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sábado, 12 de outubro de 2019

A LUZ É A PRÓPRIA CORPOREIDADE

NOTA INTRODUTÓRIA

Roberto Grossateste (c. 1168? - 1253) entre 1215 e 1220 produziu a obra "A luz, o tempo e o movimento", da qual abaixo reproduzo um único parágrafo que diz respeito à concepção de que a luz é a fonte da corporeidade, a origem de todas as formas corporais. Para facilitar a leitura separei o texto em diversos parágrafos para facilitar o foco da leitura:


Roberto Grossateste, Bispo de Lincoln



"A primeira forma corporal, chamada por alguns de corporeidade, penso que é a luz. Pois a luz, per se, difunde-se a si mesma por toda a parte, de tal maneira que de um ponto de luz se pode gerar instantaneamente uma esfera de luz de qualquer magnitude, contando que algo opaco não se interponha como obstáculo.

Da corporeidade é que sucede necessariamente a extensão da matéria em três dimensões, apesar de serem, a corporeidade e a matéria, substâncias simples in se, sem qualquer dimensão.

Na verdade, uma forma simples in re e sem dimensão não poderia produzir, por toda a parte, dimensão na matéria, a qual é igualmente simples e sem dimensão, exceto multiplicando-se a si mesma, difundindo-se instantaneamente por toda parte, e estendendo a matéria nessa difusão de si mesma, uma vez que a forma não pode abandonar a matéria, pois não é separável, nem pode a matéria ser esvaziada de forma.


Robeto Grossateste, como retratado no século XIII



Eu disse antes, porém, que a luz é que possui, per se, essa operação de multiplicar-se a si mesma e de difundir-se instantaneamente por toda a parte. 

Portanto, o que faz isso ou é a luz, ou é algo que o faz como participante da luz, a qual o faz per se.

Logo, a corporeidade ou é a luz mesma ou é aquilo que faz a referida operação e introduz dimensões na matéria enquanto participa da luz e age por virtude da luz.

É impossível, porém, que a primeira forma introduza dimensões na matéria por virtude de uma forma subsequente a ela mesma.


Estudo de difração da luz por uma lente esférica, 1250



Logo, a luz não é uma forma subsequente à corporeidade, mas é a própria corporeidade."





Fonte: 


Grossateste, Roberto, 1168?-1253. A luz, o tempo e o movimento / tradução de Renato Romano, apresentação de Raphael De Paola - Porto Alegre, RS: Concreta, 2016, p. 85.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O MITO DA MEDICINA E A HARMONIA ENTRE ALMA E CORPO - MATERIAL DE ESTUDO



"O problema consiste precisamente em saber se alma e corpo, funcionamento psíquico e funcionamento somático, na realidade complementares, podem ser radicalmente separados do ponto de vista da terapia." (Paul Diel)


"O valoroso esforço de Apolo para salvar sua amada Coronis, e como tal esforço leva à dedicação de Asclépio à cura, trata de como a busca pela cura está fundamentada em amor e lamento. A falha de Apolo em salvar Coronis, morta por um deus, assim como a história da punição de Asclépio por ressuscitar os mortos ensinam que a medicina deve aceitar a mortalidade humana como limite apropriado para seu trabalho. A docilidade que infunde os nomes de Asclépio (incessantemente gentil) e Epiona (que acalma) trata da arte da cura não como uma guerra contra a doença ou contra o corpo, mas da procura, junto ao corpo, em levá-lo à saúde. Tal docilidade é tema recorrente em muitas obras médicas antigas." (Cf. Steven H. Miles, apud Hélio Angotti Neto, p. 49-50)

Detalhe de Apolo e as Musas (Simon Vouet). 
Apolo, como Senhor da beleza 
e da perfeição, é patrono das artes.


"Apolo representa a cura, a razão e a profecia, isto é, o prognóstico, o entendimento do está por vir na vida do paciente. A racionalidade de Apolo orienta a tendência mais naturalista presente nos médicos a partir de então, fator em comum nos diversos escritos hipocráticos. Higia representa a busca pela prevenção e pelos bons hábitos, pela higiene. Panaceia representa a cura por meio da terapia farmacológica, das medicações. E Asclépio (ou Esculápio), filho de Apolo, pai de Higia e Panaceia e aprendiz do centauro Quíron, também demonstra diversos valores e inclui uma curiosa censura ao desejo indevido de lucro acima do que é sábio, pois morreu alvejado por Zeus ao ceder - movido pela ambição - à tentação de ressuscitar um mortal preso no reino de Hades." (Angotti Neto, p. 50)

"Os valores e as atitudes demonstradas pela evocação dos deuses antigos são: gentileza, busca pela cura, prevenção dos males por meio de bons hábitos, autoconhecimento, sabedoria frente aos limites da própria arte e uso da razão." (Angotti Neto, p. 51)

Quíron e Aquiles, ânfora ática (~520a.C.), Museu do Louvre, França.


"Na mitologia grega são encontradas muitas figuras simbólicas cuja significação guarda estreita relação com a medicina. As mais importantes são: Apolo, Quíron, e Asclépio. A significação dos símbolo "Asclépio" só poderá ser encontrada se estabelecermos precisamente sua posição nesta tríade, na qual Apolo, suprema divindade da saúde, simboliza o princípio da cura. Ora, Apolo preside à harmonia da alma. Aparece, assim, desde o início, com perfeita clareza, a posição do mito em relação à saúde em geral ressaltando em especial a saúde psíquica. Nesta constatação inicial poderia estar a chave da tradução do mito da medicina, do mito de Asclépio." (Paul Diel, p. 206)

Estátua de Esculápio no museu do Teatro de Epidauro, Grécia


"Quanto à relação entre harmonia psíquica e a saúde, é importante sublinhar que qualquer símbolo mítico, sejam divindades ou monstros, possui uma significação em relação à arte médica. A simbolização em seu conjunto serve para representar a constelação sadia ou doentia da psique. A tradução do mito de Asclépio permitirá o desenvolver essa questão fundamental em toda a sua extensão e determinar a visão em relação à cura, não somente da psique como também do corpo." (Paul Diel, p. 206-7)

[...]"a condição de harmonia interior, a vitória sobre a vaidade culposa"  (Paul Diel, p. 207)

"Mesmo sendo filho de Apolo, Asclépio preside menos ao equilíbrio da alma que à saúde do corpo. Seria que o interesse predominantemente pelo corpo, caractetístico do símbolo "Asclépio", a causa do castigo final que o herói da medicina sofre segundo o relato mítico? Uma comparação com o destino de Hércules permitirá um melhor julgamento.

"Hércules sacrifica seu corpo, e carnalidade, e Zeus lança seu relâmpago para iluminar a alma do herói. O espírito ajuda o herói na realização do sacrifício, símbolo de sublimação. O sacrifício do corpo (a renúncia ao apego exaltado aos desejos carnais) é aceito pelo espírito e torna-se a condição essencial da divinização simbólica. Asclépio, ao contrário, por sua qualidade de curador dos males físicos, apega-se às necessidades corporais. Contra ele, Zeus não lança o relâmpago iluminador, mas o raio punitivo. O simbolismo parece querer manifestar que a ciência médica, da qual Asclépio é o representante mítico, mesmo que implique, como toda ciência, um esforço de ordem espiritual (simbolicamente divinizado), muitas vezes pode apegar-se exclusivamente às necessidades do corpo."  (Paul Diel, p. 207)

"Uma tal concepção contém o perigo de abrir um profundo abismo entre a sabedoria mítica e a mais marcada das tendências da medicina moderna. A aparência de uma contradição no símbolo "Asclépio" (divinizado-fulminado) e a tentativa de destituí-lo, desde o princípio, de sua significação, chave da tradução, conduzem a um dilema: ou o mito, em razão de sua predileção pela vida da alma, exagerou a importância de seu princípio de cura, a harmonização dos desejos [...]; ou então a predileção da medicina moderna pelo estudo do funcionamento orgânico a teria levado a negligenciar a importância do funcionamento psíquico. (Paul Diel, p. 207-8)

"Este dilema exige uma solução, antes mesmo de entrar nos detalhes da tradução. Não se trata de forma alguma de discutir as bases da arte médica, mas unicamente de evidenciar o fundamento da visão mítica encontrado no símbolo "Asclépio" e de assim preparar a compreensão dessa figura cuja significação ultrapassa o quadro mítico no qual é tratado, visto que a formação e a deformação da alma, portanto, a cura dos distúrbios psíquicos, são tema comum a todos os mitos. O problema consiste precisamente em saber se alma e corpo, funcionamento psíquico e funcionamento somático, na realidade complementares, podem ser radicalmente separados do ponto de vista da terapia. Convém enfrentar antes de tudo esse problema fundamental, ainda que necessite de um preâmbulo teórico um pouco longo e complicado." (Paul Diel, p. 208)

"A tradução de um número bastante grande de mitos demonstrou que sua significação oculta constitui uma verdadeira psicopatologia, uma pré-ciência psicológica, expressa por imagens, mas capaz de explicitar a motivação subconsciente, produtora de ações ilógicas e sintomáticas, alcançando até os delírios e as alucinações, cujo conjuntou constitui as doenças mentais. Esta pré-ciência mítica parece merecer a censura de considerar com demasia exclusividade o encadeamento psíquico das causas e dos efeitos, dos motivos e das ações. Seria sem dúvida errôneo pretender que a doença do espírito se deva unicamente a causas de ordem psíquica. A verdade é que a cada causa psíquica corresponde um distúrbio orgânico (lesão da substância nervosa ou desregramento da função endócrina). O ideal seria conhecer tanto o encadeamento das causas fisiológicas quando dos motivos psíquicos. A desordem da psiquiatria moderna poderia muito bem advir da incapacidade de estabelecer um paralelo entre essas duas vias explicativas, bem como das tendências que buscam preencher as lacunas da explicação fisiológica através de explicações psíquicas, e as lacunas da explicação psíquica por explicações de ordem fisiológica. Nesse sentido, a sabedoria mítica teria muita razão em limitar -se à  explicação figurativa dos motivos e de seu encadeamento.  Esta limitação seria um princípio econômico que não poderia de modo algum suscitar a censura de negar a unidade corpo-psique,ou de se opor a priori a qualquer preocupação no tocante às causas orgânicas e aos cuidados somáticos. Ao contrário,  teríamos o direito de dizer que a sabedoria mítica,  apesar de explicar-se somente através de imagens simbólicas,  mostra -se mais avançada"  (Paul Diel, p. 208-9)

Fontes: 

https://editoramonergismo.com.br/products/a-tradicao-da-medicina

https://www.amazon.com.br/Simbolismo-na-Mitologia-Grega/dp/8585115181/ref=sr_1_2?s=books&ie=UTF8&qid=1519054280&sr=1-2

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

COM DESCARTES O ESPÍRITO INCOMENSURÁVEL FOI AFASTADO EM FAVOR DO "CORPO" QUE PENSA


Descartes, em suas Meditações Metafísicas, quando se lança em sua hipótese de ceticismo radical quanto à realidade e objetividade do mundo afirma que sentiu como se “tivesse caído em águas muito profundas” uma vez que pressupunha que "que todas as coisas que vejo são falsas”, mas, socorre-se de sua própria existência corporal e sensória para afirmar que é desnecessária a existência de "Deus, ou alguma outra potência" para a produção do próprio pensamento, uma vez que o próprio sujeito é capaz de produzi-los por si mesmo, e, assim, o ceticismo radical é afastado pela constatação: "Eu então, pelo menos, não sou algo? [...] Sou de tal forma dependente do corpo e dos sentidos que não posso existir sem eles? [...] então não me persuadi de que eu não existia? Decerto não, eu existia sem dúvida” (p. 42), e prossegue em sua autoafirmação existencial: “Não há dúvida, então, de que eu sou” [...] “Eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeiro todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo em meu espírito” (p. 42-3).

Vale ressaltar que Descartes ao questionar o que é o homem foge das sutilezas sensoriais e espirituais, pois permanece cético quanto à realidade percebida pelos sentidos, e, por considerar enganosa tal realidade que se revela complexa, prossegue seus argumentos com fundamento no reducionismo simplificador da realidade, mediante a adoção dos dados matematizáveis, e desenvolve o conceito de corpo com base no critério de estrita mensuração espacial, uma vez que compreende corpo como "tudo o que pode ser delimitado por alguma figura” (p. 45), e assim, o corpo possui os seguinte atributos:

- Ocupa um lugar;
- Preenche um espaço;
- Exclui outros corpos;
- É objeto dos sentidos;
- É móvel por força exterior.

Todavia, o corpo não possui em si a potência de mover-se, de sentir e de pensar, e por isso Descartes afirma que “espantava-me por ver que semelhantes faculdades se encontravam em certos corpos” (p. 45), pelo que define as seguintes distinções entre os atributos da alma e do corpo:

- Alimentar-se e locomover-se (corpo);
- Sentir (corpo);
- Pensar (alma).

Por um momento podemos considerar que a perspectiva cartesiana está nos remetendo para a vida da alma, que por sua vez imprime a consciência no corpo, todavia, tal perspectiva não existe para Descartes, pois, por mais que o mesmo afirme que a alma humana nada mais é que "uma coisa que pensa, ou seja, um espírito, um entendimento ou uma razão” (p. 46), o caráter espiritual se desfaz quando o raciocínio de Cartesius define que a alma e seu processo de pensamento é derivado da imaginação, estritamente oriunda de impressões sensoriais corporais, uma vez que “imaginar não é outra coisa senão contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal” (p. 47), neste sentido, a própria vida do pensamento, que por sua vez constitui a vida da alma, é uma derivação de percepções sensoriais empíricas derivadas da contemplação da figura ou imagens corporais, de corpos extensos, de "res extensa".

Com Descartes o espírito foi afastado em favor do "corpo", ou melhor dizendo, o espírito, a alma e o pensamento foram considerados como meras imanências corporais, tais flatulências do pensamento desenvolveram-se a tal ponto que hoje somos ensinados sobre a "morte de Deus" e a dialética do espírito da história como corpo social em desenvolvimento, ou da matéria corporal mesmo, como se fossem verdades do pensamento, quando na verdade são meros peidos verborrágicos de corpos perdidos no ceticismo sofístico de nossos tempos reducionistas.

Referência:

DESCARTES, René. Meditações metafísicas. 2. ed. Introdução e notas Homero Santiago. Tradução Maria Ermantina Galvão. Tradução dos textos introdutórios Homero Santiago. São Paulo: Martins Fontes, 2005