Os dados que se originam da pesquisa mimética demonstram que foi a Religião que criou o homem, pois foi com o ritual religioso que se constituiu a própria fala.

 
Somente existiu a possibilidade do nascimento da cultura porque houve uma "evolução" da própria linguagem, em razão do fenômeno religioso primordial, resultado da "crise mimética", descrita pela antropologia girardiana.


Ocorre que as religiões arcaicas são essencialmente vitimárias e sacrificiais, e, neste ponto está a origem do conceito de pecado original, pois a sociedade foi erigida sobre uma montanha de vítimas sacrificadas.


A revelação cristã demonstrou que não podemos prosseguir nesse processo de sacrificar o próximo, pois revelou-se que a vítima é inocente, e Cristo é por isso a vítima perfeita, que causa a destruição das religiões arcaicas e seus mitos, pois os mitos mentem ao atribuir a culpa à vítima, e o Deus vivo revela que é mais sagrado poupar a vítima inocente, do que realizar o culto da violência.

 
Werner Nabiça Coêlho - 24/06/2016

 




O modelo mimético pode ser aplicado à chamada "síndrome de Estocolmo", considerando-se que esta é uma clara hipótese prática em que se manifesta uma das possíveis manifestações da relação entre a violência e o sagrado, em que se sacraliza a violência e a mesma transforma-se na linguagem dos mitos e em práticas rituais que podemos chamar de síndromes, ou outros apelidos modernos. 


Assim se estabelece um tipo de culto ao deus violento, que deve ser ritualisticamente homenageado, amado e temido, com fundamento na crise mimética desencadeada pela ação violenta do algoz.


Em suma, o instinto de sobrevivência procura razões para justificar a violência e racionalizar a submissão, como algo positivo, mesmo que injusto de fato e de direito.

 
Werner Nabiça Coêlho - 24/06/2016


 



René Girard converteu-se ao catolicismo quando constatou que a condição cultural que possibilitou a superação da violência mimética, que é o fundamento das religiões anteriores à boa nova cristã.


Foi justamente a paixão de Cristo que descortinou a falsidade dos mitos das religiões de até então, e revelou todo o mecanismo mimético, e essa revelação é considerada pelo Girard um verdadeiro milagre que não pode ser justificado pelos dados culturais somente, houve, sim, uma revelação, ou como diria o Wolfgang Smith houve uma causalidade vertical
 

Werner Nabiça Coêlho - 21/10/2016

 



O René Girard tem uma abordagem interessante sobre a origem das interdições sociais, e numa rápida síntese posso descrever que ele define que é necessário para a saúde da mente humana, e da sociedade em geral, que haja diferenciações e hierarquias, estruturas sociais que se consolidam mediante sucessivas crises miméticas.


São crises oriundas de situações na qual o risco da violência autodestruidora foram superadas, e uma dessas hipóteses é o sexo se tornar um evento intestino às relações familiares, essa hierarquia é tão severamente representada na mitologia grega, por exemplo, que Tróia precisou ser aniquilada para ser preservada a instituição do casamento, que dizer do incesto.

 
Werner Nabiça Coêlho - 20/11/2016


 



O que torna a hipótese mimética interessante é que a origem das interdições é necessariamente um processo antropológico, em seu sentido mais originário, é como que o processo de formação geológica que conforma os montes e vales da psique humana, das formas mais diversificadas possíveis mas sempre remetendo aos mesmos paradigmas que fornecem o esteio e os princípios para a hierarquia social, e, inclusive, pode ser que o incesto, de um ponto de vista ritual seja permitido, mas, somente para a classe de pessoas que serão possíveis bodes expiatórios, como o que ocorre com os Faraós.

 
Werner Nabiça Coêlho - 20/11/2016




 

As razões para a existência da crise mimética são um pouco mais profundas que a existência de um suposto conflito de um contra todos.


É como se fosse um processo, que quando dá certo cria uma válvula de escape para a violência social acumulada pelo processo de mediação interna, quando dá errado a comunidade entra em um processo de autodestruição mediante vinganças intermináveis.


A noção de horda é uma forma que a linguagem ordinária consegue descrever a própria crise mimética, como uma crise de indiferenciação, onde ninguém pode ser de ninguém e todos estão contra todos.


A solução da crise cria modelos de comportamento, que por sua vez são a origem das relações sociais que possibilitam a vida comunitária.


A teoria mimética demonstra que a solução de crises sociais nos primórdios da humanidade decorreu de inúmeros processos de criação de bodes expiatórios, que ora davam errado, e a sociedade desaparecia em meio ao caos social, ora davam certo, mediante o sacrifício de bodes expiatórios, e, assim, instituíam-se ritos e criavam-se mitos.


As vítimas eram normalmente elementos da sociedade que padeciam de algum defeito ou debilidade, ou mesmo uma característica de exceção, como ser um estrangeiro, que serviam de elementos catárticos para expulsar a violência profana, mediante a criação de uma violência sagrada, que passaria a ser ritualmente repetida, e, através de infindáveis repetições, assim, a própria cultura humana foi sedimentando-se.


Werner Nabiça Coêlho - 20/11/2016




 

Sem adentrar no modelo econômico de estrutura social, adoto o modelo antropológico de descrição da sociedade como o resultado de interação mimética. 


A gênese da cultura é fundamentalmente uma criação de hierarquias sociais fundadas na violência sagrada, que evolui paulatinamente para conformações mais brandas na qual a solução sacrificial migra para estruturas mais sofisticados. 


Segundo tal modelo inexiste sociedade sem hierarquia, e sem padrões fundados em modelos miméticos, que suplantam a mediação interna pela criação de mediações externas. 


Neste modelo antropológico o anarco-capitalismo é uma impossibilidade ontológica, em razão de estabelecer um pressuposto que impõe a destruição das hierarquias.


O modelo cristão é o mais impressionante padrão de supressão da violência, pois supera a crise mimética com o estabelecimento da racionalidade objetiva que distingue claramente o sacrificador e o sacrificado, e, portanto, é o portador dos padrões éticos que possibilitam a existência de uma sociedade capitalista bem regulada.

 
O anarco-capitalismo é uma proposta de (des)organização social inviável pois desencadeia a crise mimética.

 
Em síntese, a economia e sua prosperidade estão condicionados pela existência prévia de soluções de pacificação social, para permitir uma ordem legal e social capaz de proteger as trocas voluntárias, bem como impedir trocas involuntárias.

 
Werner Nabiça Coêlho - 25/02/2017