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quinta-feira, 5 de abril de 2018

POR QUE A TEORIA DO DIREITO PARECE TÃO DIFERENTE DA PRÁTICA JURÍDICA?



Temos o empirismo clássico e o empirismo moderno, esse começa com Descartes, passa por Hume e Kant e, no mundo do pensamento jurídico, esse desenvolvimento se consolida em Kelsen que desenvolve um empirismo formalista, pois considera como dado empírico somente a lei estatal e com isso se ocupa exclusivamente em profundos estudos sobre a linguagem jurídica, que geram inúmeras teorizações hipotéticas que alimentam inúmeros anseios reformistas e programáticos.


Na prática cotidiana do direito, enquanto isso, o bom e velho empirismo clássico, que tem a premissa do caráter investigativo da realidade, atividade que funciona normalmente, apura-se fatos, coleta-se provas e realiza-se trabalho intelectual de avaliação de coerências e contradições, que podem ou não confirmar as hipóteses em conflito, cuja sentença possui caráter intuitivo oriundo da avaliação de dados concretos, uma atividade árdua na qual a eficácia da prática prevalece sobre os aspectos teóricos anteriormente presumidos.

É uma situação estranha! Como se a teoria jurídica houvesse se divorciado da técnica jurídica, mas ninguém se deu conta dessa situação porque a separação de corpos ocorreu com a manutenção do convívio conjugal dentro da cabeça do jurista, sendo que este desde os bancos escolares fica se lamentando porque percebe esse distanciamento entre teoria e prática.

domingo, 4 de março de 2018

DISTINÇÃO ENTRE EMPIRISMO CLÁSSICO E MODERNO


Faço uma distinção entre o empirismo da filosofia clássica e o empirismo na filosofia moderna (cartesiana), pois quando Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Leibniz, Ortega y Gasset, Xavier Zubiri, René Girard, Olavo de Carvalho, etc., falam em realidade empírica estão pressupondo a realidade concreta do mundo, que de forma objetiva se interpõe aos sentidos e os estimula para que remetam ao processo imaginativo de tradução intuitiva que possibilita conectar o intelecto humano à realidade, isto é, o conhecimento empírico em sua forma clássica é o mesmo que dizer que "o sujeito confia em seus sentidos e em seu discernimento intelectual" diante de percepção da realidade.


O empirismo moderno resulta da bifurcação cartesiana entre mente e corpo, pois Descartes julga que os sentidos são enganosos e ilusórios, então passa a confiar cegamente no pensamento, sua fonte de certeza, ao mesmo tempo que elegeu de forma arbitrária a noção de "res extensa", ou seja, a adoção de dados restritos à realidade material mensurável matematicamente, desconsiderando-se todos os dados qualitativos não "numeráveis", isto é, criou uma forma de "materialismo" oriundo de um corte metodológico que abstrai as qualidades do objeto e se detém somente sobre suas "quantidades" passíveis de descrição matemática.

O pensamento cartesiano se apoia na sistemática abstração da realidade concreta em favor de uma realidade "material" até certo ponto, uma vez que desqualifica os dados qualitativos quando considera somente a base de dados matematizáveis, para daí algo ser julgado real do ponto de vista científico, tal postura acabou implicando num ceticismo radical muito prejudicial para o pensamento, criou-se, assim, a necessidade de uma corrente que adotasse um ceticismo mais brando.

David Hume se propõe resolver o problema, mas, para isso inicia sua perspectiva com a negação das relações de causalidade, pois a pesquisa das relações de causa e efeito acabam chegando em Deus, e propôs que a realidade existe para efeitos práticos, mas que é um mistério insondável, e tentou a partir deste ponto de partida harmonizar as "descobertas" cartesianas com as necessidades práticas da realidade civil.

Depois veio o Kant e sistematizou essa bagunça criando as hipóteses distintas de razão pura e razão prática pressupondo que tempo e espaço seriam fixos e constantes, ou seja, o empirismo cartesiano é uma proposta que se sustenta sobre a física newtoniana, enquanto que o empirismo clássico é compatível com a física quântica, por ser essencialmente experimental.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

KARL POPPER E A FALSEABILIDADE INEFICAZ


Karl Popper  em "A lógica da pesquisa científica" expõe o problema da indução, que é “a indagação acerca da validade ou verdade de enunciados universais que encontrem base na experiência” (p. 28). Uma vez que os enunciados singulares ou particulares são uma inferência indutiva, e os enunciados universais são hipóteses ou teorias, Popper afirma:

“Equivale isso a dizer que o enunciado universal baseia-se em inferencia indutiva. Assim, indagar se há leis naturais sabidamente verdadeiras é apenas outra forma de indagar se as inferências indutivas se justificam logicamente” (p. 28)

Seguindo a senda kantiana, Popper afirma que “o princípio de indução há de constituir-se num enunciado sintético, ou seja, enunciado cuja negação não se mostre contraditória, mas logicamente possível” (p. 29), para em seguida levantar o aspecto contraditório deste princípio empírico-indutivo, pois:


"é supérfluo e deve conduzir a incoerências lógicas [...] Pois o princípio da indução tem de ser, por sua vez, um enunciado universal [...] a tentativa de alicerçar o princípio da indução na experiência malogra, pois conduz a uma regressão infinita [...] Kant procurou vencer a dificuldade admitindo que o princípio de indução (que ele apresentou como “princípio da causação universal”) é “válido à priori”” (p. 29)

Popper afirma que a “lógica da inferência provável, ou lógica da probabilidade” conduz a uma regressão infinita ou à doutrina do apriorismo kantiano (p. 30), e, para evitar tais armadilhas lógicas, que julgou encontrar tanto no probabilismo quanto no apriorismo, propõe sua teoria do método dedutivo de prova "ou de concepção segundo a qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada” (p. 30).

Esta proposta, do método dedutivo de prova, se funda em uma distinção entre psicologia do conhecimento e lógica do conhecimento, esta se preocupando com "relações lógicas" aquela com "fatos empíricos" (p. 31), e, assim, para Popper a lógica indutiva é inadequada. por ser uma invasão de problemas psicológicos no campo dos problemas epistemológicos, razão pela qual postula a eliminação do que julga ser um tipo de psicologismo, indevido no âmbito da pesquisa científica, isto é, postula uma forma de "neutralidade científica".

Popper afirma o "axioma" de que “o trabalho do cientista consiste em elaborar teorias e pô-las à prova” (p. 31), e, assim o:

"estágio inicial, o ato de conceber ou inventar uma teoria […] A questão de saber como uma idéia nova ocorre ao homem […] não interessa à análise lógica do conhecimento científico” (p. 31).
Neste ponto há uma reminiscência de David Hume, em um sentido inverso ao proposto pelo filósofo inglês, pois enquanto Hume se preocupa com a origem das idéias com base  nas relações empíricas de fato, para Popper a lógica do conhecimento científico diz respeito não a questões de fato, mas a questões inerentes às relações lógicas que  validam as teorias, pois para "que um enunciado possa ser examinado logicamente sob esse aspecto, deve ter-nos sido apresentado previamente” (p. 31)

Então, tal como David Hume, Kant e demais filósofos cartesianos, Popper se apega à tese de existência de um pressuposto limite do conhecimento humano, com base em alguma precondição auto-limitadora.

Popper nega a possibilidade de autoconhecimento e transcendência, ao afirmar que “não existe um método lógico de conceber idéias novas ou de reconstruir logicamente esse processo […] Toda descoberta encerra um “elemento irracional” ou “uma intuição criadora”, no sentido de Bergson” (p. 32)
A intuição é irracional? O processo de constituição de ideias racionais é irracional? Para Karl Popper, sim, é irracional, inclusive, ele cria uma nova morada para a incognoscível "coisa em si" kantiana, ao afirmar o que livremente denominamos de um mistério inefável relativo ao nascimento das ideias.

Nesta toada, Popper afirma que o “método de submeter criticamente à prova as teorias, e de selecioná-las conforme os resultados obtidos, acompanha sempre as linhas expostas a seguir” (p. 33) possui os seguintes passos:

1º – Comparação lógica das conclusões – coerência


2º – Investigação da forma lógica (empírica, científica ou tautológica)


3º – Comparação com outras teorias (avanço científico?)


4º – Comprovação da teoria por meio de aplicações empíricas das conclusões que dela se possam deduzir


Pelo que pudemos observar até aqui, Popper define que o processo de apuração da prova científica é necessariamente de base dedutiva, num processo circular de caráter eminentemente teórico, cuja conclusão se dará pelo teste empírico das "conclusões" obtidas de forma dedutiva, percebo que tal processo é uma forma elaborada de reafirmar a precedência do pensamento sobre a matéria, preconizado por Descartes.

O processo se inicia com “predições” na forma de enunciados “que não sejam deduzíveis da teoria vigente” (p. 33), submetida à apreciação da comunidade científica, e, após, sua validade é estabelecida mediante a prova científica de cunho experimental, pois na "medida em que a teoria resista a provas pormenorizadas e severas […] foi “corroborada” pela experiência passada” (p. 34).

Popper busca demonstrar que não se supõe a verdade da teoria, a partir de enunciados particulares, nem que a ciência é oriunda da revelação empírica “verificável”, e, por fim, define que a superação do "problema da indução" é obtida pela aplicação da prova lógico-dedutiva testada empiricamente, com base no consenso acadêmico-científico.


Este tipo de colocação implica no "problema da demarcação" consistente no “problema de estabelecer um critério que nos habilite a distinguir entre crenças empíricas, de uma parte, e a Matemática e a Lógica, bem como os sistemas “metafísicos”, de outra” (p. 35), e neste ponto, nos encontramos, novamente, sob a sombra do pensamento de David Hume, pois revela-se que Popper participa do preconceito moderno contra o conceito de verdade transcendente (substancial e essencial) ao objeto da ciência, uma vez que esta se ocupa de bens materiais e/ou mensuráveis.

Demarcar, neste caso, é justificar a cegueira para tudo o que não é considerado inserido dentro do limite do corte metodológico, para depois afirmar que o objeto recortado é a totalidade daquilo que podemos apreender.




Popper relata neste ponto:

“Se, acompanhando Kant, chamamos ao problema da indução “problema de Hume”, poderíamos chamar ao “problema de Kant” o problema da demarcação” (p. 35)

E prossegue distinguindo os velhos positivistas que defendem conceitos derivados da experiência, dos positivistas modernos que consideram a ciência um "sistema de enunciados”, não um sistema de conceitos, e, que “os positivistas realmente desejam não é tanto uma bem sucedida demarcação, mas a derrubada total e a aniquilação da Metafísica” (p. 36).



Popper ao criticar o indutivismo típico de Wittgenstein, que define a redução da linguagem a proposições elementares, portadoras de significados dotados de sentido, com base empírica, lembra que “as leis científicas também não podem ser logicamente reduzidas a enunciados elementares da experiência” (p. 37).

Após tais considerações, que criticam a redução da ciência à linguagem originada numa base empírica, Popper define o critério de demarcação, como um objeto de consenso, e por isso imune às contradições da indução, pois é uma “proposta para que se consiga um acordo ou se estabeleça uma convenção” (p. 38), e, mais uma vez, afirma a irracionalidade da razão em seu aspecto prático e empírico, como forma concreta de tomada de decisão, e que: 

“A determinação desse objetivo é, em última análise, uma questão de tomada de decisão, ultrapassando, por conseguinte, a discussão racional” (p. 39)

Portanto, antes de haver uma qualquer pesquisa científica, há a prevalência de uma decisão "política" no sentido de uma práxis, cujo caráter empírico gera a demarcação do âmbito do objeto de estudo da própria ciência.

Após fundamentar o que julga ser o fundo social-político-irracional da demarcação do conhecimento científico, Popper descreve que o seu sistema teórico objetiva estabelecer um efetivo “sistema que se denomina “ciência empírica” que pretende representar apenas um mundo: o “mundo real”, ou o “mundo de nossa experiência”" (p. 40)

Neste sentido, de forma esquemática descrevo o sistema teórico de Popper:

  • Adoção de enunciados sintéticos (não-contraditórios; mundo possível)

  • Aplicação do critério de demarcação (não-metafísico = representar um mundo de experiência possível)
Karl Popper
E, enfim, chegamos à necessidade da "falseabilidade", como "critério da demarcação", para se contrapor ao critério de demarcação inerente à lógica indutiva implica na criação do dogma positivista do significado fundado em dados empíricos, que é fundado no constante julgamento sobre a verdade ou falsidade do conhecimento, com base em dados oriundos da indução, pelo que Popper afirma:

“Contudo, só reconhecereis um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema” [...]“Em outras palavras, não exigirei que uma sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recursos a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, uma sistema científico empírico” (p. 42)


Popper erige seu critério da falseabilidade com base na “assimetria entre verificabilidade e falseabilidade, assimetria que decorre da forma lógica dos enunciados universais. Estes universais nunca são deriváveis de enunciados singulares, mas podem ser contraditados pelos enunciados singulares" (p. 43)





Para que sejam reconhecidos como verdades científicas os enunciados lógico-hipotéticos, expressados mediante enunciados universais obterão sua validação, ou invalidação, mediante enunciados singulares oriundos da experiência científica, mediante o teste empírico de uma determinada hipótese previamente erigida, pois “aquilo que caracteriza o método empírico é sua maneira de expor à falsificação, de todos os modos concebíveis, o sistema a ser submetido à prova” (p. 44).

Para Popper “enunciados só podem ser logicamente justificados por enunciados” (p. 45), e “a objetividade dos enunciados científicos reside na circunstância de eles poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste” (p. 46), assim sendo, classifica-os em:

  • Enunciados científicos objetivos

  • Enunciados psicológicos subjetivos




Popper condena à morte todos os princípios metafísicos não-falseáveis (princípio da identidade, princípio do terceiro excluído, princípio da não contradição, etc.), pois são inverificáveis empiricamente:

“os enunciados básicos devem ser por sua vez suscetíveis de teste intersubjetivo, não podem existir enunciados definitivos em ciência – não pode haver, em ciência, enunciado insuscetível de teste e, consequentemente, enunciado que não admita, em princípio, refutação pelo falseamento de algumas das conclusões que dele possam ser deduzidos” (p. 49)
Em síntese:

a) o "problema da indução" ou "problema de Hume" faz surgir a necessidade de uma regressão infinita, que pode implicar na aceitação de inferências probabilísticas, ou a aceitação de juízos apriorísticos, o que invalidaria a aceitação do método empírico-indutivo, e, assim, afirma que o método científico deve ser de base dedutivo-empírica na "concepção segundo a qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada” (p. 30).


b) o "problema da demarcação" ou "problema de Kant" se origina na necessidade de eliminar a abordagem positivista, que incorre no erro inerente ao "problema da indução", para considerar que o objetivo da ciência não é a "a derrubada total e a aniquilação da Metafísica” (p. 36), mas, sim, a busca objetiva do conhecimento, com base em  "um acordo ou se estabeleça uma convenção” (p. 38), que defina o objeto da ciência, uma vez que o momento que o antecede é inerentemente irracional, em seu aspecto prático e empírico, como forma concreta de "tomada de decisão" (p.39).

c) uma vez que seja reconhecido que a ciência deve partir de formulação lógica e dedutivas, será necessária a operação do "critério da falseabilidade", mediante a qual somente seja reconhecido como verdade científica a hipótese racional e lógica que descreve enunciados universais, que será validada ou não, mediante enunciados singulares, oriundos do teste empírico.

d) assim, somente será considerado objeto da ciência o que o cientista for capaz de enunciar logicamente, mediante enunciados universais, testados e validados empiricamente, para, assim, obter "enunciados objetivos científicos", pois a falseabilidade somente opera perante enunciados universais verificáveis empiricamente, mediante teste intersubjetivo, que estabelecem "uma convenção, o que, implicitamente, é mais um anúncio da "morte de Deus", pois a falseabilidade é uma declaração implícita da "morte da metafísica", quando esta é considerada como um mero "enunciado psicológico subjetivo", uma vez que o critério da falseabilidade é a celebração do relativismo consensual de uma classe de iluminados.

POPPER, KARL R. Colocação de alguns problemas fundamentais. A lógica da pesquisa científica. 16. ed. Tradução Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2008, p. 27-50. 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

RELIGIÃO CIVIL E BIOÉTICA



Descartes (1596-1650) foi o primeiro filósofo a valorizar a “conservação da saúde” como princípio que serve de “primeiro bem e fundamento de todos os outros bens da vida, vejamos o trecho do Discurso do Método, cap. 06, parágrafo 02 e seguintes que inaugura tal perspectiva:

O que é de desejar, não só para a invenção de uma infinidade de artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer custo, os frutos da terra e todas as comodidades que nela se acham, mas principalmente também para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e fundamento de todos os outros bens da vida.
Pois mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais sábios e mais hábeis do que foram até aqui, creio que se deve procurá-lo na Medicina. (Apud, Kreeft, Peter. Sócrates encontra Descartes: o pai da filosofia interroga o pai da filosofia moderna e seu discurso do método; tradução de Gabriel Melatti. – 1. ed. – Campinas : CEDET, 2012, 185-6)

Rousseau (1712-1778) define a relação entre o cidadão e o Estado com base numa “profissão de fé puramente civil tratado como "dogma de religião" que permite o banimento e a imolação dos “ímpios, pois esta seria uma categoria de pessoas, que ao dividir sua fidelidade entre Estado e Religião, cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às leis:

[...] importa ao Estado que cada cidadão tenha uma um religião que o faça amar seus deveres; os dogmas dessa religião, porém, não interessam nem ao Estado nem a seus membros, a não ser enquanto se ligam à moral e ao deveres que aquele que a professa é obrigado a oferecer em relação a outrem. Quanto ao mais, cada um pode ter as opiniões que lhe aprouver, sem que o soberano possa tomar conhecimento delas, pois, como não chega sua competência ao outro mundo, nada tem a ver com o destino dos súditos na vida futura, desde que sejam bons cidadãos nesta vida.
Há, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel. Sem poder obrigar ninguém a crer neles, pode banir do Estado todos os que neles não acreditarem, pode bani-los não como ímpios, mas como insociáveis, como incapazes de amar sinceramente a lei, a justiça, e de imolar, sempre que necessário, sua vida a seu dever. Se alguém, depois de ter reconhecido esses dogmas, conduzir-se como se não cresse neles, deve ser punido com a morte, pois cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às leis. (Rousseau, Jean-Jacques, Do contrato social; trad. Lourdes Santos Machado; col. Os pensadores – 4. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 143-4)

A doutrina política do Estado Laico fundado na criação e defesa da Religião Civil é afirmada como substituta de qualquer outra forma de fé ou crença, pelo suposto apóstolo da democracia, e assim inaugura-se o anticristianismo como programa de política de Estado:

Mas, quem quer que diga: Fora da Igreja não há salvação – deve ser excluído do Estado a menos que o Estado seja a Igreja, e o príncipe, o pontífice. Tal dogma só serve para um Governo teocrático; em qualquer outro é pernicioso. (Idem, p. 145)

David Hume (1711-1776), ao dar prosseguimento à obra cartesiana de fundar uma filosofia baseada no ceticismo filosófico, afirmou que o entendimento humano é condicionado pela Natureza, verdadeira entidade metafísica imanente à própria existência, à qual não nos é dado conhecer a essência, mas, diante da qual nos basta assumir nossa doce ignorância sobre os fundamentos da realidade, e nos contentarmos com os dados oriundos da observação e da experiência, para a consolidação de informações que costumeiramente estão associadas como causa e efeito, com a ressalva de que todo efeito é um evento distinto de sua causa, e somente por costume é que tais eventos são associados.

Esta linha de raciocínio naturalista, na qual há precedência do dado empírico sobre a ideia, ou melhor dizendo, na qual a ideia é considerada como totalmente oriunda da experiência observável, princípio que não admite concessões nem exceções, determina, então, ao estudioso da ética socorrer-se de argumentos que apelem para questões de fato e suas consequências.

Hume decreta que o anátema deve ser jogado na fogueira acesa em nome do dogma naturalista da filosofia moderna:

Quando percorrermos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos: Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, laçai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões (Hume, David. Investigações acerca do entendimento humano; tradução Anoar Aiex; in coleção os pensadores – São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 145, destaques no original).

O princípio vitalista em que a vida é considerado o bem supremo submete-se ao princípio da laicidade, que defende a fé apostólica na religião civil, e, em caso de conflitos entre o cidadão e o Estado, este está autorizado a banir ou eliminar aquele, pois se tratará de um ímpio que professa princípios diferentes, pois tal pessoa não será útil para a sociedade civil.

A perspectiva filosófica moderna que defende a laicidade tem implicações no pensamento contemporâneo.

Um exemplo está na postura de  Michael J. Sandel (1953-), em sua obra "Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética" (tradução Ana Carolina Mesquita. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013) apesar de ponderar sobre os perigos inerentes à instrumentalização da biotecnologia, como forma de dominação sobre a natureza humana, acaba por defender a utilização de embriões humanos como insumos para pesquisa sobre células troncos.

Sandel propõe analogia entre embriões e bolotas, pois estas são distintas de carvalhos, não obstante a existência de uma “relação de continuidade em termos de desenvolvimento” (Sandel,  p.124).

A proposição de Sandel pretende distinguir embriões de pessoas, que muito embora sejam potencialidades ligadas no tempo, entre a concepção e o nascimento, não necessariamente estão numa relação de causa e efeito de natureza empírica, pois o conceito de “vida humana” é distinguível do conceito de pessoa, e, assim, não há uma equivalência moral do embrião e a pessoa já formada e nascida, pois aquele é um blastocisto, um amontoado de 180 a 200 células.

Sandel define a não-equivalência moral entre o embrião e a pessoa ao afirmar que:

[…] é inegável que o blastocisto é uma ‘vida humana’, ao menos no sentido óbvio de que está vivo, e não morto, e que é humano, e não, digamos, bovino. Porém não se depreende desse fato biológico que o blastócito é um ser humano, ou uma pessoa. Qualquer célula humana viva (uma célula epitelial, por exemplo) é uma ‘vida humana’ no sentido de ser humana, e não bovina, e viva, e não morta (Sandel, p.123).

Portanto, Sandel na melhor tradição da filosofia moderna apela para o ceticismo metodológico, fundado num empirismo canhestro e anti-intelectual, numa defesa da religião civil que apela para a fé na ciência, por esta ser uma forma de teologia da natureza, para concluir com a afirmação de que é apenas uma questão de fato o embrião estar vivo, mas somente como um conjunto de células, que muito embora sejam humanas ainda não configuram uma pessoa.

Sandel esclarece, sempre numa perspectiva humeana, que “o fato de toda pessoa ter sido um dia um embrião não prova que os embriões são pessoas”, e mesmo que haja “dificuldade de especificar o início exato da pessoalidade no curso do desenvolvimento humano” (Sandel, p.125) não nos permitirá considerar que os embriões humanos sejam pessoas (idem).

A afirmação que a relação de causa e efeito que faz derivar uma pessoa de um embrião é somente verificável como uma questão de fato, como acontecimento empírico a ser analisado caso a caso, e que as relações de ideias, aceitas socialmente daí derivadas, é que vão legitimar a conduta ética perante o embrião, pois o embrião não é uma pessoa em sua essência, faz com que o embrião não seja considerado necessariamente a “causa” da existência de uma pessoa, mas, uma vez que seja possível “especificar o início” da pessoalidade, qualquer que seja o critério científico, social ou jurídico, estar-se-á diante de uma dádiva natural que deve ser reverenciada.

O conceito de pessoa é, portanto, segundo a loquacidade e mendacidade da filosofia moderna representada por Sandel um costume social que se estabelece sobre um dado natural verificável, que reconhece certas características sustentadas em fatos de natureza empírica, que dão suporte a relações de ideias que condicionam a crença social na existência de direitos da personalidade, que conferem dignidade ao ser humano classificado habitualmente como pessoa, o que torna moral a utilização de embriões para “promover a cura e desempenhar nosso papel de reparar o mundo dado” para que o “progresso da biomedicina” seja uma benção “para a saúde”.

Diante de tais colocações é possível verificar uma matriz filosófica muito específica, que prima pelo reducionismo empirista da existência humana, que classifica os seus objetos de estudo de forma nominalista e naturalista, que não admite raciocínios de causa e efeito, seja por dedução ou indução, e, por fim, exclui como inaceitável e irrelevante a crença em qualquer tipo de metafísica transcendente do ponto de vista ontológico, seja filosófica ou religiosa.

Sandel ao questionar o posicionamento ético que julga que o embrião é uma pessoa, tese que nega o empirismo e o ceticismo implicados na filosofia moderna, demonstra que desconsidera convicções religiosas e considerações filosóficas metafísicas transcendentais à natureza são consideradas inadmissíveis para a epistemologia do cientificismo estabelecido, pois são negadoras do laicismo, uma vez que apelam para outras realidades fundadoras, sejam filosóficas, religiosas ou com base na ciência que confia no real, e que aceita a existência de causas e efeitos.

A postura filosófica e científica inerente à modernidade é o padrão adotado no debate bioético contemporâneo, muito embora seja um pressuposto ideológico que raramente é colocado na mesa de discussão, pressuposto que merece ser esclarecido e debatido, pois a afirmação do direito à vida é reduzido ao dado material, social e jurídico, para escamotear a matriz autoritária da profissão de fé laicista que se apoia na religião civil do ceticismo empirista, cujo dogma é o naturalismo negador da sacralidade da vida humana e da liberdade fundamental do espírito.

WERNER NABIÇA COÊLHO