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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

KARL POPPER E A FALSEABILIDADE INEFICAZ


Karl Popper  em "A lógica da pesquisa científica" expõe o problema da indução, que é “a indagação acerca da validade ou verdade de enunciados universais que encontrem base na experiência” (p. 28). Uma vez que os enunciados singulares ou particulares são uma inferência indutiva, e os enunciados universais são hipóteses ou teorias, Popper afirma:

“Equivale isso a dizer que o enunciado universal baseia-se em inferencia indutiva. Assim, indagar se há leis naturais sabidamente verdadeiras é apenas outra forma de indagar se as inferências indutivas se justificam logicamente” (p. 28)

Seguindo a senda kantiana, Popper afirma que “o princípio de indução há de constituir-se num enunciado sintético, ou seja, enunciado cuja negação não se mostre contraditória, mas logicamente possível” (p. 29), para em seguida levantar o aspecto contraditório deste princípio empírico-indutivo, pois:


"é supérfluo e deve conduzir a incoerências lógicas [...] Pois o princípio da indução tem de ser, por sua vez, um enunciado universal [...] a tentativa de alicerçar o princípio da indução na experiência malogra, pois conduz a uma regressão infinita [...] Kant procurou vencer a dificuldade admitindo que o princípio de indução (que ele apresentou como “princípio da causação universal”) é “válido à priori”” (p. 29)

Popper afirma que a “lógica da inferência provável, ou lógica da probabilidade” conduz a uma regressão infinita ou à doutrina do apriorismo kantiano (p. 30), e, para evitar tais armadilhas lógicas, que julgou encontrar tanto no probabilismo quanto no apriorismo, propõe sua teoria do método dedutivo de prova "ou de concepção segundo a qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada” (p. 30).

Esta proposta, do método dedutivo de prova, se funda em uma distinção entre psicologia do conhecimento e lógica do conhecimento, esta se preocupando com "relações lógicas" aquela com "fatos empíricos" (p. 31), e, assim, para Popper a lógica indutiva é inadequada. por ser uma invasão de problemas psicológicos no campo dos problemas epistemológicos, razão pela qual postula a eliminação do que julga ser um tipo de psicologismo, indevido no âmbito da pesquisa científica, isto é, postula uma forma de "neutralidade científica".

Popper afirma o "axioma" de que “o trabalho do cientista consiste em elaborar teorias e pô-las à prova” (p. 31), e, assim o:

"estágio inicial, o ato de conceber ou inventar uma teoria […] A questão de saber como uma idéia nova ocorre ao homem […] não interessa à análise lógica do conhecimento científico” (p. 31).
Neste ponto há uma reminiscência de David Hume, em um sentido inverso ao proposto pelo filósofo inglês, pois enquanto Hume se preocupa com a origem das idéias com base  nas relações empíricas de fato, para Popper a lógica do conhecimento científico diz respeito não a questões de fato, mas a questões inerentes às relações lógicas que  validam as teorias, pois para "que um enunciado possa ser examinado logicamente sob esse aspecto, deve ter-nos sido apresentado previamente” (p. 31)

Então, tal como David Hume, Kant e demais filósofos cartesianos, Popper se apega à tese de existência de um pressuposto limite do conhecimento humano, com base em alguma precondição auto-limitadora.

Popper nega a possibilidade de autoconhecimento e transcendência, ao afirmar que “não existe um método lógico de conceber idéias novas ou de reconstruir logicamente esse processo […] Toda descoberta encerra um “elemento irracional” ou “uma intuição criadora”, no sentido de Bergson” (p. 32)
A intuição é irracional? O processo de constituição de ideias racionais é irracional? Para Karl Popper, sim, é irracional, inclusive, ele cria uma nova morada para a incognoscível "coisa em si" kantiana, ao afirmar o que livremente denominamos de um mistério inefável relativo ao nascimento das ideias.

Nesta toada, Popper afirma que o “método de submeter criticamente à prova as teorias, e de selecioná-las conforme os resultados obtidos, acompanha sempre as linhas expostas a seguir” (p. 33) possui os seguintes passos:

1º – Comparação lógica das conclusões – coerência


2º – Investigação da forma lógica (empírica, científica ou tautológica)


3º – Comparação com outras teorias (avanço científico?)


4º – Comprovação da teoria por meio de aplicações empíricas das conclusões que dela se possam deduzir


Pelo que pudemos observar até aqui, Popper define que o processo de apuração da prova científica é necessariamente de base dedutiva, num processo circular de caráter eminentemente teórico, cuja conclusão se dará pelo teste empírico das "conclusões" obtidas de forma dedutiva, percebo que tal processo é uma forma elaborada de reafirmar a precedência do pensamento sobre a matéria, preconizado por Descartes.

O processo se inicia com “predições” na forma de enunciados “que não sejam deduzíveis da teoria vigente” (p. 33), submetida à apreciação da comunidade científica, e, após, sua validade é estabelecida mediante a prova científica de cunho experimental, pois na "medida em que a teoria resista a provas pormenorizadas e severas […] foi “corroborada” pela experiência passada” (p. 34).

Popper busca demonstrar que não se supõe a verdade da teoria, a partir de enunciados particulares, nem que a ciência é oriunda da revelação empírica “verificável”, e, por fim, define que a superação do "problema da indução" é obtida pela aplicação da prova lógico-dedutiva testada empiricamente, com base no consenso acadêmico-científico.


Este tipo de colocação implica no "problema da demarcação" consistente no “problema de estabelecer um critério que nos habilite a distinguir entre crenças empíricas, de uma parte, e a Matemática e a Lógica, bem como os sistemas “metafísicos”, de outra” (p. 35), e neste ponto, nos encontramos, novamente, sob a sombra do pensamento de David Hume, pois revela-se que Popper participa do preconceito moderno contra o conceito de verdade transcendente (substancial e essencial) ao objeto da ciência, uma vez que esta se ocupa de bens materiais e/ou mensuráveis.

Demarcar, neste caso, é justificar a cegueira para tudo o que não é considerado inserido dentro do limite do corte metodológico, para depois afirmar que o objeto recortado é a totalidade daquilo que podemos apreender.




Popper relata neste ponto:

“Se, acompanhando Kant, chamamos ao problema da indução “problema de Hume”, poderíamos chamar ao “problema de Kant” o problema da demarcação” (p. 35)

E prossegue distinguindo os velhos positivistas que defendem conceitos derivados da experiência, dos positivistas modernos que consideram a ciência um "sistema de enunciados”, não um sistema de conceitos, e, que “os positivistas realmente desejam não é tanto uma bem sucedida demarcação, mas a derrubada total e a aniquilação da Metafísica” (p. 36).



Popper ao criticar o indutivismo típico de Wittgenstein, que define a redução da linguagem a proposições elementares, portadoras de significados dotados de sentido, com base empírica, lembra que “as leis científicas também não podem ser logicamente reduzidas a enunciados elementares da experiência” (p. 37).

Após tais considerações, que criticam a redução da ciência à linguagem originada numa base empírica, Popper define o critério de demarcação, como um objeto de consenso, e por isso imune às contradições da indução, pois é uma “proposta para que se consiga um acordo ou se estabeleça uma convenção” (p. 38), e, mais uma vez, afirma a irracionalidade da razão em seu aspecto prático e empírico, como forma concreta de tomada de decisão, e que: 

“A determinação desse objetivo é, em última análise, uma questão de tomada de decisão, ultrapassando, por conseguinte, a discussão racional” (p. 39)

Portanto, antes de haver uma qualquer pesquisa científica, há a prevalência de uma decisão "política" no sentido de uma práxis, cujo caráter empírico gera a demarcação do âmbito do objeto de estudo da própria ciência.

Após fundamentar o que julga ser o fundo social-político-irracional da demarcação do conhecimento científico, Popper descreve que o seu sistema teórico objetiva estabelecer um efetivo “sistema que se denomina “ciência empírica” que pretende representar apenas um mundo: o “mundo real”, ou o “mundo de nossa experiência”" (p. 40)

Neste sentido, de forma esquemática descrevo o sistema teórico de Popper:

  • Adoção de enunciados sintéticos (não-contraditórios; mundo possível)

  • Aplicação do critério de demarcação (não-metafísico = representar um mundo de experiência possível)
Karl Popper
E, enfim, chegamos à necessidade da "falseabilidade", como "critério da demarcação", para se contrapor ao critério de demarcação inerente à lógica indutiva implica na criação do dogma positivista do significado fundado em dados empíricos, que é fundado no constante julgamento sobre a verdade ou falsidade do conhecimento, com base em dados oriundos da indução, pelo que Popper afirma:

“Contudo, só reconhecereis um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema” [...]“Em outras palavras, não exigirei que uma sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recursos a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, uma sistema científico empírico” (p. 42)


Popper erige seu critério da falseabilidade com base na “assimetria entre verificabilidade e falseabilidade, assimetria que decorre da forma lógica dos enunciados universais. Estes universais nunca são deriváveis de enunciados singulares, mas podem ser contraditados pelos enunciados singulares" (p. 43)





Para que sejam reconhecidos como verdades científicas os enunciados lógico-hipotéticos, expressados mediante enunciados universais obterão sua validação, ou invalidação, mediante enunciados singulares oriundos da experiência científica, mediante o teste empírico de uma determinada hipótese previamente erigida, pois “aquilo que caracteriza o método empírico é sua maneira de expor à falsificação, de todos os modos concebíveis, o sistema a ser submetido à prova” (p. 44).

Para Popper “enunciados só podem ser logicamente justificados por enunciados” (p. 45), e “a objetividade dos enunciados científicos reside na circunstância de eles poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste” (p. 46), assim sendo, classifica-os em:

  • Enunciados científicos objetivos

  • Enunciados psicológicos subjetivos




Popper condena à morte todos os princípios metafísicos não-falseáveis (princípio da identidade, princípio do terceiro excluído, princípio da não contradição, etc.), pois são inverificáveis empiricamente:

“os enunciados básicos devem ser por sua vez suscetíveis de teste intersubjetivo, não podem existir enunciados definitivos em ciência – não pode haver, em ciência, enunciado insuscetível de teste e, consequentemente, enunciado que não admita, em princípio, refutação pelo falseamento de algumas das conclusões que dele possam ser deduzidos” (p. 49)
Em síntese:

a) o "problema da indução" ou "problema de Hume" faz surgir a necessidade de uma regressão infinita, que pode implicar na aceitação de inferências probabilísticas, ou a aceitação de juízos apriorísticos, o que invalidaria a aceitação do método empírico-indutivo, e, assim, afirma que o método científico deve ser de base dedutivo-empírica na "concepção segundo a qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada” (p. 30).


b) o "problema da demarcação" ou "problema de Kant" se origina na necessidade de eliminar a abordagem positivista, que incorre no erro inerente ao "problema da indução", para considerar que o objetivo da ciência não é a "a derrubada total e a aniquilação da Metafísica” (p. 36), mas, sim, a busca objetiva do conhecimento, com base em  "um acordo ou se estabeleça uma convenção” (p. 38), que defina o objeto da ciência, uma vez que o momento que o antecede é inerentemente irracional, em seu aspecto prático e empírico, como forma concreta de "tomada de decisão" (p.39).

c) uma vez que seja reconhecido que a ciência deve partir de formulação lógica e dedutivas, será necessária a operação do "critério da falseabilidade", mediante a qual somente seja reconhecido como verdade científica a hipótese racional e lógica que descreve enunciados universais, que será validada ou não, mediante enunciados singulares, oriundos do teste empírico.

d) assim, somente será considerado objeto da ciência o que o cientista for capaz de enunciar logicamente, mediante enunciados universais, testados e validados empiricamente, para, assim, obter "enunciados objetivos científicos", pois a falseabilidade somente opera perante enunciados universais verificáveis empiricamente, mediante teste intersubjetivo, que estabelecem "uma convenção, o que, implicitamente, é mais um anúncio da "morte de Deus", pois a falseabilidade é uma declaração implícita da "morte da metafísica", quando esta é considerada como um mero "enunciado psicológico subjetivo", uma vez que o critério da falseabilidade é a celebração do relativismo consensual de uma classe de iluminados.

POPPER, KARL R. Colocação de alguns problemas fundamentais. A lógica da pesquisa científica. 16. ed. Tradução Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2008, p. 27-50.