quinta-feira, 5 de abril de 2018

RAZÕES, LINGUAGEM, POLÍTICA E EDUCAÇÃO



RAZÕES DISCURSIVAS E RAZÕES EMOCIONAIS

Não realizo uma radical distinção entre razão discursiva e razão emotiva.

Não existe um racional puro distinto de um irracional puro, ambos são modos de manifestação da linguagem.

Ocorre que a emoção é a primeira linguagem, aquela que mais nos aproxima de nossa matriz animal.

Por isso aprecio muito a teoria do desejo mimético de René Girard que apresenta uma razoável explicação entre o controle da emoção em sua forma de linguagem não verbal e o início da linguagem verbal por meio do fenômeno da crise mimética e do bode expiatório.

A Ética Clássica, que por sua vez é um dos fundamentos da Ética Cristã, sempre destacou que o problema da virtude é um equilíbrio entre as intenções morais e a prática efetiva das ações, não é à toa que se cunhou a expressão de "que o inferno está cheio de boas intenções"

Phronesis é a boa e velha razão prática que se preocupa com a relação de causa e efeito entre ação, intenção e resultado, conforme a régua da virtude que está no justo meio.

Ética é o nome grego para o conjunto de teorias sobre comportamento humano ideal segundo a virtude, moral é somente sua denominação latina, portanto, quando há uma "desmoralização" de uma sociedade, então temos a criação de um "conjunto de teorias sobre o comportamento ideal para negar a virtude"

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ANTROPOLOGIA E LINGUAGEM POLÍTICA

A antropologia de René Girard é interessante na medida em que descreve uma bela hipótese para o surgimento da própria linguagem verbal.

O nascimento da linguagem é a condição de possibilidade para a descrição das descobertas em todas as demais ciências.

Evidencia-se, também, que o controle da violência é operado pelo surgimento da linguagem verbal, pois é a comunicação eficaz que cria a paz necessária para os demais desenvolvimentos da humanidade.

É como no Brasil de hoje, pois enquanto nossa insegurança pública for predominante não teremos níveis satisfatórios de crescimento econômico, porque o crime impede os negócios de prosperarem em todo seu potencial.

Hoje a linguagem do povo e a linguagem do governo não vem sendo compartilhada, situação que faz prevalecer a linguagem da violência, pois violência é incompreensão e vingança, o cálice que nos resta quando a surdez e a cegueira prevalecem.

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MAQUIAVEL NA EDUCAÇÃO

Vamos fazer assim: seja professor e ensine aos alunos que Maquiavel é brilhante e está certo em sua apreciação de que o mal na política "é um mal necessário", depois de alguns anos reclame que os cidadãos votam em políticos que aplicam a política maquiavélica. Quem é o maior responsável?!


POR QUE A TEORIA DO DIREITO PARECE TÃO DIFERENTE DA PRÁTICA JURÍDICA?



Temos o empirismo clássico e o empirismo moderno, esse começa com Descartes, passa por Hume e Kant e, no mundo do pensamento jurídico, esse desenvolvimento se consolida em Kelsen que desenvolve um empirismo formalista, pois considera como dado empírico somente a lei estatal e com isso se ocupa exclusivamente em profundos estudos sobre a linguagem jurídica, que geram inúmeras teorizações hipotéticas que alimentam inúmeros anseios reformistas e programáticos.


Na prática cotidiana do direito, enquanto isso, o bom e velho empirismo clássico, que tem a premissa do caráter investigativo da realidade, atividade que funciona normalmente, apura-se fatos, coleta-se provas e realiza-se trabalho intelectual de avaliação de coerências e contradições, que podem ou não confirmar as hipóteses em conflito, cuja sentença possui caráter intuitivo oriundo da avaliação de dados concretos, uma atividade árdua na qual a eficácia da prática prevalece sobre os aspectos teóricos anteriormente presumidos.

É uma situação estranha! Como se a teoria jurídica houvesse se divorciado da técnica jurídica, mas ninguém se deu conta dessa situação porque a separação de corpos ocorreu com a manutenção do convívio conjugal dentro da cabeça do jurista, sendo que este desde os bancos escolares fica se lamentando porque percebe esse distanciamento entre teoria e prática.

sexta-feira, 16 de março de 2018

SOBRE UTILITARISMO E GENOCÍDIOS

 (FOTO: GETTY IMAGES)

Outro dia escrevi um comentário sobre um artigo que fazia previsões sobre o nascimento da classe das "pessoas inúteis", cujo teor foi que "o problema é que o utilitarismo liberal/marxista tende a se fundir com o seletivismo eugênico darwinista, combinação que frutifica em genocídio", daí alguém se abismou e pediu uma tradução.

Por isso, passo à tradução do comentário:

O problema do nascimento de uma "classe de pessoas inúteis" resultar em genocídio, como consequência do utilitarismo vigente em nossa cultura, pode ser respondido quando lembramos que a filosofia moderna adota o materialismo como critério para apuração da veracidade de uma hipótese científica.

A proposição do critério materialista de verificação implica em que não mais se pode considerar como válida uma pesquisa cujos dados sejam qualitativos, o objeto de estudo já não possui uma essência (substância) com relações verticais na realidade, pois quando se estuda a existência das estruturas essenciais da realidade se está perquirindo a respeito da existência de algum nível de razão criadora da própria coisa pesquisada.

Pois bem, o que nos resta quando somente dados quantitativos são passíveis de serem analisados? A resposta está na supressão das teorias que apelem para o bem metafísico, ou sumo bem, e só nos resta a adoção de uma noção de bem viver nesta Terra no aqui e agora.

A perspectiva materialista, no sentido quantitativo, e imediatista, como se esta vida fosse restrita ao período mediado entre nascimento e morte, é o caminho para a justificação da felicidade com fundamento no prazer, daí o hedonismo, a filosofia que justifica a finalidade última do homem na busca do prazer e do bem estar de caráter corpóreo.

A filosofia moderna, portanto, é produtora de uma ética fundada no prazer, e nesta perspectiva é que surge do ponto de vista prático e metodológico o utilitarismo oriundo das escolas liberais inglesas, iniciadas por Jeremy Betham e John Stuart Mill, que, por sua vez, são, originariamente, revolucionárias e anticlericais, uma vez que negam as instituições tradicionais e religiosas que renegam a postura hedonista.

Ocorre que o liberalismo acabou por ser o fermento intelectual de onde se desenvolveu a escola de pensamento socialista, que resultou em Marx, e, também, foi do pensamento liberal que surgiu Thomas Malthus, cuja teoria exerceu forte influencia na criação do darwinismo, uma vez que sua tese tratava da sobrevivência dos mais aptos.

Todas estas teorias (liberalismo, darwinismo, socialismo) são desenvolvimento da teoria utilitarista em algum nível, uma vez que tudo que é considerado inútil para o progresso (econômico, social ou evolutivo) é considerado descartável, justamente essa percepção é o fundamento para todas as teorias políticas que fomentaram os genocídios que aconteceram durante o século XX, em especial o darwinismo social nazista e o comunismo marxista soviético / chinês / cambojano / cubano / coreano do norte / venezuelano / etc.

Werner Nabiça Coêlho

sábado, 10 de março de 2018

PROTÁGORAS ESTÁ VENCENDO




Olavo de Carvalho define que a ciência é uma atividade prática sujeita a constantes correções, e, nesse sentido, fica fácil de se compreender que o método experimental é empírico no sentido em que deposita uma forte credibilidade na confiabilidade dos dados oriundos da percepção dos cinco sentidos, e na capacidade cognitiva da mente humana interpretar esta informações, em suas relações de causalidade e respectiva forma intrínseca e essência (substância) do objeto de estudo.

Neste sentido o empirismo experimental é o fundamento da técnica e da ciência eficazes, enquanto que o empirismo cartesiano, que parte de formulações hipotéticas, apoiadas inicialmente em abstrações que, supostamente, seriam confirmadas no experimento prático, são meros experimentos mentais e tautológicos, que tentam se legitimar com um simulacro de experimentação, uma vez que este método hipotético já pressupõe, e, portanto, pré-determina, os resultados que espera obter, em suma, o empirismo cartesiano não está preparado para descobertas imprevistas, para invenções inesperadas.

O problema é que a educação formal está toda pautada por este modo cartesiano de empirismo, que inicia na bifurcação cartesiana entre dados empíricos qualitativos obtidos pelos sentidos, que são considerados espúrios, e a percepção subjetiva mental e matematizante, que é considerada válida cientificamente.

David Hume refinou a proposta cartesiana conferindo credibilidade ao eventos concretos mas recusou-se a inquirir a causalidade dos mesmos, método que passa por uma completa sistematização com Kant, quando este utiliza a física newtoniana para fundamentar sua tese determinista, e culmina em Karl Popper que glorifica o método hipotético dedutivista com apuração experimental dos dados.

O empirismo cartesiano, contemporaneamente, chega às últimas consequências inerente ao subjetivismo e se degrada nas maluquices estruturalistas, desconstrutivistas, e demais teorias voluntaristas que vigoram em nossos dias, que chegam ao ponto de nomear a vontade humana como a suprema medida de todas as coisas, realmente, Protágoras (1) está vencendo o debate filosófico.

Hoje construções puramente mentais são consideradas como verdades científicas, mesmo que inexista qualquer prova experimental para sua existência, a ciência acadêmica virou realismo fantástico em muitas áreas dominadas pela classe intelectual que vive em seus mundinhos teóricos e ideológicos.

Acreditar nos próprios sentidos virou uma mudança de paradigma científico, do ponto de vista universitário.

O mais engraçado está no fato de que a ciência aplicada à industria ignora olimpicamente as maluquices teóricas ensinadas nas universidades, e desenvolve a pesquisa e o desenvolvimento da produção com base em estritos princípios empírico-intuitivistas, pois a técnica se desenvolveu nos últimos séculos com base nos seus resultados práticos, enquanto que a filosofia, as filodoxias e as heterodoxias acadêmicas ficam o tempo todo a reboque desses desenvolvimentos, como se fossem aborígenes que viram pela primeira vez um computador e tentam opinar sobre sua operação sem compreender seu funcionamento.

Um amigo referiu-me que o resumo deste desastre está na expressão "giro ontológico linguístico", em que a mentira substitui a realidade dos seres, de minha parte diria que este estado de coisas é o resultado de um "giro oncológico linguístico", e a cura está na singela defesa da verdade objetiva e concreta da realidade.

(1) "O homem é a medida de todas as coisas, das que existem e das que estão na sua natureza, das que não existem e da explicação da sua inexistência" (GOMES, 1994, p. 216).

GOMES, Pinharanda. Filosofia grega pré-socrática , 4a ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1994.

domingo, 4 de março de 2018

DEMOCRACIA E CRISTIANISMO



A democracia, que defino como forma de governo com ampla participação da população mediante processos eleitorais periódicos, desenvolveu-se em Atenas, e, justamente esta democracia ateniense foi imperialista, tirânica e genocida ao ponto que desencadeou a Guerra do Peloponeso, na qual Esparta assumiu o papel de libertador das cidades gregas, e, por fim, o povo ateniense foi derrotado por causa do próprio orgulho oriundo do exercício do poder sem limites éticos universais.



A Cidade Eterna, durante seu interregno republicano, possuía cargos eletivos escolhidos pelo sufrágio da plebe, e este mesmo colégio eleitoral votava diretamente as leis, os políticos eleitos para cargos executivos, como no caso dos dois cônsules com mandato anual, habilitavam-se para cadeiras no Senado, tal arranjo, que foi fruto de árduas lutas sociais após o fim da monarquia, acabou degenerando em guerras civis e ditaduras, e, por fim, ensejou a criação do Império, um excelente exemplo histórico de que formas de governo democráticos originam tiranias, uma vez que a disputa pelo Poder seja orientada somente por princípios políticos.

O Ocidente, após o advento de Cristo, desenvolveu um novo conceito de democracia: o evangelho de que somos todos iguais na condição de filhos de Deus.

O cristianismo é portador do valor ético e sagrado fundamental de que todos somos portadores da filiação divina e da irmandade com o Logos que se fez carne, em suma, somos filhos queridos e iguais perante Deus por toda a eternidade, mas somos responsáveis por nossas escolhas, não só perante o mundo, mas perante os Céus.

O cristão é o cidadão deste mundo, mas também é um habitante da eternidade, um democrata no mundo criado pelo cristianismo possui uma ética que o responsabiliza não só no nível político, mas também possui consequências de caráter sobrenatural, pois responde não só por sua consciência, suas escolhas são o Céu ou o Inferno, com a possibilidade do purgatório.

Neste mundo que está deixando de ser cristão, assistimos à democracia reinventar seus vícios de origem greco-romana, o que nos encaminhará para o reino em que sacrifícios humanos, e a mais abjeta escravidão, retornarão com nomes convenientes para iludir os tolos.

DISTINÇÃO ENTRE EMPIRISMO CLÁSSICO E MODERNO


Faço uma distinção entre o empirismo da filosofia clássica e o empirismo na filosofia moderna (cartesiana), pois quando Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Leibniz, Ortega y Gasset, Xavier Zubiri, René Girard, Olavo de Carvalho, etc., falam em realidade empírica estão pressupondo a realidade concreta do mundo, que de forma objetiva se interpõe aos sentidos e os estimula para que remetam ao processo imaginativo de tradução intuitiva que possibilita conectar o intelecto humano à realidade, isto é, o conhecimento empírico em sua forma clássica é o mesmo que dizer que "o sujeito confia em seus sentidos e em seu discernimento intelectual" diante de percepção da realidade.


O empirismo moderno resulta da bifurcação cartesiana entre mente e corpo, pois Descartes julga que os sentidos são enganosos e ilusórios, então passa a confiar cegamente no pensamento, sua fonte de certeza, ao mesmo tempo que elegeu de forma arbitrária a noção de "res extensa", ou seja, a adoção de dados restritos à realidade material mensurável matematicamente, desconsiderando-se todos os dados qualitativos não "numeráveis", isto é, criou uma forma de "materialismo" oriundo de um corte metodológico que abstrai as qualidades do objeto e se detém somente sobre suas "quantidades" passíveis de descrição matemática.

O pensamento cartesiano se apoia na sistemática abstração da realidade concreta em favor de uma realidade "material" até certo ponto, uma vez que desqualifica os dados qualitativos quando considera somente a base de dados matematizáveis, para daí algo ser julgado real do ponto de vista científico, tal postura acabou implicando num ceticismo radical muito prejudicial para o pensamento, criou-se, assim, a necessidade de uma corrente que adotasse um ceticismo mais brando.

David Hume se propõe resolver o problema, mas, para isso inicia sua perspectiva com a negação das relações de causalidade, pois a pesquisa das relações de causa e efeito acabam chegando em Deus, e propôs que a realidade existe para efeitos práticos, mas que é um mistério insondável, e tentou a partir deste ponto de partida harmonizar as "descobertas" cartesianas com as necessidades práticas da realidade civil.

Depois veio o Kant e sistematizou essa bagunça criando as hipóteses distintas de razão pura e razão prática pressupondo que tempo e espaço seriam fixos e constantes, ou seja, o empirismo cartesiano é uma proposta que se sustenta sobre a física newtoniana, enquanto que o empirismo clássico é compatível com a física quântica, por ser essencialmente experimental.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O MITO DA MEDICINA E A HARMONIA ENTRE ALMA E CORPO - MATERIAL DE ESTUDO



"O problema consiste precisamente em saber se alma e corpo, funcionamento psíquico e funcionamento somático, na realidade complementares, podem ser radicalmente separados do ponto de vista da terapia." (Paul Diel)


"O valoroso esforço de Apolo para salvar sua amada Coronis, e como tal esforço leva à dedicação de Asclépio à cura, trata de como a busca pela cura está fundamentada em amor e lamento. A falha de Apolo em salvar Coronis, morta por um deus, assim como a história da punição de Asclépio por ressuscitar os mortos ensinam que a medicina deve aceitar a mortalidade humana como limite apropriado para seu trabalho. A docilidade que infunde os nomes de Asclépio (incessantemente gentil) e Epiona (que acalma) trata da arte da cura não como uma guerra contra a doença ou contra o corpo, mas da procura, junto ao corpo, em levá-lo à saúde. Tal docilidade é tema recorrente em muitas obras médicas antigas." (Cf. Steven H. Miles, apud Hélio Angotti Neto, p. 49-50)

Detalhe de Apolo e as Musas (Simon Vouet). 
Apolo, como Senhor da beleza 
e da perfeição, é patrono das artes.


"Apolo representa a cura, a razão e a profecia, isto é, o prognóstico, o entendimento do está por vir na vida do paciente. A racionalidade de Apolo orienta a tendência mais naturalista presente nos médicos a partir de então, fator em comum nos diversos escritos hipocráticos. Higia representa a busca pela prevenção e pelos bons hábitos, pela higiene. Panaceia representa a cura por meio da terapia farmacológica, das medicações. E Asclépio (ou Esculápio), filho de Apolo, pai de Higia e Panaceia e aprendiz do centauro Quíron, também demonstra diversos valores e inclui uma curiosa censura ao desejo indevido de lucro acima do que é sábio, pois morreu alvejado por Zeus ao ceder - movido pela ambição - à tentação de ressuscitar um mortal preso no reino de Hades." (Angotti Neto, p. 50)

"Os valores e as atitudes demonstradas pela evocação dos deuses antigos são: gentileza, busca pela cura, prevenção dos males por meio de bons hábitos, autoconhecimento, sabedoria frente aos limites da própria arte e uso da razão." (Angotti Neto, p. 51)

Quíron e Aquiles, ânfora ática (~520a.C.), Museu do Louvre, França.


"Na mitologia grega são encontradas muitas figuras simbólicas cuja significação guarda estreita relação com a medicina. As mais importantes são: Apolo, Quíron, e Asclépio. A significação dos símbolo "Asclépio" só poderá ser encontrada se estabelecermos precisamente sua posição nesta tríade, na qual Apolo, suprema divindade da saúde, simboliza o princípio da cura. Ora, Apolo preside à harmonia da alma. Aparece, assim, desde o início, com perfeita clareza, a posição do mito em relação à saúde em geral ressaltando em especial a saúde psíquica. Nesta constatação inicial poderia estar a chave da tradução do mito da medicina, do mito de Asclépio." (Paul Diel, p. 206)

Estátua de Esculápio no museu do Teatro de Epidauro, Grécia


"Quanto à relação entre harmonia psíquica e a saúde, é importante sublinhar que qualquer símbolo mítico, sejam divindades ou monstros, possui uma significação em relação à arte médica. A simbolização em seu conjunto serve para representar a constelação sadia ou doentia da psique. A tradução do mito de Asclépio permitirá o desenvolver essa questão fundamental em toda a sua extensão e determinar a visão em relação à cura, não somente da psique como também do corpo." (Paul Diel, p. 206-7)

[...]"a condição de harmonia interior, a vitória sobre a vaidade culposa"  (Paul Diel, p. 207)

"Mesmo sendo filho de Apolo, Asclépio preside menos ao equilíbrio da alma que à saúde do corpo. Seria que o interesse predominantemente pelo corpo, caractetístico do símbolo "Asclépio", a causa do castigo final que o herói da medicina sofre segundo o relato mítico? Uma comparação com o destino de Hércules permitirá um melhor julgamento.

"Hércules sacrifica seu corpo, e carnalidade, e Zeus lança seu relâmpago para iluminar a alma do herói. O espírito ajuda o herói na realização do sacrifício, símbolo de sublimação. O sacrifício do corpo (a renúncia ao apego exaltado aos desejos carnais) é aceito pelo espírito e torna-se a condição essencial da divinização simbólica. Asclépio, ao contrário, por sua qualidade de curador dos males físicos, apega-se às necessidades corporais. Contra ele, Zeus não lança o relâmpago iluminador, mas o raio punitivo. O simbolismo parece querer manifestar que a ciência médica, da qual Asclépio é o representante mítico, mesmo que implique, como toda ciência, um esforço de ordem espiritual (simbolicamente divinizado), muitas vezes pode apegar-se exclusivamente às necessidades do corpo."  (Paul Diel, p. 207)

"Uma tal concepção contém o perigo de abrir um profundo abismo entre a sabedoria mítica e a mais marcada das tendências da medicina moderna. A aparência de uma contradição no símbolo "Asclépio" (divinizado-fulminado) e a tentativa de destituí-lo, desde o princípio, de sua significação, chave da tradução, conduzem a um dilema: ou o mito, em razão de sua predileção pela vida da alma, exagerou a importância de seu princípio de cura, a harmonização dos desejos [...]; ou então a predileção da medicina moderna pelo estudo do funcionamento orgânico a teria levado a negligenciar a importância do funcionamento psíquico. (Paul Diel, p. 207-8)

"Este dilema exige uma solução, antes mesmo de entrar nos detalhes da tradução. Não se trata de forma alguma de discutir as bases da arte médica, mas unicamente de evidenciar o fundamento da visão mítica encontrado no símbolo "Asclépio" e de assim preparar a compreensão dessa figura cuja significação ultrapassa o quadro mítico no qual é tratado, visto que a formação e a deformação da alma, portanto, a cura dos distúrbios psíquicos, são tema comum a todos os mitos. O problema consiste precisamente em saber se alma e corpo, funcionamento psíquico e funcionamento somático, na realidade complementares, podem ser radicalmente separados do ponto de vista da terapia. Convém enfrentar antes de tudo esse problema fundamental, ainda que necessite de um preâmbulo teórico um pouco longo e complicado." (Paul Diel, p. 208)

"A tradução de um número bastante grande de mitos demonstrou que sua significação oculta constitui uma verdadeira psicopatologia, uma pré-ciência psicológica, expressa por imagens, mas capaz de explicitar a motivação subconsciente, produtora de ações ilógicas e sintomáticas, alcançando até os delírios e as alucinações, cujo conjuntou constitui as doenças mentais. Esta pré-ciência mítica parece merecer a censura de considerar com demasia exclusividade o encadeamento psíquico das causas e dos efeitos, dos motivos e das ações. Seria sem dúvida errôneo pretender que a doença do espírito se deva unicamente a causas de ordem psíquica. A verdade é que a cada causa psíquica corresponde um distúrbio orgânico (lesão da substância nervosa ou desregramento da função endócrina). O ideal seria conhecer tanto o encadeamento das causas fisiológicas quando dos motivos psíquicos. A desordem da psiquiatria moderna poderia muito bem advir da incapacidade de estabelecer um paralelo entre essas duas vias explicativas, bem como das tendências que buscam preencher as lacunas da explicação fisiológica através de explicações psíquicas, e as lacunas da explicação psíquica por explicações de ordem fisiológica. Nesse sentido, a sabedoria mítica teria muita razão em limitar -se à  explicação figurativa dos motivos e de seu encadeamento.  Esta limitação seria um princípio econômico que não poderia de modo algum suscitar a censura de negar a unidade corpo-psique,ou de se opor a priori a qualquer preocupação no tocante às causas orgânicas e aos cuidados somáticos. Ao contrário,  teríamos o direito de dizer que a sabedoria mítica,  apesar de explicar-se somente através de imagens simbólicas,  mostra -se mais avançada"  (Paul Diel, p. 208-9)

Fontes: 

https://editoramonergismo.com.br/products/a-tradicao-da-medicina

https://www.amazon.com.br/Simbolismo-na-Mitologia-Grega/dp/8585115181/ref=sr_1_2?s=books&ie=UTF8&qid=1519054280&sr=1-2