Descartes
(1596-1650) foi o primeiro filósofo a valorizar a “conservação
da saúde” como princípio que serve de “primeiro bem
e fundamento de todos os outros bens da vida”,
vejamos o trecho do Discurso do Método, cap. 06, parágrafo 02 e
seguintes que inaugura tal perspectiva:
O
que é de desejar, não só para a invenção de uma infinidade de
artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer custo, os frutos da
terra e todas as comodidades que nela se acham, mas principalmente
também para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro
bem e fundamento de todos os outros bens da vida.
Pois
mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos
órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne
comumente os homens mais sábios e mais hábeis do que foram até
aqui, creio que se deve procurá-lo na Medicina. (Apud,
Kreeft, Peter. Sócrates encontra Descartes: o pai da filosofia
interroga o pai da filosofia moderna e seu discurso do método;
tradução de Gabriel Melatti. – 1. ed. – Campinas : CEDET, 2012,
185-6)
Rousseau
(1712-1778) define a relação entre o cidadão e o Estado com base
numa “profissão de fé puramente civil” tratado como "dogma de religião"
que permite o banimento e a imolação dos “ímpios”, pois esta seria uma categoria de pessoas, que ao dividir sua fidelidade entre Estado e Religião, “cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às
leis”:
[...]
importa ao Estado que cada cidadão tenha uma um religião que o faça
amar seus deveres; os dogmas dessa religião, porém, não interessam
nem ao Estado nem a seus membros, a não ser enquanto se ligam à
moral e ao deveres que aquele que a professa é obrigado a oferecer
em relação a outrem. Quanto ao mais, cada um pode ter as opiniões
que lhe aprouver, sem que o soberano possa tomar conhecimento delas,
pois, como não chega sua competência ao outro mundo, nada tem a ver
com o destino dos súditos na vida futura, desde que sejam bons
cidadãos nesta vida.
Há,
pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano
tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como
sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom
cidadão ou súdito fiel. Sem poder obrigar ninguém a crer neles,
pode banir do Estado todos os que neles não acreditarem, pode
bani-los não como ímpios, mas como insociáveis, como incapazes de
amar sinceramente a lei, a justiça, e de imolar, sempre que
necessário, sua vida a seu dever. Se alguém, depois de ter
reconhecido esses dogmas, conduzir-se como se não cresse neles, deve
ser punido com a morte, pois cometeu o maior de todos os crimes –
mentiu às leis. (Rousseau, Jean-Jacques, Do
contrato social; trad. Lourdes Santos Machado; col. Os pensadores –
4. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 143-4)
A
doutrina política do Estado Laico
fundado na criação e
defesa da Religião Civil é
afirmada como substituta de qualquer outra forma de fé ou crença,
pelo suposto apóstolo da democracia, e assim inaugura-se o anticristianismo como programa de política de Estado:
Mas,
quem quer que diga: Fora da Igreja não há salvação – deve ser
excluído do Estado a menos que o Estado seja a Igreja, e o príncipe,
o pontífice. Tal dogma só serve para um Governo teocrático; em
qualquer outro é pernicioso. (Idem, p. 145)
David
Hume (1711-1776), ao dar prosseguimento à obra cartesiana de fundar uma
filosofia baseada no ceticismo filosófico, afirmou que o
entendimento humano é condicionado pela Natureza, verdadeira
entidade metafísica imanente à própria existência, à qual não
nos é dado conhecer a essência, mas, diante da qual nos basta
assumir nossa doce ignorância sobre os fundamentos da realidade, e
nos contentarmos com os dados oriundos da observação e da
experiência, para a consolidação de informações que
costumeiramente estão associadas como causa e efeito, com a ressalva
de que todo efeito é um evento distinto de sua causa, e somente por
costume é que tais eventos são associados.
Esta
linha de raciocínio naturalista, na qual há precedência do dado
empírico sobre a ideia, ou melhor dizendo, na qual a ideia é
considerada como totalmente oriunda da experiência observável,
princípio que não admite concessões nem exceções, determina,
então, ao estudioso da ética socorrer-se de argumentos que apelem
para questões de fato e suas consequências.
Hume decreta que o anátema deve ser jogado na fogueira acesa em nome
do dogma naturalista da filosofia moderna:
Quando
percorrermos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que
destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um
volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos:
Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou
do número? Não. Contém algum raciocínio
experimental a respeito das questões de fato e de existência?
Não. Portanto, laçai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e
ilusões (Hume, David.
Investigações acerca
do entendimento humano;
tradução Anoar Aiex; in
coleção os
pensadores – São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 145,
destaques no original).
O
princípio vitalista em que a vida é considerado o bem
supremo submete-se ao princípio da laicidade,
que defende a fé apostólica na religião civil, e, em
caso de conflitos entre o cidadão e o Estado, este está autorizado
a banir ou eliminar aquele, pois se tratará de um ímpio
que professa
princípios diferentes, pois
tal pessoa não será útil para a sociedade civil.
A
perspectiva filosófica moderna
que defende a laicidade
tem implicações no
pensamento contemporâneo.
Um
exemplo está na postura de Michael J. Sandel (1953-), em sua obra "Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética" (tradução Ana Carolina Mesquita. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013) apesar de ponderar sobre os perigos inerentes à
instrumentalização da biotecnologia, como forma de dominação
sobre a natureza humana, acaba por defender a utilização de
embriões humanos como insumos para pesquisa sobre células troncos.
Sandel
propõe analogia entre embriões e bolotas, pois estas são distintas
de carvalhos, não obstante a existência de uma “relação de
continuidade em termos de desenvolvimento” (Sandel, p.124).
A
proposição de Sandel pretende distinguir embriões de pessoas, que
muito embora sejam potencialidades ligadas no tempo, entre a
concepção e o nascimento, não necessariamente estão numa relação
de causa e efeito de natureza empírica, pois o conceito de “vida
humana” é distinguível do conceito de pessoa, e, assim, não
há uma equivalência moral do embrião e a pessoa já formada e
nascida, pois aquele é um blastocisto, um amontoado de 180 a 200
células.
Sandel
define a não-equivalência moral entre o embrião e a pessoa ao
afirmar que:
[…]
é inegável que o blastocisto é uma ‘vida humana’, ao menos
no sentido óbvio de que está vivo, e não morto, e que é humano, e
não, digamos, bovino. Porém não se depreende desse fato biológico
que o blastócito é um ser humano, ou uma pessoa. Qualquer célula
humana viva (uma célula epitelial, por exemplo) é uma ‘vida
humana’ no sentido de ser humana, e não bovina, e viva, e não
morta (Sandel, p.123).
Portanto,
Sandel na melhor tradição da filosofia moderna apela para o
ceticismo metodológico, fundado num empirismo canhestro e
anti-intelectual, numa defesa da religião civil
que apela para a fé na ciência, por esta ser uma forma de teologia
da natureza, para concluir com a afirmação de que é apenas uma questão de fato o
embrião estar vivo, mas somente como um conjunto de células, que
muito embora sejam humanas ainda não configuram uma pessoa.
Sandel
esclarece, sempre numa perspectiva humeana, que “o fato de toda
pessoa ter sido um dia um embrião não prova que os embriões são
pessoas”, e mesmo que haja “dificuldade de especificar o
início exato da pessoalidade no curso do desenvolvimento humano”
(Sandel, p.125) não nos permitirá considerar que os embriões
humanos sejam pessoas (idem).
A
afirmação que a relação de causa e efeito que faz derivar uma
pessoa de um embrião é somente verificável como uma questão de
fato, como acontecimento empírico a ser analisado caso a caso, e que
as relações de ideias, aceitas socialmente daí derivadas, é que
vão legitimar a conduta ética perante o embrião, pois o embrião
não é uma pessoa em sua essência, faz com que o embrião não seja
considerado necessariamente a “causa” da existência de
uma pessoa, mas, uma vez que seja possível “especificar o
início” da pessoalidade, qualquer que seja o critério
científico, social ou jurídico, estar-se-á diante de uma dádiva
natural que deve ser reverenciada.
O
conceito de pessoa é, portanto, segundo a loquacidade e mendacidade
da filosofia moderna representada por Sandel um costume social que
se estabelece sobre um dado natural verificável, que reconhece
certas características sustentadas em fatos de natureza empírica,
que dão suporte a relações de ideias que condicionam a crença
social na existência de direitos da personalidade, que conferem
dignidade ao ser humano classificado habitualmente como pessoa, o
que torna moral a utilização de embriões para “promover a
cura e desempenhar nosso papel de reparar o mundo dado” para
que o “progresso da biomedicina” seja uma benção “para
a saúde”.
Diante
de tais colocações é possível verificar uma matriz filosófica
muito específica, que prima pelo reducionismo empirista da
existência humana, que classifica os seus objetos de estudo de forma
nominalista e naturalista, que não admite raciocínios de causa e
efeito, seja por dedução ou indução, e, por fim, exclui como
inaceitável e irrelevante a crença em qualquer tipo de metafísica
transcendente do ponto de vista ontológico, seja filosófica ou
religiosa.
Sandel
ao questionar o posicionamento ético que julga que o embrião é uma
pessoa, tese que nega o empirismo e o ceticismo implicados na
filosofia moderna, demonstra que desconsidera convicções religiosas
e considerações filosóficas metafísicas transcendentais à
natureza são consideradas inadmissíveis para a epistemologia do
cientificismo estabelecido, pois são negadoras do laicismo,
uma vez que apelam para
outras realidades fundadoras, sejam filosóficas, religiosas ou com
base na ciência que confia no real, e que aceita a existência de
causas e efeitos.
A
postura filosófica e científica inerente à modernidade é o padrão
adotado no debate bioético contemporâneo, muito embora seja um
pressuposto ideológico que raramente é colocado na mesa de
discussão, pressuposto que merece ser esclarecido e debatido, pois a
afirmação do direito à vida é reduzido ao dado material, social e
jurídico, para escamotear a matriz autoritária da profissão de fé
laicista que se apoia na
religião civil do
ceticismo empirista, cujo dogma
é o naturalismo negador
da sacralidade da vida humana e da liberdade fundamental do espírito.
WERNER
NABIÇA COÊLHO