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sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O MARTÍRIO BRANCO DOS IRLANDESES


Thomas Cahill em sua obra Como os irlandeses salvaram a civilização, relata a história de como a vida monástica intelectual e laboriosa surgiu primeiro na Irlanda, como os irlandeses preservaram a cultura clássica, desenvolveram a liberdade de pensamento e a tolerância cultural de forma inédita, e, por fim, lançaram-se ao mundo europeu conturbado e destruído pelas invasões bárbaras, para reconstruir a civilização letrada ocidental.




Cahill relata que a dádiva de São Patrício aos irlandeses foi o seu cristianismo: o primeiro cristianismo desromanizado da História, um cristianismo sem a bagagem sócio-política do mundo greco-romano, um cristianismo que se aculturou sobremaneira ao ambiente irlandês, e daqui adiante, peço perdão aos puristas e cultores de textos originais, mas, confesso que transcrevo diversas passagens da obra de Cahil, para melhor descrever tais eventos históricos.

O Édito de Milão, que, em 313, declara a legalidade da nova religião e a torna a menina dos olhos do novo imperador, o cristianismo é aceito por Roma, e não Roma pelo cristianismo!

A cultura romana pouco se alterou com a interação, e há quem defenda a idéia de que, no processo, o cristianismo perdeu muito daquilo que o distinguia.

Porém, no caso da interação com Patrício, a Irlanda, carecendo do poder e das implacáveis tradições romanas, é aceita pelo cristianismo, que a tranforma em Algo Novo, algo jamais visto: uma cultura cristã onde a escravidão e o sacrifício de seres humanos tornam-se inadmissíveis, e onde a guerra, embora impossível de ser erradicada, diminui de maneira considerável.

Ocorre que os irlandeses eram verdadeiros aficionados do combate físico, e seria impossível que as lutas entre tribos desaparecessem completamente. Mesmo assim, as novas leis, influenciadas pelas normas do Evangelho, muito inibiam tais conflitos, determinando que só era permitido recorrer às armas em causas graves.

No momento em que os filhos guerreiros do coração de Patrício, convertidos, depõem as espadas, atiram longe as facas usadas nos sacrifícios e deixam de lado as correntes da escravidão, tornam-se irlandeses e irlandesas.

Com efeito, a sobrevivência de uma identidade psicológica irlandesa é uma das maravilhas da história da Irlanda.

Ao contrário dos Padres da Igreja continental, os irlandeses jamais se preocuparam em demasia com a erradicação das influências pagãs, às quais faziam vista grossa e demonstravam certo apreço. Festas pagãs continuaram a ser comemoradas, motivo pelo qual, hoje em dia, celebramos as festas irlandesas de May Day e hollowe'en.*

A experiência irlandesa é singular na história das religiões porque a Irlanda foi o único local onde o cristianismo foi introduzido sem derramamento de sangue.

Não há mártires irlandeses (a não ser quando, 11 séculos após Patrício, Elisabeth I encarrega-se de criá-los).

Essa carência de mártires incomodava os irlandeses, aos quais uma morte gloriosa e violenta representava um emocionante desfecho para a vida.

Uma vez que toda a Irlanda havia recebido o cristianismo sem luta, os irlandeses teriam de encontrar alguma nova modalidade de martírio, algo ainda mais interessante do que as histórias terríveis que começavam a lhes chegar às mãos, vindas do continente europeu: as chamadas 'martirologias' com as quais Patrício e seus sucessores ensinavam leitura.

No final do século V, início do século VI, os irlandeses encontraram um solução, a qual denominaram o 'Martírio Verde', em oposição ao tradicional 'Martírio Vermelho', caracterizado pelo derramamento de sangue.

Com o propósito de estudarem as Escrituras e aproximarem-se de Deus, os Mártires Verdes abandonavam o conforto e os prazeres da sociedade e isolavam-se no topo de uma montanha, ou em uma ilha deserta, em suma, em algum local fora da jurisdição tribal.

Todavia, em pouco tempo, com a crescente organização de monastérios, os desejos extremos do Martírio Verde foram abandonados em favor do monasticismo, movimento que, embora capaz de apoiar e mesmo incitar excentricidades, ao mesmo tempo, sujeita tais tendências a um contrato social.

Uma vez que a Irlanda carecia de cidades, os estabelecimentos monásticos desenvolveram-se e tornaram-se os primeiros centros populacionais, sedes de prosperidade, arte e conhecimento, sem precedentes na história do país.

A generosidade irlandesa estendia-se não apenas a uma grande variedade de pessoas, mas, também, a uma variedade de idéias.

Tão despreocupados com respeito à ortodoxia de pensamento quanto o eram com relação à uniformidade da prática monástica, os irlandeses acolheriam em suas bibliotecas tudo o que lhes estivesse ao alcance das mãos. Estavam determinados a nada excluir.

Com uma catolicidade despojada, os clérigos que defendiam um pensamento convencional, e que haviam sido treinados para valorizar a literatura cristã, abrem um grande espaço à moralidade dúbia dos clássicos pagãos.

A indicação mais clara, talvez, da situação do escriba e estudioso daquela época está contida em um poema irlandês de quatro estrofes, interpolado em um manuscrito do século IX, cujo erudito conteúdo inclui comentários sobre Virgílio, em latim, e uma lista de provérbios gregos:


Eu e Bichano, meu gato,
Praticamos o mesmo ato;
Caçar rato é sua alegria,
Caçar palavra, minha agonia.


Mas dá muito gosto ver
Trabalharmos com prazer;
Em casa, sempre ao batente,
Juntos, distraímos a mente.


Ele prega o olho no muro,
Esperto, enxerga no escuro;
Eu prego o olho no papel,
E do saber sou um réu.


Assim, vivemos em paz,
Eu e Bichano, meu ás;
Lado a lado pela vida,
Cada um na sua lida.


Os livros eram, como diríamos no jargão de hoje, abertos e multifacetários e intertextuais, verdadeiros banquetes em que os escribas incluíam um pouco de tudo que os interessasse em termos culturais, linguísticos e estilísticos. Não voltaríamos a encontrar esse tipo de autor até James Joyce escrever Ulisses.

Os irlandeses receberam o letramento à sua maneira, como algo lúdico.

Puseram-se, então, a inventar idiomas. Os integrantes de uma sociedade secreta, formada no final no século V (período imediatamente após a consolidação do processo de letramento dos irlandeses), trocavam escritos em sofisticadas e impenetráveis variações do latim, a que chamavam Hisperica Famina e faz lembrar a linguagem onírica em Finnegna Wake, ou mesmo a linguagem de J.R.R. Tolkien criaria para seus elfos e duendes.

Nada fez brotar o lúdico espírito irlandês mais do que a própria atividade da cópia.

A princípio não havia, na Irlanda, grupos de escribas trabalhando no mesmo scriptorium, apenas eremitas e monges que atuavam isoladamente, em suas celas diminutas, ou ao ar livre, se as condições climáticas fossem propícias, copiando textos a partir de livros emprestados, trazendo o original antigo sobre um dos joelhos, o pergaminho novo sobre o outro.

Até mesmo os mais ilustres entre esses homens eram pessoas simples que apreciavam o contato com a natureza. (No século IX, um escriba irlandês afirma estar trabalhando embaixo de uma árvore, enquanto ouve o canto límpido de um pássaro, pulando de galho em galho.)

Ainda hoje, Nicolete Gray, no livro A History of Lettering, afirma, com relação à célebre página "Chi-Rho", que as três letras gregas - o monograma de Cristo - são "mais uma presença do que apenas letras".


"Custamos a crer", escreve Kenneth Clark, "que durante muito tempo - quase 100 anos - o cristianismo ocidental sobreviveu  apenso a locais como Skellig Michael, um rochedo situado a 30 quilômetros da costa irlandeza, projetando-se a 218 metros acima do nível do mar" (os 100 anos a que se refere abrangem um período que vai do final do século V, após a morte de Patrício, ao final do século VI, momento em que, conforme vamos constatar, os monges irlandeses restabelecem a ligação entre a Europa barbarizada e as tradições do letramento cristão).

Skellig Michael

Gregório de Tours escreveu um triste epitáfio para o letramento (na Europa continental) do século VI: "Nestes tempos em que a prática das letras declina, ou melhor, desaparece das cidades da Gália, não existe um estudioso sequer treinado em expressão escrita, capaz de descrever, em prosa ou em verso, um quadro que se passou."

Enquanto a Europa era incendiada, a vida cultural e religiosa na Irlanda prosseguiu em relativa paz, e, em certa altura do século VI o Monje Columba deu o passo que faltava ao instituir o Martírio Branco, pois, Columba tomou a atitude mais difícil para um irlandês, algo mais difícil até do que abrir mão da própria vida: deixar a Irlanda.




Se o Martírio Verde fracassara, o martírio que se seguiria seria tão marcante quanto o Vermelho; a partir daquele momento, todos os que seguiram o exemplo de Columba atenderam ao chamado do Martírio Branco, todos os que zarparam sob o céu branco da manhã, rumo ao desconhecido, para sempre.

Foi assim que a tradição monástica irlandesa começou a se espalhar além das fronteiras do país, pois os monastérios irlandeses já abrigavam milhares de internos, que, ao regressarem aos seus locais de origem, levavam consigo o conhecimento irlandês. Agora, os monges irlandeses iriam colonizar a Europa barbarizada, assim, os Mártires Brancos, trajados como druidas, em sóbrias túnicas brancas, percorreram a Europa, fundando monastérios.

Antes do final do século VIII, os exilados chegam à Morávia e até em Kiev existem vestígios dos Mártires Brancos.
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*O dia 1º de maio, conhecido como "Beltaine", era uma sagração da primavera, ocasião em que os participantes acendiam fogueiras, erigiam mastros enfeitados e desfrutavam de liberdade sexual; a ùltima noite de outubro, conhecida como Samain (Hallowe'en), marcava o início do inverno, sendo a noite em que fantasmas e outras criaturas nefastas, vindas de 'outro mundo', tinham permissão para assombrar os vivos.

Fonte:

Thomas Cahill, Como os irlandeses salvaram a civilização, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1999.