sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: SÃO DIVISÍVEIS OS CORPOS? (cap. 03)

Observações preliminares.

O Filósofo Mário Ferreira dos Santos sempre advertia no início de suas obras a respeito da importância do vocabulário, e, principalmente, de seu elemento etimológico, e, já nos idos dos anos 1960 ele alertava que utilizaria certas consoantes mudas, já em desuso, mas muito importantes para "apontar  étimos que facilitem a melhor compreensão da formação histórica do têrmo empregado", e, em razão desta técnica de exposição, escolhi realizar as transcrições do texto em seu formato gramatical original (com exceção das tremas).

"SÃO DIVISÍVEIS OS CORPOS?

A divisibilidade é a aptidão de separar as partes que estão unidas. Uma extensão, formalmente considerada, é divisível matemática ou hipotèticamente. Se um corpo é fisicamente divisível, sê-lo-ia por meio mecânico ou por intermédio de reacções químicas. Dir-se-á que uma divisão é metafísica, mas apenas pela acção de um ser superior a nós, como Deus.
É possível a divisibilidade metafísica infinita em acto? Poder-se-ia separar um corpo em partes que seriam em número infinito em acto? Essas partes seriam absolutamente simples, pois, do contrário, seriam, por sua vez, divisíveis, e não se teria atingido a infinitude em acto, mas apenas um número elevado. Essa divisão é impossível por ser absurda, como veremos. Restaria, então, a divisão finita em acto, e também a divisão potencial matemática sem fim, in infinitum, nunca, porém atingindo um têrmo, como se pode considerar quanto à extensão tomada formalmente; não, porém, materialmente.

Quando se afirma que é possível obter-se uma divisão infinita em acto da extensão, afirma-se uma absurdidade. Apenas pode-se admitir uma divisibilidade potencialmente infinita (um divide-se em duas partes, estas em duas outras, que serão quatro; estas em duas, que formarão oito e assim sucessivamente) uma divisibilidade hipotética, como se faz na matemática, não, porém, física, como alguns tentam alegar, como o fêz Zeno de Eléia, Demócrito (com seus átomos-indivísiveis) e muitos autores modernos e antigos, inclusive alguns escoláticos (1).


Em contrário a esta tese, temos a de Aristóteles, comumente aceita pelos escolásticos.

Para expô-la, é mister esclarecer alguns conceitos. As partes integrantes podem ser alíquotas, aliquantas e proporcionais. As partes alíquotas são aquelas cuja repetição iguala ao todo contínuo; aliquantas, aquela que, repetidas, não igualam ao todo; ou o excedem ou não o atingem; são incomensuráveis, como o diâmetro o é para a circunferência. Proporcionais são as que decorrem da mesma divisão ou subdivisão, feitas segundo a mesma proporção, como o todo dividido em dois, e as partes resultantes divididas em duas e, assim sucessivamente, sem alcançar a um fim.

O contínuo matemático não consta de entes simples, mas de partes sem fim divisíveis.


O contínuo é extenso, e a extensão conta de partes extensas, porque é formalmente um todo homogêneo. Matemática ou hipotèticamente, e também metafisicamente, a extensão, enquanto tal, é sempre extensa. Afirmam os defensores desta tese, e o procuram demonstrar, que aquela, assim considerada, não é divisível sem fim em partes alíquotas, mas em partes proporcionais. Em qualquer divisão é obtida alguma parte, e esta divisível pelo meio, em terças, em quartas, sem fim. Por isso, matemàticamente, pode-se dividir a extensão in infinitum. É também postulado pela tese que o contínuo matemático não consta de entes simples sem extensão, como afirmaram os filósofos anteriormente citados. Muitos são os argumentos apresentados em defesa desta tese que, por sua vez, serve de refutação à tese anterior. Se o contínuo constasse de indivísiveis, seriam êstes pontos, sem dimensão, como já vimos, que é a característica de ponto. Ou êles se tocam, ou não. Se se tocam, coincidem, e como não são extensos, não formariam uma extensão, e se não se tocam, não temos mais o contínuo, mas o descontínuo. Muitas provas matemáticas foram apresentadas em defesa desta tese: no quadrado, a diagonal e os lados são incomensuráveis, e se o contínuo constasse de pontos, tal não se daria, como também não se daria na circunferência em relação ao diâmetro.


Um ponto indivisível não pode ter duas faces, pois elas seriam idênticas numa só. O contínuo é um composto potencial, porque dêle se podem extrair as partes, e não um composto actual, porque êle não surge de partes preexistentes, pois se estas fôssem simples, o contínuo constaria de coisas simples. Se compostas, por sua vez, estas seriam formadas de partes compostas ou simples, e assim iríamos ao infinito. A diferença, que há num composto contínuo, e num composto essencial, é que, no primeiro, as partes não preexistem, mas podem ser determinadas, enquanto, no segundo, as partes, de certo modo, são preexistentes ao composto.

Os autores, que combatem esta tese, afirmam que se o contínuo é divisível in infinitum, é êle composto de partes em número infinito. Nêste caso, teríamos uma multidão infinita em acto, o que é absurdo, levando, portanto, a repelir que o contínuo matemático seja divisível em acto, mas apenas a infinitude em potência.

Não satisfeitos com essa argumentação, os defensores da posição contrária argumentam do seguinte modo: possível é tudo que pode realizar-se em acto sem contradição, e se um contínuo matemático é divisível in infinitum, êle poderia, então, actualizar-se, o que seria contraditório. Mas os defensores da tese respondem que não se afirma sua possibilidade simultânea, mas apenas sucessiva e inexaurível.
Simultâneamente não seria possível esta divisão, mas apenas sucessiva e inexaurìvelmente. Afirmam que a divisibilidade in infinitum  consiste apenas na afirmação de que o contínuo não pode ser exaurido por partes proporcionais. Afirmam outros que Deus, com o seu infinito poder, poderia, então, dividir in infinitum o contínuo matemático, e essas partes seriam, consequentemente, finitas, o que impediria se dissesse que é êle divisível in infinitum. Mas a resposta não se faz esperar, porque, se assim fôssem, estas quantas partes seriam simples, e, então, o contínuo constaria de indivisíveis.  Ademais, as partes podem ser divididas sucessivamente, e não simultâneamente, e porque o contínuo constaria de indivisíveis, o que repugna à demonstração já feita. O argumento de Zeno de Eléia reduz-se, em suma, ao seguinte: se o contínuo fôsse divisível in infinitum não poderia ser percorrido. Contudo êle é percorrido; portanto não é divisível in infinitum. Justifica-se êste argumento, porque, transitando-se uma parte, restaria um número infinito de partes a serem transitadas, o que impediria de alcançar-se o infinito. Se numeramos as partes, realmente tão poderia acontecer. O móvel não transita numerando as partes, mas, sim, por um movimento contínuo, que é extenso, que se extende, porque se o movimento não tivesse extensão também não haveria movimento. Dizem outros que  a tese da divisibilidade do contínuo matemático é inaceitável, porque se é divisível in infinitum, o contínuo menor teria tantas partes iguais quanto o contínuo maior, o que é absurdo. (negritei)

A distinção entre parte proporcionais e partes alíquotas permite compreender a tese. Se as partes fôssem alíquotas, então, sim, tal seria possível, não, porém, se forem proporcionais e desiguais.

Dizem os adversários da tese que o número compõe-se de unidades, e que, portanto, igualmente um contínuo é composto de pontos simples. Mas há disparidade nesta afirmativa, porque o número é uma quantidade discreta, enquanto o contínuo é uma quantidade contínua. O argumento de Zeno de Eléia fundava-se no seguintes silogismo: a magnitude infinita não pode ser percorrida por um tempo infinito; ora, se se dá uma magnitude divísivel in infinitum, ela é infinita; logo, não pode ser transitada pelo tempo finito. Não considerou Zeno, porém, uma distinção bem simples: é que a magnitude infinita em acto não é afirmada, mas apenas a em potência. O tempo finito também é infinito em potência. Se o tempo finito não fôsse infinito em potência, Zeno teria razão. (negritei)

O argumento de Aquiles, apresentado por Zeno, fundava-se de que sendo o espaço divisível in infinitum, aquêle, apesar de sua grande velocidade, não poderia jamais alcançar a tartaruga, desde que esta partisse de um ponto mais distante dêle, porque a infinitude do espaço impediria que êle a alcançasse, pois ao chegar ao ponto, onde ela anteriormente estava, já estaria ela mais distante, e assim sucessivamente. Se realmente tivesse Aquiles que percorrer, partindo de um ponto para o ponto sucessivo, tal estaria certo, mas o movimento daquele é um movimento descontínuo (feito em passos), como também o é o da tartaruga, e o daquele é mais veloz; ou seja, percorre, no mesmo tempo, maior extensão, o que permite que êle a alcance. Note-se que o espaço a ser percorrido pode ser dividido pelos passos de Aquiles. O passo já é qualitativo o que mostra a quantidade inseparável da qualidade, como ainda veremos.


A parte de um todo é sempre menor do que êle. Um ente, sem partes e sem extensão, seria um ente simples e, como tal, por não ter extensão, não é extensistamente comparável a outro. Como poderia a extensão ser constituída do que não é extenso? Já que a idéia de extensão aponta para a tensão ex, centrífuga, que foge de um ponto, o que os defensores desta tese afirmam é a divisibilidade in infinitum do contínuo matemático, do contínuo metafísico. Quanto ao contínuo físico, veremos mais adiante como êles se comportam em oposição a outros postulados, eivados de absurdos, por serem fundamentalmetne contraditórios.


A afirmativa de que o contínuo matemático é composto de indivisíveis e sem extensão leva à afirmação de que a extensão é constituída de não-extensão, o que é contraditório, ou que a essência do extenso seria o não-extenso, pois tratando-se de um todo homogêneo, como é o contínuo matemático, as suas partes são especìficamente idênticas ao todo, e se são elas inextensas, como poderia o todo ser essencialmente extenso? Neste caso, que é o do todo integral homogêneo, o que se atribui essencialmente  ao todo atribui-se à parte, e vice-versa. Portanto, seria patente a contradição. Que o extenso seja produto de uma entidade não extensa, é matéria a ser discutida, mas que seja constituído, em suas partes integrais, de partes inextensas, tal seria absurdo.


Não se palmilha aqui matéria fácil, pois longas são as especulações matemáticas em tôrno dêsse tema, as quais, se aqui reproduzidas, apenas alongariam a matéria, sem grande proveito quanto à explicação, pois as aporias são inegáveis. E elas surgem e se firmam mais comumente entre filósofos menores, por fazerem êstes confusão entre o contínuo matemático ou hipotético e o metafísico, com o contínuo físico. E chegam a afirmar, como fêz Demócrito e também ilustre escolásticos, que, fisicamente, o extenso é composto de entidades inextensas, portanto indivisíveis, átomos, o que nem para o contínuo matemático se pode admitir, quanto mais ainda para o contínuo físico, em face das demonstrações acima apresentadas.




A Cosmologia especula sôbre os entes móveis, isto é, aptos à translação espacial. São êstes entes quantitativos e, consequentemente, exigem o estudo da quantidade contínua e da descontínua, que é fundamental para os posteriores exames cosmológicos.

Temos aí, portanto, o exemplo do êrro cosmológico, que teve grande influência no filosofar.

(1) Também se atribui indevidamente a Pitágoras este tese. Não o colocamos entre os defensores dêsse postulado. A demonstração que teríamos de apresentar seria longa, e fazemo-la nas obras que escrevemos sôbre o pensamento do verdadeiro fundador da filosofia ocidental, tantas vêzes incompreendido, e ao qual se tem atribuído pensamentos que têm sua origem nos chamados pitagóricos, discípulos posteriores.

Mário Ferreira dos Santos, Erros na Filosofia da Natureza, Coleção Uma Nova Consciência, Editora Matese, São Paulo, 1967, p. 19-24.

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