Olavo de Carvalho, após demonstrar o "caráter sacro da ciência da lógica", por meio de demonstrações da correspondência entre as leis da lógica e a realidade cósmica, adentra no estudo das categorias com base em analogias que revelam o quanto este mundo ainda é espantoso:
"Para estudarmos esta parte, devemos partir das sete faculdades cognitivas mencionadas no esoterismo muçulmano e na filosofia escolástica, e das quais já falei em trabalhos anteriores, motivo pelo qual me dispenso de explicá-las aqui. Basta dizer que estas sete faculdades são as seguintes, com suas correspondências numéricas e astrológicas:
1 Intuição Sol
2 Espírito vital Lua
3 Pensamento ou discurso Mercúrio
4 Imaginação ou memória Vênus
5 Conjetura ou opinião Marte
6 Vontade Júpiter
7 Razão Saturno
Se as faculdades cognitivas são, na estrutura interior do homem, sete modos de conhecer, é preciso que, na estrutura do real externo, lhes correspondam outros tanto modos de ser. Aos sete enfoques de que a nossa inteligência é capaz a realidade exterior responde responde oferecendo sete ângulos ou sete camadas. Não tem cabimento discutir aqui qual dos dois lados tem prioridade: interno ou externo são duas faces da mesma Verdade que, para manifestar-se, se desdobra em Inteligência, de um lado, e Presença, de outro.
Os sete modos de ser são chamados tradicionalmente, categorias ou antepredicamentos. A doutrina das categorias foi codificada no Ocidente por Aristóteles, mas tem uma origem muito mais antiga, como se vê pelo fato de que ela está registrada nos textos da lógica tradicional hindu, ou Nyaya (12).
Enfocando as categorias como contraparte objetiva e exterior das funções cognitivas, temos então os sete planetas como sete "regiões" do mundo imaginal (13), que é o mediador entre o interior e o exterior, entre o intelectual e o real, formando um ternário de correspondências:
Plano intelectual ou lógico sete funções cognitivas
Plano imaginal sete formas imaginais ou "planetas"
Plano ontológico sete categorias ou modos de ser
Claro que esses ternários poderiam ser postos em correspondências com outros tantos ternários -- Céu, Terra e Homem, do taoismo; Spiritus, Anima e Corpus, da escolástica (e, no plano da psique, alma intelectiva, alma volitiva e alma sensitiva) e assim por diante. Mas estas associações são por demais evidentes e não é necessário insistir nelas aqui (14).
Quanto às categorias, elas são ao mesmo tempo conceitos lógicos e conceitos ontológicos. Do ponto de vista lógico, que é o mais fácil, elas podem ser definidas como "os gêneros de todos os gêneros", isto é, como as mais amplas claves de classificação concebíveis, a classificação de todas as classificações.
Por exemplo, se desejo classificar o conceito de "azul", posso enquadrá-la na classe "cor". O conceito de "cor", por sua vez, pode ser catalogado como "fenômeno ótico", e o fenômeno ótico cabe na classe das "qualidades sensíveis". Já as qualidades sensíveis podem ser enquadradas na categoria de "qualidade" (qualidade em sentido amplo e genérico), e com isto chegamos ao fim da linha. Se desejo definir o que é qualidade, o máximo que posso dizer é que uma "modalidade de ser", e isto é precisamente a definição de categoria. A qualidade é uma das categorias, tanto n sistema de Aristóteles como no sistema hindu.
Do mesmo modo, posso catalogar um cão como mamífero, o mamífero como animal, o animal como ser vivo, o ser vivo como ente, e o ente como "substância individual". Substância -- existência subsistente numa forma própria individual -- é outra categoria, nos dois sistemas apontados. E se perguntarem o que é substância, teremos de responder que é... uma modalidade de ser.
O sistema de Aristóteles assinala dez categorias, que os escolásticos, suprimindo as redundantes, reduziram para oito. Às duas últimas categorias dos sistema escolástico -- espaço e tempo -- podem ser resumidas num único conceito do sistema hindu, que é a categoria da ausência (15), porque todas as coordenadas que fixam um ente no espaço e no tempo não fazem mais do que situá-lo negativamente, isto é, pela sua relação com os lugares e momentos onde ele não está. Se enfocamos um ente como substância, ao contrário, estamos vendo o que há nele de realidade positiva e própria, no sentido mais amplo e afirmativo. A "substância" e a "ausência" (ou espaço-tempo) são, portanto, os dois extremos da cadeia das categorias: de um lado, a mais direta, positiva e afirmativa, de outro, a mais indireta, relacional, negativa.
Mediante este arranjo propiciado pela comparação do sistema de Aristóteles com o sistema hindu, temos então sete categorias:
Substância
Quantidade
Qualidade
Relação
Ação
Paixão
Ausência (espaço-tempo)
A palavra grega kathegorein, que é a origem de "categorias", significa "atribuir" ou "predicar". As categorias são determinações primordiais, genéricas, que podemos atribuir a todo e qualquer ser, mesmo antes de saber o que seja; daí sua denominação latina, antipraedicamenta, que quer dizer aquilo que vem antes da predicação. São precondições de toda predicação. São precondições de toda predicação. Tudo o que possamos predicar, tudo o que possamos atribuir a um ente, há de estar incluído numa das categorias. Independentemente do que seja propriamente um ente qualquer, dele já sabemos, em princípio, que:
a) ele existe ou é alguma coisa (categoria da substância);
b) que ou ele é uma unidade, ou é nulo, ou existe numa quantidade qualquer (categoria da quantidade);
c) que tem qualidades (categoria da qualidade);
d) que tem relações com outros entes (categoria da relação);
e) que exerce ou não algum efeito, desencadeia alguma consequência (categoria da ação);
f) que sofre, ou pode sofrer, ou não sofre o efeito da ação de outros entes (categoria da paixão);
g) finalmente, que está situado ou não em algum lugar e em algum momento do tempo, em algum ponto entre dois extremos que são, de um lado, estar em todos os lugares e todos os momentos e, de outro, não estar em nenhum (categoria da ausência, ou espaço-tempo).
a) ele existe ou é alguma coisa (categoria da substância);
b) que ou ele é uma unidade, ou é nulo, ou existe numa quantidade qualquer (categoria da quantidade);
c) que tem qualidades (categoria da qualidade);
d) que tem relações com outros entes (categoria da relação);
e) que exerce ou não algum efeito, desencadeia alguma consequência (categoria da ação);
f) que sofre, ou pode sofrer, ou não sofre o efeito da ação de outros entes (categoria da paixão);
g) finalmente, que está situado ou não em algum lugar e em algum momento do tempo, em algum ponto entre dois extremos que são, de um lado, estar em todos os lugares e todos os momentos e, de outro, não estar em nenhum (categoria da ausência, ou espaço-tempo).
Logo, tudo o que possamos saber de um ente sempre consiste nas sete respostas às perguntas colocadas pelas sete categorias: Existe, é real? Constitui unidade ou multiplicidade? Quais as qualidades que apresenta? Como se relaciona com os outros entes? Que efeito desencadeia? Que ações padece ou pode padecer? Onde e quando existe?
A prova mais evidente de que as categorias efetivamente abrangem tudo o que podemos predicar é que elas definem também os limites da linguagem: a cada categoria corresponde também um gênero de palavras (categoria morfológica) e um tipo de função que pode desempenhar na estrutura da frase (funções sintáticas):
I. À categoria da substância corresponde a categoria morfológica do nome, ou substantivo, que é precisamente a designação mais genérica da forma subsistente.
II. À categoria da quantidade corresponde o artigo e o pronome, cujas funções são bastante similares, e que diferenciam os entes em modo simplesmente quantitativo-formal (ele, este, aquele, o , a, os, as).
III. À categoria da qualidade corresponde o adjetivo, que assinala as qualidades que os entes manifestam.
IV. À categoria da relação corresponde a conjunção, que determina os entes pela simples forma de sua anexação a outros entes ou conceitos (este e aquele; isto porque aquilo; isto mas aquilo); é de se notar que a tipologia das conjunções as divide segundo os dois modos básicos da relação em geral, que são a coordenação e a subordinação.
V. À categoria da ação corresponde o verbo.
VI. À categoria da paixão corresponde o conceito geral de declinação e a categoria morfológica da preposição. Deve-se notar que, se a ação e a paixão são complementares e intercambiáveis funcionalmente, também o são a declinação e o verbo; pode-se dizer que a conjugação é a declinação do verbo (segundo a função do sujeito na frase) e a declinação é a conjugação do nome (conforme a direção da ação verbal, do ativo para o passivo e vice-versa). A categoria da preposição não é mais do que uma cristalização da declinação.
VII. À categoria da ausência ou espaço-tempo corresponde a categoria morfológica do advérbio. De fato o advérbio tem uma função de especificar, de localizar, de circunstancializar através da atenuações ou ampliações, isto é, em última análise, de negações. Mediante elas, o advérbio situa desde fora -- desde coordenadas circunstanciais, acidentais -- a ação do verbo, a qualidade do adjetivo e a direção da preposição.
Estas indicações são dadas a título de mero esclarecimento, pois o estudo das categorias gramaticais não faz parte do intuito deste trabalho. A relação entre as faculdades cognitivas e as categorias, que é o que nos interessa, fica no entanto mais fácil de esclarecer mediante a comparação com as categorias gramaticais.
Antes, porém, de passarmos ao estudo dessa relação, é preciso observar -- se é que o leitor já não reparou -- que as categorias formam uma gradação crescente, do simples para o complexo, do direto para o indireto, do absoluto para o contingente, do afirmativo para o negativo (ou antes, da afirmação direta à negação-da-negação).
A escala das categorias mostra um modo progressivamente indireto e relacional de enfocar o ente, e cada uma das categorias tem uma forma numérica que a define e que é, afinal de contas, a verdadeira razão última das atribuições planetárias:
I. A categoria da substância faz aparecer o ente sob o signo da sua unidade, da absolutidade que é imanente a todo ente, por mais relativo que seja. Corresponde, portanto, ao número um.
II. A categoria da quantidade faz ressaltar essa unidade já não em modo direto, mas pela polaridade opositiva com o não-um, ou seja, com o múltiplo.
III. A categoria da qualidade ressalta as distinções entre as várias "unidades" que dessa polarização se destacam. Aqui o ente já é visto como um entre outros, destacando-se deles pelas qualidades que lhe são próprias.
IV. A categoria da relação faz surgir o ente já não como totalidade atual e real, mas como feixe de relações virtuais com um contorno formado de uma infinitude de outros seres. Corresponde ao número quatro, que é o dos elementos de uma proporção.
V. A categoria da ação faz surgir novamente o ente como expressão unitária, pois a ação é a expressão de uma substância, mas de uma substância já quantificada, qualificada e relacionada. Equivale ao número cinco, formando o esquema da cruz com quatro pontos mais um centro. É a expressão de um ente como totalidade das suas possibilidades relacionais, mas vistas em modo intrínseco.
VI. A categoria da paixão reenquadra o ente no seu contorno, mostrando as possibilidades de transformação e de integração em sistemas maiores que o abranjam. Corresponde ao número seis, que é o das direções do espaço. O ente, aqui, é visto como membro de um todo.
VII. Finalmente, a categoria da ausência abarca o ser na totalidade das relações espaço-tempo (e, implicitamente, número) que o determinam e enquadram desde fora. Corresponde ao número sete, que é o da cruz de seis pontas mais um centro, e que simboliza o sistema universal de coordenadas que localizam um ente. Cabe aqui uma pequena consideração, que é a de que a essência de um ente contém não somente a afirmação direta, positiva, do que este ente é, mas também, implicitamente, as diferenças que o separam de todos os demais entes. A categoria da ausência faz surgir então o sistema destas diferenças, como uma projeção inversa ou negativa do conteúdo positivo da essência.
Como se vê, caminhamos da substância à ausência, caminhamos de uma apreensão direta de uma quididade à determinação "posicional" do sistema das suas ausências.
É justamente nessa gradação que reside o princípio da correspondência entre as categorias e as funções cognitivas. Cada modalidade de um ente -- como unidade e totalidade em si, como unidade quantitativa, como qualidade diferenciada, como virtualidade relacional, como ação expressiva da substância, como parte de um todo e como sistema integral de suas diferenças --, cada modalidade de um ente é captada por uma faculdade cognitiva diferente. Isto quer dizer que cada uma das categorias ou modos de um ente surge diante da nossa cognição segundo uma condição psicológica diferente. O sistema planetário, como sistema das funções imaginativas, fornece assim o elo entre o enfoque lógico e o enfoque psicológico do conhecimento.
A intuição, por exemplo, capta o ser sob a categoria da substância, isto é, apreende-o na sua totalidade una, na sua quididade. Do ponto de vista lógico, a substância é a primeira de todas as categorias, de modo que ter apreendido a substância de um ente é, em modo implícito e sintético, conhecer tudo quanto nele é cognoscível; as demais categorias seriam apenas desdobramentos de propriedades do ente.
No entanto, do ponto de vista psicológico, a intuição é instantânea, portanto passageira e incomunicável. A intuição dá o conhecimento logicamente mais rico, da maneira psicologicamente mais pobre.
***
Deixaremos para outra ocasião o exame detalhado das relações entre as faculdades intelectuais e as categorias. Mas o que foi dito deve bastar para dar uma idéia do contorno e da direção que poderiam tomar tais estudos.
Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Coleção Eixo, Nova Estella Editorial Ltda., 1986, p. 43-51
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