domingo, 15 de abril de 2018

FICHAMENTO: A ORIGEM DA LINGUAGEM



Ora, a polaridade de vestuário e linguagem é a polaridade do "antes" e do "depois". (p. 175)

Uma mesma vida tem de ser investida em seu aspecto de algo que vai ser no futuro e de ser lembrada no aspecto de coisa passada. (p. 175)

Logo, investidura e registro são atos indispensáveis para a vida na Terra. (p. 175)

Em sua unidade de vestuário e linguagem, chamamo-los ritual. Em sua polaridade, chamamo-los "cerimônias" e "acontecimentos da história". (p. 175)

...precisamos de fórmulas que protejam a sua indefinição no início da carreira. As fórmulas dão liberdade aos nossos poderes criativos indefinidos até que tenhamos dado nossa contribuição. (p. 175)

A vida humana não é nua nem anônima. É ritualística. (p. 175)

Nosso corpo natural não tem função social. Entramos no corpo social graças ao vestuário, que representa um corpo temporário. (p. 175-6)

Um homem ter feito um nome para si significa literalmente ter feito com que outras pessoas falem dele e pensem nele! (p. 176)

Uma cerimônia que invista de determinada função ou título acadêmico um homem, ou que lhe confira qualquer poder, é eloqüente em sua tentativa de fazer com que o candidato ouça. (p. 176)

A cerimônia pretende formar a audição, chamar a atenção e despertar o entendimento de uma criança para todo o seu período de crescimento. (p. 176)

Roupas são investimentos a crédito para uma vida inteira: nomes são fruto de vidas completamente vividas. É nesses espaços de tempo que devemos buscar os processos originais da linguagem. (p. 177)

O ritual criou a durabilidade da linguagem. (p. 177)

A linguagem articulada humana irrompe onde homens são iniciados ou sepultados, porque tais ordenações de uma vida inteira são as verdadeiras tarefas com que se deparam os que tentam pôr fim à guerra, à depressão, à degeneração ou à revolução. (p. 177)

Um ritual não pode ser levado muito a sério nem será formalmente bom onde seja aplicado a expectativas breves. Aí ele se torna humorístico. (p. 177)

Na atual realidade histórica, os rituais são por toda a parte desvalorizados por se voltarem cada vez mais para curtos períodos de vida. (p. 177)

As palavras são como machados e espadas antes que o humor lhes tire o gume, pois o ritual verbal varre longos corredores de tempo para o futuro e para o passado, a fim de que a vida de um homem não permaneça subumana. (p. 177-8)

É uma lei: o homem não se torna humano sem que determinada organização física e indeterminado órgão social - ou o corpo do homem e seu caráter temporal - sejam integrados numa unidade. (p. 178)

O ritual, que consiste em cerimonial e memória nomeada, é o processo dessa integração. (p. 178)

Por isso ritual é medido em geração; a medida da perfeição de um ritual é o se poder de atar várias gerações de homens. (p. 178)

Para interpretar o ritual primário, talvez seja melhor concentrarmo-nos na questão do poder. Abrir corredores de trinta ou quarenta anos em direção ao passado e ao futuro requer poder. (p. 178)

Requer muito mais poder do que aquele que atribuímos à fala. (p. 178)

A filosofia vulgar da linguagem diz-nos que a fala comunica o pensamento de um homem a outro. (p. 178)

Se o objetivo da fala fosse transmitir idéias, ela necessitaria de poder mínimo. E é verdade: os falantes moderno balbuciam quase sem mudar de tom. (p. 178)

Mas sua filosofia da linguagem interpreta tipos secundários de linguagem; nem sequer tenta interpretar o caráter monumental dos nomes. Acredita, com Kant, que "tempo" é uma forma de pensamento. (p. 178)

A história e nossa própria e calamitosa experiência provam que o tempo é criado pela linguagem. (p. 178)

Todos podemos estar no tempo antes de falar. (p. 178-9)

Mas não temos o tempo senão porque podemos distinguir um presente entre o passado e o futuro. (p. 179)

Esse presente não existe em lugar algum da natureza, mas podemos criá-lo unindo nossas diversas vidas num só nome e reunindo-as num grande reservatório de sobretempo. (p. 179)

O homem tem tanto tempo quanto tenha nomes sob os quais gerações inteiras estejam dispostas a cooperar ao longo das eras. (p. 179)

Desfrutamos um presente quando damos a mão a pessoas de outros tempos, passado e futuro, num só espírito. (p. 179)

Quanto mais honramos os nomes do passado, mais reclamamos um longo futuro. (p. 179)

Essa é a essência da vida consciente, vida capaz de articular tempos e lugares entre passado e futuro de forma tão convincente, que recebemos direção e orientação claras quanto a nosso lugar no tempo. (p. 179)

A língua que é "materna" através dos milênios e o "cabeça", que é o modo de chamar o chefe de geração em geração, são expressões simbólicas. (p. 180)

A língua materna não é senão a experiência de um grupo que recebe e aceita nomes acima de si mesmo mediante um processo criativo e atual, investido num cabeça. (p. 180)

Em nossa própria época, a morte e o artificialismo transformam a linguagem numa arena de interesses políticos e econômicos. (p. 181)

O primeiro resultado de nossa análise é que cabeças e línguas eram compelidos a falar em nome de heróis sepultos. (p. 181)

Os cabeças conferiam cerimoniosamente a autoridade de nomeadores àqueles que a vestiam como seu corpo social. (p. 181)

Toda liberdade é poder para o futuro. A necessidade de criar sucessores para os líderes criou o direito à liberdade. (p. 181)

Queremos dizer que, enfim, todos alcançaram a liberdade dos sacerdotes e reis. (p. 181)

A democracia, é fato, busca estender a todos a liberdade dos mais altos cargos, os de sacerdotes e reis, de oradores e escribas. Não obstante, sem os graus de sacerdotes e de rei, na haveria para ser estendido. (p. 181-2)

Não será que por muito tempo o clamor por um emprego virá em primeiro lugar, já que ele é na verdade o clamor por alguém que me diga o que fazer por um salário? (p. 182)

Nós, que chegamos a reconhecer que todos os homens podem agir como sacerdotes e reis, teremos um longo caminho a percorrer antes que a economia do futuro tenha um lugar para o imperativo: "Todo o homem é um chefe!" Deveríamos acalentar isso como objetivo supremo. (p. 182)

O poder sobre o futuro está nas mãos daqueles sujeitos que podem dar emprego, e isso significa ordens. (p. 183)

Essa é, evidentemente, uma das razões para aprender a pensar mais corretamente acerca da linguagem e do vestuário na atual conjuntura. Pois é sempre o poder sobre o futuro o que se confere mediante o vestuário e a linguagem. (p. 183)

O que criava o herdeiro era sua aceitação formal pelo pai e não seu nascimento. (p. 184)

A linguagem emerge da sutura entre morte e nascimento. (p. 184)

O realismo da linguagem consiste em que ela vem após as obscuridades da vida comum e do sofrimento pessoal. (p. 184)

A história de todas as leis faz-nos parecer correta a nossa interpretação do intervalo entre a morte e o nascimento. (p. 184)

A primeira e, originalmente, única lei é a lei da sucessão. (p. 184)

A distinção entre o código penal e o civil funda-se na diferença entre a morte violenta e a morte natural. (p. 184)

Em quase todas as línguas, a queixa em juízo por uma morte violenta e o planctus, luto formal por morte natural, são chamados por nomes idênticos ou parecidos. (p. 184)

Quase todas as civilizações não-cristãs preservam os sinais da irrupção da queixa legal e formal a partir de uivos e gritos naturais e animais. (p. 184)

OBS.: CRISE MIMÉTICA

...o aparecimento da ordem a partir do caos, da forma a partir da confusão, pode ser revivido todas as vezes que se executa o ritual. (p. 185)

A situação negativa anterior torna-se parte do ritual, para que a solução positiva que se segue não fique incompreensível. (p. 185)

Rituais cuja pré-história, cuja "irritação" deixa de ser compreensível não nos tocam. (p. 185)

A reverência pelo poder humano de falar depende do nosso medo de submergir no estado animal. (p. 185)

...representar o processo que vai do grito à fala, executando os procedimentos pelos quais essa emergência é alcançada. (p. 185)

O espírito procede, por um lado, na interação entre mulheres e crianças e, por outro, na interação dos homens. Esse é o significado do termo "processo do espírito". (p. 185)

A emergência é um processo natural, e na natureza o indivíduo e o meio ambiente são vistos como entidades separadas. (p. 186)

No ritual prevalece a atitude oposta: os gritos são tansubstanciados, e a fala procede das origens mesmas: dos sons que compunham gritos. (p. 186)

Por milhares de anos, quando se cometia uma assassínio, exigiu-se que os parentes do morto levassem o corpo ante os juízes. Na corte, a queixa era feita tanto pela lamentação das mulheres como pelas acusações verbais do parente mais próximo. (p. 186)

Esse dualismo tornou transparente o concentus [harmonia, conformidade] entre nossa natureza animal e nossa história formal. (p. 186)

O homem primeiro gritou e depois falou, porque falar era o primeiro passo longe do grito. (p. 186)

Choros e gritos eram inseridos na cerimônia como medida da linguagem articulada. Tal interação na religião entre grito e nome, entre mulher e homem, representou a reconciliação entre nossa natureza animal e nossa natureza intelectual. (p. 186)

Paulo tornou a linguagem formal acessível ás mulheres... (p. 186)

O ritual tribal comunicava religião, lei, escrita e fala. O ritual criou o tempo - como passado e futuro - , o poder - como liberdade e sucessão -, a ordem - como título e nome - , a expectativa - como cerimônia e vestuário - , a tradição - como canto fúnebre e mito do herói. O ritual ligo o homem ao tempo, e isso é expresso pelo termo "religião" (p. 187-8)

...os trivia das línguas, literatura e lógica...(p. 217)

Línguas estrangeiras deveriam ser aprendidas, em primeiro lugar, como línguas elevadas, antes que se enfatizasse o uso coloquial. Canções, leis e salmos constituem bom ponto de partida. (p. 217)

...a descoberta de que o discurso racional pressupõe o discurso ritualístico. Descobrimos que a lógica de nossas escolas cobria, na melhor das hipóteses, um quarto do território real da lógica. (p. 218)

Antes de qualquer coisa possa ser computada, calculada, observada ou testada, ela tem de ter sido algo nomeado, com que se falou, com que se operou, algo com que se teve alguma experiência. (p. 218)

Com suas generalizações e numerais, a ciência priva as coisas de nomes. Mas não pode fazer isso senão com coisas que previamente se revestiram de nomes. (p. 218)

A ciência é uma aproximação secundária e abstrata à realidade. (p. 218)

Devemos estar imersos e enraizados num universo nomeado, para depois dele nos podermos emancipar pela ciência. (p. 218)

Esta breve investigação das novas vias mostra que, dentre as sete artes liberais, o chamado trivium - gramática, retórica e lógica - é o que mais se beneficia de nossos estudos. (p. 219)

Nossa abordagem eleva as "trivialidades" desses três campos introdutórios do saber à estatura de ciências plenamente desenvolvidas. (p. 219)

Elas tornar-se-ão as grandes ciências do futuro. (p. 219)

Tal ascensão ao poder teve um paralelo quatrocentos anos atrás, quando o chamado quadrivium (aritmética, geometria, música, astronomia) e o trivium (gramática, retórica, lógica) não passavam de meros serviçais e ferramentas auxiliares. (p. 219)

É preciso substituir a faculdade de direito por todo um conjunto de ciências sociais, incluindo uma acerca de nossa própria consciência. (p. 219)

A consciência não funciona senão quando a mente responde a imperativos e utiliza metáforas e símbolos. (p. 219)

Até os cientistas devem falar com confiança e segurança antes de poder pensar analiticamente. (p. 219)

Que é um símbolo? Que é uma metáfora? Constituem o pão nosso de cada dia? Símbolos são fala cristalizada. E a fala cristaliza-se em símbolos porque, em seu estado criativo, é metafórica. Símbolos e metáforas relacionam-se como a juventude e a velhice da linguagem. (p. 219-20)

 Até os símbolos dos lógicos a provam... são fala cristalizada. [...] A fala deve levar aos símbolos. Os símbolos resultam da fala. "Ouvimos" os símbolos como se fossem fala. "Olhamos" para a fala porque ela nos levará aos símbolos. (p. 220)

Os símbolos representam o estado "real" ou principal de uma pessoa a despeito de quais aparências. Representam meu melhor eu em sua ausência... (p. 221)

Isso nos dá uma pista dos autênticos lugares dos símbolos. Eles sucedem a atos de investidura, por meio dos quais se tornam indeléveis e importantes elementos da realidade. (p. 221)

Um ritual antecede ao símbolo. Se nenhum ritual investiu a pessoa, o símbolo não passa de mero brinquedo frívolo. (p. 221) (OBS. tem uma nota de rodapé interessante)

Quanto mais seriamente o ritual é "falado", mais o símbolo se fixa. Não há, porém, símbolo sem fala. (p. 222)

Os símbolos reiteram o fato de que a fala visa à verdade de longo alcance e de que, para tanto, ela procura substituir as aparências do mundo visível por uma ordem mais elevada,  melhor ou mais penetrante. (p. 222)

Porque o símbolo mostra melhor sua eficiência após o término da cerimônia de investidura, e concebem-se as cerimônias de investidura precisamente como um poder capaz de criar um segundo mundo. (p. 222)

A linguagem humana é metafórica por definição. Nada nela é o que é. Tudo significa algo que, em sim mesmo, não é. (p. 222)

Necessitamos que alguém nos dirija a palavra, senão enlouquecemos ou adoecemos. (p. 231)

A primeira condição para a saúde é que alguém fale conosco co sinceridade de propósitos, como se fôssemos únicos. (p. 231)

A relação entre a saúde e o ato de falarem conosco com o poder de nosso "vocativo" único torna imperiosa a resistência a que a educação seja monopólio do Estado. (p. 231)

A posse é algo terrível, mas é também a fonte de grandeza, quanto tomada no verdadeiro e genuíno espírito de exclusividade. (p. 233)

Esse espírito consiste simplesmente no seguinte conhecimento: "Ninguém é tão querido", "Eu sou a única pessoa no mundo", "Esta é a única criança no mundo". (p. 233)

Quem quer que tenha tal espírito de exclusividade para com outro ser humano tem uma qualidade, uma qualidade "gramatical" que ninguém mais tem e que indispensável - a qualidade de dar ordens, de dizer: escuta, vem, come, ama-me, vai dormir. (p. 233)

É derivado da maternidade ou da paternidade genuínas. O direito de dar ordens depende da qualidade de pôr aqueles a quem se dirigem essas ordens acima de tudo o mais. (p. 234)

A pessoa que nunca foge à responsabilidade, que sabe que não pode fugir à responsabilidade, adquire o direito de dar ordens. (p. 234)

As mães não se tornam conscientes da maternidade senão na experiência de dar ordens, cantar canções e contar histórias aos filhos. E as crianças tornam-se filhos e filhas graças à voz da mãe. (p. 234)

Toda a potência original do ritual da fala se encontra na relação entre mãe e filho. (p. 234)

 E sabemos que a potência de qualquer imperativo depende de que o falante se lance para fora de si mesmo na ordem que dá, e de que o ouvinte seja lançado à ação. Ambos então se direcionam para fora, ou, como costumamos dizer, não são autocentrados. (p. 234)

No chamado da mãe "Vem, Johnny", a invocação "Johnny" projeta para fora o eu da mãe, e a forma verbal "vem" faz vir para fora o do filho. Ambos se entregam a uma interação mútua. (p. 234)

O papel do vocativo é tão pouco entendido hoje quanto o do imperativo. (p. 235)

Qualquer vocativo mostra a fala em seu estádio criativo, porque a princípio falamos não de coisas mortas, mas para pessoas vivas. (p. 235)

O Crátilo de Platão é um triste modelo dessa abordagem chã de linguagem. (p. 235)

O falante projeta-se a si mesmo para eles. Encontramo-nos em nossos vocativos. Assim como a mãe se torna mãe chamando o nome do filho, nós nos tornamos oficiais ao chamar nossos soldados, chefes ao chamar nossos operários, professor ao chamar nossos alunos. (p. 236)

Os vocativos fazem algo aos falantes: trazem-nos para fora. Os vocativos são nossa fé e vêm antes dos nominativos, não importa o que digam os gramáticos. (p. 236)

Quem está pronto para abandonar-se a si mesmo e depositar toda a sua fé no nome de outra pessoa é trazido para fora e para cima de si mesmo, e se torna depositário, líder e representante do nome invocado. (p. 237)

...a taça temporal de expectativa e cumprimento. (p. 238)

Há um termo algo batido para designar essa forma da saúde do falante; chamamo-la "responsabilidade". Mas o termo perdeu sua pujança por ter sido usado de maneira demasiado ativa. (p. 238)

"Vem, Johnny!" é um responsório em que mãe e filho se perdem a si mesmo: ela lançando todo o seu peso sobre o vocativo; ele permitindo que o imperativo se acomode nele, o paciente da ação, como num "escabelo". Ninguém pode ser "responsável" sem resposta; seria uma existência por demais unilateral. (p. 238)

A gramática moderna faz vista grossa ao fato de que qualquer vida é ambivalente, oscilante entre o ativo e o passivo. [...] Eles e ele são concomitantemente ativos e passivos. E essa é a norma humana. (p. 239)

Qualquer grupo feliz e afável, sem autoquestionamento nem autoconsciência grupal, vive numa voz média na qual a divisão entre ativo e passivo permanece subdesenvolvida e é menos importante que o responsório entre pessoas que acreditam em sua solidariedade única. (p. 239)

O casamento seria impossível sem tal correlação entre vocativo e imperativo. O falante vive no vocativo; o ouvinte vem à vida no imperativo. (p. 239)

Eugen Rosenstock-Huessy (1888-1973) A origem da linguagem; edição e notas Olavo de Carvalho e Carlos Nougué: introdução, Harold M. Sathmer e Michael Gorman-Thelen: tradução Pedro Sette Câmara, Marcelo de Polli Bezerra, Márcia Xavier de Brito e Maria Inêz Panzoldo de Carvalho. - Rio de Janeiro: Record, 2002.

FICHAMENTO: A BIOÉTICA É DE MÁ-FÉ?

Jean-Paul Sartre, o filósofo do relativismo e da má-fé


Prefácio

“A má-fé é mentira, mas mentira para si mesmo, explica Sartre.

Trata-se, na má-fé, de ‘mascarar uma verdade desagradável ou de apresentar como verdade um erro agradável. A má-fé, portanto, tem a estrutura da mentira. Mas o que muda tudo é que na má-fé eu mascaro a verdade para mim mesmo. A dualidade do enganador e do enganado não existe aqui [...] aquele ao qual se mente e aquele que mente são uma única e mesma pessoa, o que significa que devo saber, enquanto enganador, a verdade que me é mascarada enquanto sou enganado’. Assim se apresenta segundo Sartre, o paradoxo da má-fé. (p. 07)

“[...] ‘uma certa arte de formar conceitos contraditórios, isto é, que unem em si uma idéia e a negação dessa idéia’” (p. 08).

LECOURT, Dominique. Erros agradáveis, verdades desagradáveis.

“A bioética apresenta-se primeiramente com um conjunto mais ou menos bem amarrado de discursos de alerta sobre as perspectivas abertas pelas pesquisas biomédicas, de algumas interrogações metafísicas mais ou menos conhecidas sobre a pessoa humana combinadas com a recordação sonora de alguns imperativos pretensamente categóricos” (p. 09)

“A sistematização que está ocorrendo em escala internacional tem o grande mérito de esclarecer essa máscara com uma luz razoavelmente direta” (p. 11)

“[...] a bioética tende a apresentar-se como o viés pelo qual o direito poderia se fundar em uma ética de valor universal. Realmente, seria muito agradável ter resolvido (até que enfim!) desse modo a questão filosófica lancinante que o Ocidente moderno até agora não tinha conseguido solucionar: a de encontrar uma garantia absoluta (atemporal) para seus sistemas jurídicos.”

“[...] a ética constitui o discurso que enuncia os princípios da compatibilidade geral entre esses sistemas em um dado momento. A ética não é primeira, mas a segunda em relação ao direito, assim como em relação aos outros sistemas. Mesmo que ela tenha filosoficamente o discurso do fundamento para unifica-los e para que os indivíduos se tornem acessíveis às prescrições e proibições da moral que é retirada desses discursos. Prescrições e proibições que tomam esses indivíduos pelo corpo (o sexo e os prazeres) com o fim de dar forma a seus modos de existir como pessoas (no âmbito social)” (p. 11-12)

“As questões ditas de bioéticas não deverão ser tomadas, ao contrário, como convites à revisão das próprias bases de nossa concepção dos ‘direitos humanos’, particularmente se nos interrogarmos sobre as consequências imaginárias do poder dos sistemas normativos sobre os membros de toda sociedade?” (p. 14)

MEMMI, Dominique. O que fazer com o corpo hoje?

“’Em toda sociedade, o corpo se encontra no interior de poderes muito compactos, que lhe impõem coações, proibições, obrigações’, diz Michel Foucault”. Como se exerce esse controle hoje? Na recusa do caráter arbitrário e imperativo dessas normas. Isso, ao menos, é o que parece ilustrar o funcionamento do primeiro comitê de ‘especialistas’ criado na França, em 1983, o Comité Consultantif National d’Éthique.” (p. 15)

“A reatualização do termo ‘ética’, que joga com a ambiguidade semântica entre as noções de moral da ciência e de ciência da moral, assinala essa preocupação de distinção intelectual. Uma análise dos 34 pareceres e dos 3 relatórios produzidos pelo Comitê desde a sua criação até o seu décimo aniversário” (p. 15)

“A recusa de toda ‘apropriação disciplinar’ da bioética, a reinvindicação constante da interdisciplinaridade, mas também a rejeição do termo de ‘especialista em ética’, isto é, de toda profissionalização desse empreendimento de fabricação de normas sobre os usos do corpo, eis outro topoi próprio dos meios da bioética, sinônimo da ausência de certeza nesses assuntos” (p. 17)

“Essa auto-restrição generalizada é acompanhada por uma valorização moralizante dessas mutilações. Louva-se a humildade do Comitê, sua retidão ou a grandeza de sua renúncia. Os membros do Comitê também se mostram perturbados com perguntas sobre os efeitos concretos de seu trabalho ali” (p. 18)

“[...] nossos interlocutores ficaram literalmente sem ter o que falar diante de qualquer pergunta precisa sobre esse assunto” (p. 19)

“Tudo se passa então como se os especialistas em ética estivessem socialmente proibidos, no exercício de sua função, de ter, além de uma opinião ‘na primeira pessoa’, um pensamento que seja da ordem do ‘sim’ ou do ‘não’, um pensamento eficaz ou autoritário” (p. 19-20)

“A autolimitação consentida do próprio poder por parte dos especialistas em ética, tanto dentro como fora do Comitê, é em parte ilusória” (p. 20)

“O silêncio prolongado, a perplexidade nas entrevistas dos especialistas em reprodução assistida, como a renúncia entusiasmada dos membros do Comitê, traduzem de fatos os limites da autorização social de que os especialistas em ética dispõem, e mais que isso: as limitações de legitimidade, que hoje abarcam a imposição de normas referentes ao corpo humano” (p. 21-22)

“Uma regulação por meio de palavras

E, contudo, o que ele fazem não é inexpressivo. ‘Valores’, ‘prudência’, ‘ética’: o que choca aqui é a intensidade do esforço investido na fabricação de palavras” (p. 22)

“Em que consistiu de fato o trabalho efetivo do Comitê? Em não dar razão nem aos comerciantes nem aos padres” (p. 22)

[...] em 1975, aborto foi introduzido na França, foi preciso inventar uma delimitação de seus usos possíveis que pudesse tranquilizar as pessoas preocupadas com a vida prometida no embrião. Sem, em 1984, a invenção da noção de ‘pessoa humana potencial’ representou uma operação tão importante no Comitê, é porque ela representa a versão científica, conceitual, dessa busca persistente de compromisso [...] O direito havia inventado, no início dos anos 1950, no momento da regulamentação das doações de sangue, uma categoria intermediária entre a pessoa e a coisa: ‘a substância de origem humana’” (p. 23)

“[...] O que está em jogo é evidente: encontrar entre duas posições vistas pelos eticistas contemporâneos como impossíveis, a que defendo que o corpo é um ‘aglomerado de células’ infinitamente manipulável e a que defende que ele é intocável, dependente somente da vontade da natureza ou de Deus: ‘Eu estava de acordo com a idéia de pessoa humana potencial. Isso permite manter a interrupção voluntária da gravidez e, ao mesmo tempo proteger o embrião. Felizmente, a questão do momento em que o embrião se torna pessoa não foi decidida (Soc. 59). Em Suma, para anular os católicos e, mais ainda, os humanistas leigos e os comerciantes era preciso inventar uma sacralidade não-metafísica” (p. 23-24)

“O mesmo foi feito para garantir-se contra os comerciantes. Dos 34 pareceres gerados pelo Comitê durante a década de 1983-1993 emerge a preocupação constante de afastar do corpo toda ameaça de redução a mercadoria. Isso começa cedo. Dois dos três primeiro pareceres (pareceres n. 1 e 3) invoncam o princípio de não-comercialização do corpo humano. (p. 24)

“Aversão ao corpo mercantil, portanto, mas sem retorno resoluto ao sagrado tradicional [...] uma posição discreta a favor da ciência e da transformação dos costumes provocada por sua evolução. O conjunto do dispositivo ético se parece com uma operação de dessacralização – muito controlada – dos corpos em benefício dos novos usos sociais e científicos que deles são feitos” (p. 25)

LECOURT, Dominique;A bioética é de má-fé? Tradução de Nicolás Nyimi Campanário, Edições Loyola, 2002

FICHAMENTO: FIÉIS ÀS NOSSAS EMOÇÕES DE ROBERT C. SOLOMON



De fato, paradoxalmente, sugeriria que as emoções são até mais centrais à racionalidade do que a razão e o raciocínio, porque sem elas (como argumentou David Hume, alguns séculos atrás, no Tratado sobre a natureza humana) a razão não tem objetivo ou foco. A recente pesquisa psiquiátrica e neurológica tende a confirmar isso. (p. 20-1)

As emoções de que me ocuparei neste livro não serão, portanto, as súbitas "explosões" que tanto fascinam os neurocientistas e alguns psicólogos, mas as emoções e obsessões de longo prazo que nos têm fascinado através da história... (p. 21)

...emoções são processos que por sua própria natureza, levam tempo e podem, de fato, continuar ininterruptamente. Não são necessariamente conscientes. (p. 22)

Um grande problema é nossa tendência a pensar em uma emoção como um evento psicológico separado. (p. 22)

Uma emoção é um processo complexo que engloba vários e diferentes aspectos da vida de uma pessoa, incluindo interações e relações com outras pessoas, bem como seu bem-estar físico, ações, gestos, expressões, sentimentos, pensamentos e experiências semelhantes. (p. 22)

...gostaria de iniciar com a opinião - hesitante e irônica que posse ser - de que nós não sabemos o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa. (p. 24)

Temos que aprender como reconhecer nossas emoções, como lidar com elas, como usá-las, e isso é um conjunto de habilidades que a maioria de nós reuniu apenas acidentalmente, sem pensar e de forma inadequada. (p. 24)

Há em andamento sérios debates sobre se as emoções formam uma classe unificada e se são "realmente" fisiológicas, como alguns argumentariam, ou se assemelham-se mais a julgamentos de valor ou tendências comportamentais. No entanto, não é como se não tivéssemos ideia do que estamos examinando aqui. Entretanto, compreender é muito mais do que meramente ser capaz de concordar a respeito de um assunto. (p. 24-5)

Baseado em Sartre, argumentarei que nossas emoções são estratégias por meio das quais nos tornamos felizes ou infelizes e que dão significado a nossas vidas. Ao cultivar nossas emoções, determinamos as virtudes e os vícios que nos fazem pessoas melhores ou piores. (p. 26)

vivemos em nossas emoções e por meio delas (p. 26)

Se alguém se importa com alguma coisa - e é virtualmente impossível imaginar alguém que com nada se importe - , esse alguém terá emoções. (p. 27)

...emoção básica é aquela essencialmente neurológica (ou melhor, neuro-hormonal-muscular). Consiste numa resposta complexa mais ou menos fixa, uma síndrome que envolve certas partes do cérebro e dos sistema endócrino e características expressões comportamentais hard-wiredi, especialmente faciais. (p. 34)

...as emoções são sentimentos, no sentido de que são tipicamente experimentadas. (p. 35)

...uma emoção é (pelo menos em grande parte) uma experiência (um "sentimento"), mas não deve ser, de modo algum, identificada com algo semelhante a uma sensação ("sentimento" nesse outro sentido. (p. 35)

A raiva (como todas as emoções) é um fenômeno cognitivo e impregnado de valores, não apenas um estado ou evento momentâneo, mas um processo complexo que prossegue através do tempo e pode durar muito. Envolve necessariamente sentimento e julgamento, bem como fisiologia, e, às vezes, especialmente depois de certo período, pode haver pouca resposta fisiológica  evidente. (p. 37)

É uma forma de interagir com outra pessoa (situação ou tarefa) e um modo de situar-se no mundo. (p. 41)

...uma emoção é um engajamento autoconsciente no mundo e, para compreender a raiva, temos de compreender exatamente que tipo de engajamento é esse. (p. 41)

...quero adotar uma perspectiva existencialista e falar sobre o que fazemos com nossas emoções, e não apenas sobre o que as causa. (p. 43)

...com frequência, as emoções são hábitos, até certo ponto aprendidos, mas também fruto de prática e repetição. (p. 44)

Hábitos emocionais são produto de vias bastante usadas e dependências químicas bem-estabelecidas. (p. 44)

...a ideia de que as emoções são estratégias sugere que a perspectiva em que melhor aprendemos sobre as emoções é na segunda pessoa, na interação e troca interpessoais. Portanto, a raiva (e outras emoções) está menos "na" mente (nem corpo ou no cérebro) e mais do lado de fora, no espaço social e interpessoal. (p. 45)

...a raiva é uma emoção literalmente julgadora ou magistral. (p. 48)

Na raiva, o indivíduo coloca-se no papel superior de juiz e jurado. (p. 48)

...na raiva, o outro é levado a julgamento. Ainda mais poderosa e mais julgadora é a indignação moral, uma emoção em que se acusa o outro não apenas em benefício próprio, mas em nome de um princípio moral. (p. 48)

A vantagem estratégica desse esquema deveria ser óbvia. Emergindo de uma situação em que ferida, ofendida ou humilhada, a pessoa se reposiciona como superior, até virtuosa. É uma posição psicológica poderosa. É também bastante presunçosa, motivo pelo qual a tradição cristã, justificadamente, faz advertências a respeito. (p. 48)

Não há ocasiões em que a raiva é perfeitamente razoável? (p. 48)

...a raiva pode ser, muitas vezes, uma resposta razoável e racional à adversidade. (p. 49)

...a ideia de que a raiva é uma forma de engajamento no mundo. Ficamos com raiva de alguém, alguma coisa. Consequentemente, a questão importante é se a raiva está corretamente dirigida, se escolheu o objeto certo (o ofensor) e se é justificada pela situação. (A pessoa-alvo pode ser de fato o ofensor, mas a ofensa ser tão insignificante que não justifica a raiva.) Se tanto o objeto está correto como se justifica a seriedade da acusação, então a raiva é racional e razoável. (p. 49)

Porém, se a raiva também pode ser uma estratégia,  existe uma consideração adicional, além da precisão e da justiça que governa a racionalidade da raiva. Em outras palavras, ficar com raiva serve aos objetivos finais da pessoa?. (p. 50)

...a raiva é sensata dependendo de se encaixar ou não nos objetivos de longo prazo da pessoa.. (p. 50)

O que aprendemos, então? Que a raiva não é apenas um sentimento autocontido, mas um engajamento com outras pessoas e com o mundo, que pode ser mais ou menos justificado, mais ou menos primitivo ou refinado, mais ou menos gratificante e mais ou menos adequado moralmente. Como estratégia, não é apenas algo que nos acontece, mas algo que colocamos em ação, quer refletidamente, quer não. Isso levanta uma última questão que quero deixar pendente ao longo destes capítulos iniciais. Às vezes, talvez com frequência, aquilo que fazemos não é imediatamente óbvio para nós. Grande parte de nossa vida emocional é, como insistiu Freud, inconsciente.. (p. 52-3)

Considero o inconsciente não apenas como uma profunda descoberta psicanalítica, mas como um dado fundamental. As pessoas nem sempre sabem quando estão com raiva e nem sempre sabem o que sentem.. (p. 53)

Robert C. Solomon, Fiéis às nossas emoções: o que elas realmente nos dizem; tradução de Miriam Gabaglia de Pontes Medeiros. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

FICHAMENTO: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

EM FAMÍLIA
Sérgio Buarque de Hollanda posa com cinco dos sete filhos.


O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. (p. 45)

OBS.: O autor denota uma aversão ao fenômeno familiar classificando-o como uma entidade formada por negativas "vontades particularistas".

Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição . (p. 45)

OBS.: a tese da descontinuidade ecoa o manifesto do partido comunista, tenho que fazer a referência.

A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que teve seus adeptos mais entusiastas durante o século XIX. (p. 45)

OBS.: O autor não lembra que a família é um fenômeno de todas as épocas, não só do tempo historicista.

OBS.: Me ocorre que a perspectiva cartesiana, de dividir o problema em suas partes e tratá-los em compartimentos estanques ocorreu na análise do autor, pois ele considera o Estado um fenômeno racional e abstrato em oposição à família como fenômeno concreto e emocional, não se leva em consideração a integralidade do fenômeno humano na qual a pessoa é a interseção de todos os fenômenos sociais.

A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. (p. 45)

OBS.: Qual essência?

Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. (p. 45)

OBS.: A contrario sensu a pessoa no âmbito familiar não tem nenhum dos predicados acima citados?

OBS.: A família é tratada como um bode expiatório para que haja a sacralização do sacrificador estatal.

...um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo, e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. (p. 45)

OBS.: O triunfo da idéia sobre a matéria, não há melhor descrição do idealismo hegeliano, catar uma referência.

A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência. (p. 45)

OBS.: A família é transcendida pelo Estado? A pessoa no âmbito da família é uma escrava que deve ter sua condição abolida pelo agente estatal? A família é escravidão e o Estado é libertação?

Creonte encarna a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que é a família. (p. 46)

OBS.: A idéia em luta contra a realidade...

O conflito entre Antígona e Creonte é de todas as épocas e preserva-se sua veemência ainda em nossos dias. Em todas as culturas, o processo pelo qual a lei geral suplanta a lei particular faz-se acompanhar de crises mais ou menos graves e prolongadas, que podem afetar profundamente a estrutura da sociedade. O estudo dessas crises constitui um dos temas fundamentais da história social. (p. 46)

OBS.: Pois é! Neste momento que tenho que tratar do fator que é de "todas as épocas" e que ocorre em "todas as culturas", o processo de transição da crise mimética que engendra bodes expiatórios, que criam os elementos dos ritos, que forjam os mitos, que com o avanço civilizacional, e, principalmente, a partir da revelação cristã, criam as condições de possibilidade de ser estruturada uma mediação externa que nega a sacralidade da violência e eleva a vítima da condição de bode expiatório sacrificial para a condição de vítima que deve ser protegida e preservada numa atitude social que nega validade à violência mitológica, mas aceita a utilização de uma violência racionalizada pela regra jurídica.

OBS.: O autor elege a família como bode expiatório, para sacralizar o Estado, então Sérgio Buarque de Holanda cria mitos ao tratar do homem cordial, o mito da cordialidade do brasileiro como obstáculo à construção de um Estado burocrático à moda weberiana, assim sendo, o homem cordial deve ser sacrificado.

...famílias "retardatárias", concentradas em si mesmas e obedientes ao velho ideal que mandava educarem-se os filhos apenas para o círculo doméstico. (p. 47)

OBS.: Ou seja, deve-se abolir a educação familiar...

Segundo alguns pedagogos  e psicólogos de nossos dias, a educação familiar deve ser apenas uma espécie de propedêutica da vida na sociedade, fora da família. (p. 47)

OBS.: O autor cita a nova pedagogia que nascia no início do século XX, que se propunha promover a abolição da velha ordem familiar.

...a separar o indivíduo da comunidade doméstica, a libertá-lo, por assim dizer, das "virtudes" familiares. (p. 48)

...a ideia de família - e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal - tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições à formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. (p. 48)

 A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos. (p. 48-9)

OBS.: Quais são estes princípios? São liberais? Ou haverá outros princípios antifamiliares envolvidos?

E não haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, contribuíram largamente para a formação de homens públicos capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes arrancados aos seus meios provinciais e rurais de "viver por si", libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros, quase tanto como aos conhecimentos que ministravam as faculdades. (p. 49)

OBS.: Processo iniciático?

Nem sempre, é certo, as novas experiências bastavam para apagar neles o vinco doméstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto às exigências de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez mais igualitária. (p. 49-50)

 ...os âmbitos familiares excessivamente estreitos e exigentes...verdadeiras escolas de inadaptados e até psicopatas. (p. 50)

OBS.: Para o autor a família é a escola do crime.

No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização - que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas para a esfera de influência das cidades - ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje. (p. 51)

...distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. (p. 51)

Para o funcionário "patrimonial", a própria gestão política apresenta-se como um assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede com o verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. (p. 51)

Falta a tudo a ordenação impessoal que caracterizava a vida no Estado burocrático. (p. 51)

...o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. (p. 52)

...a esfera, por excelência, dos chamados "contratos primários", dos laços de sangue e de coração - está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas. (p. 52)

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o "homem cordial". (p. 52)

NOTA DE FIM Nº 06, p. 101-2: A expressão é do escritor Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicação Monterey. Não pareceria necessário reiterar o que já está implícito no texto, isto é, que a palavra "cordial" há de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e estritamente etimológico, se não tivesse sido interpretada em obra recente de autoria do sr. Cassiano Ricardo onde se fala no homem cordial dos aperitivos e das "cordiais saudações", "que são fechos de cartas tanto amáveis como agressivas", e se antepõe à cordialidade assim entendida o "capital sentimento" dos brasileiros, que será a bondade e até mesmo certa "técnica da bondade", "uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora". (p. 101)
Feito este esclarecimento e para melhor frisar a diferença, em verdade fundamental, entre as ideias sustentadas na referida obra e as sugestões que propõe o presente trabalho, cabe dizer que, pela expressão "cordialidade", se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas a que parece inclinar-se o sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falar em "bondade" ou em "homem bom". Cumpre ainda ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimento positivos de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos "grupos primários", cuja unidade, segundo observa o próprio eleborador do conceito, "não é somente de harmonia e amor". A amizade, desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimento privados ou íntimos, passa a ser, quando muito, belevolência, posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão do conceito. Assim como a inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade.[...] (p. 102)

Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo - ela pode exprimir-se em mandamentos  em sentenças. (p. 52)

Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse esta fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial  xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. (p. 53)

OBS.: O povo japonês é um exemplo perfeito de mediação externa a partir do sagrado, porque ritualista.

Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualística da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social, é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência - e isso se explica pelo fato da atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no "homem cordial": é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. (p. 53)

OBS.: O povo brasileiro é um exemplo de delicado equilíbrio de mediação interna que é precariamente suspenso pela mediação externa gerada pela hipocrisia individual da cordialidade.

Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual reservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. (p. 53)

Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supreracia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo. (p. 53)

No "homem cordial", a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. (p. 53)

...reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica... (p. 53)

Ela é antes um viver nos outros. (p. 53)

Nada mais significativo dessa aversão ao ritualismo social, que exige, por vezes, uma personalidade fortemente homogênea e equilibrada em todas as suas partes, do que a dificuldade em que se sentem, geralmente, os brasileiros, de uma referência prolongada ante um superior. (p. 54)

Nosso temperamento admite fórmulas de referência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar. (p. 54)

OBS.: Intimidade = cordialidade.

A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade. (p. 54)


E isso é tanto mais específico quanto se sabe do apego frequente dos portugueses, tão próximos de nós em tantos aspectos, aos títulos e sinais de reverência. (p. 54)
À mesma ordem de manifestações pertence certamente a tendência para a omissão do nome de família no tratamento social. (p. 54)


O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira... (p. 55)


...foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, "democrático", um culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso. (p. 55)


A exaltação dos valores cordiais e das formas concretas e sensíveis da religião, que no catolicismo tridentino parecem representar uma exigência do esforço de reconquista espiritual e da propaganda da fé perante a ofensiva da Reforma, encontraram entre nós um terreno de eleição e acomodaram-se bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento social. (p. 58)


Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta "terra remissa algo melancólica", que de falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo o ritualismo não nos é necessário. (p. 58-9)

OBS.: O ritual do ponto de visto do formalismo religioso e social é fraco em nossa cultura cordial, todavia, não pode existir sociedade sem algum nível de ritualística, então, o homem cordial pulveriza em nível intimista o ritual para suprimir o momentum da violência mimética, todavia, o aspecto cordial do comportamento brasileiro tem sido impactado pela descoberta do ritual da legalidade nos últimos tempos, então, não é a família que impossibilita a racionalidade de imperar na burocracia estatal, pois o ritual de cordialidade e intimidade criada pela família é a base para se construir a aceitação da autoridade da lei, pois a família, por mais emotivas que sejam suas relações, também, impõe um nível de autocontrole e racionalidade sentimento (CITAR AQUELE AUTOR QUE DESCREVE A RACIONALIDADE DO SENTIMENTO COMO ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA SOCIAL E EVOLUTIVA)

A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. (p. 59)

OBS.: Ou seja, a personalidade do brasileiro é rebelde à dominação social! O que é um ponto negativo para a proposta socialista burocrática e racional defendida pelo autor.

Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades. (p. 59)

OBS.: Neste momento temos uma descrição do comportamento mimético do brasileiro.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

JOGOS DE INFORMAÇÕES E ELEIÇÕES




Sobre esse jogo de informação e contrainformação na qual estamos imersos, creio que não devemos desperdiçar as oportunidades apresentadas, mesmo que sejam ilusórias ou incertas.

Trabalhemos com a hipótese que haja a desgraça de uma fraude eleitoral, nesta situação se nossa escolha foi a omissão, seja por anular o voto ou não votar, não teremos sequer meios testemunhais nem morais para legitimar o questionamento eficaz ou de protesto.

Por isso, fico no partido daqueles que insistem em "ficar de pé até o último homem", pois é mais constrangedora uma derrota por WO, e mesmo que haja o tal cenário de fraude creio que quem não se omitiu terá mais força moral e espiritual para prosseguir na lide.

Vide o caso dos infelizes venezuelanos que protestaram entregando todas as as armas eleitorais (votos) ao chavismo, com aquele ridículo ato de não participar das eleições.

PINCELADAS SOBRE A IDÉIA DE TEORIA E O EXEMPLO DO DIREITO




Teoria é meramente o conhecimento sobre uma lei (relações de causalidade) presente em fenômenos da realidade objetiva.

Não existe distinção objetiva entre teoria e prática, toda prática é a materialização de uma teoria, por mais que se tente escamotear o fundamento teórico de uma determinada aplicação prática, a própria prática é por si mesmo o testemunho de sua teoria subjacente.

Teoria é um nome genérico para definir um conjunto de normas de qualquer espécie, cuja descrição é verbalmente expressa.

O método de Hans Kelsen e sua hipótese da "norma hipotética fundamental" antecipou o estruturalismo, uma vez que este princípio fundamental da "teoria pura do direito" traduziu o conceito de "coisa em si" criado por Kant, que julga a realidade de um dado se restringe aos limites da percepção material, filosofia que foi transportada para a metodologia da ciência jurídica sob o nome de positivismo/normativismo.

O ensino jurídico confronta-se em seu dia-a-dia com o sofisma da distinção entre teoria e prática na aplicação de nossas leis, somos "teóricos" de palavras auto-referentes, esquecemos da realidade concreta e objetiva no "Mundo do Direito".

A teoria jurídica brasileira, e os textos legais e constitucionais produzidos segundo tal base, são fantasias da imaginação que buscam reformar a natureza humana conforme padrões que vão contra a realidade prática e o bom senso da vida cotidiana.

O que é um sofisma?

É nada mais que uma mentira habilidosamente disfarçada com a aparência da verdade, é o que se tem feito no STF ultimamente.

No presente, quando vemos o que fala e o que faz o STF, estamos assistindo à defesa teórica da moralidade e do bem comum em simultaneidade contraditória com a efetiva proteção prática do vício e do personalismo, que negam a igualdade perante a lei, é o Sofisma Triunfante Federal, que confunde a vontade de algumas autoridades judiciais com a própria "vontade da lei", é personalização do imperativo categórico kantiano, para justificar uma "coisa em si" impossível de ser explicada por esta forma de encarar a realidade.

A "coisa em si" é o termo misterioso que Kant criou para racionalizar o poder que impera sem justificativa e que na filosofia "normal" chamamos de "determinismo", e na política se traduz como "autoritarismo".

A "coisa em si" é o reino do irracional e do incognoscível para quem se esqueceu da essencial forma substancial do Ser.

A CERTEZA OBJETIVA ORIUNDA DA REALIDADE CONCRETA




Os sentidos podem ser eventualmente ilusórios , mas, certamente, na maior parte do tempo são exatos e precisos, ai de quem não acredita nos próprios olhos ao atravessar uma rua e fique filosofando sobre coisa em si que se aproxima a 100 Km/h.

A fé cega no criticismo subjetivista, inaugurado por Descartes e aperfeiçoado em grau máximo por Kant, Fichte e Hegel, é a condição prévia para que o marxismo seja considerado científico, é o sofisma absoluto do relativismo, não importa quantas vezes fracasse, continuará sendo considerado uma "hipótese científica".

Descartes criou o "Império da moda". 

A modernidade é a busca por novidades a qualquer custo, mesmo ao custo do bom gosto e do bom senso, e, por vezes, ao custo da própria sobrevivência da cultura ocidental.

A busca pelo conhecimento tem diversos métodos mas um único objetivo: 

A CERTEZA OBJETIVA ORIUNDA DA REALIDADE CONCRETA.

Afinal, somos seres concretos e objetivos, não podemos ser reduzidos ao pensamento, sob pena de apresentarmos sintomas esquizoides.

O discurso do método cartesiano, matematizante e materialista, quando considerado como a única forma de atender ao critério da certeza dentro de um pressuposto subjetivista, que adota o ceticismo em relação à realidade objetiva, nos encaminha para o empobrecimento da percepção da realidade, e para o reino em que somos equiparáveis a meras máquinas e julgados conforme nossas possíveis utilidades conforme o gosto arbitrário de quem dispõe de poder e/ou influência social, e, assim, bem vindos ao mundo contemporâneo e sua "modernidade", o reino da moda.

O ceticismo, que se configura na origem de qualquer criticismo, seja em suas origens clássicas, seja em sua versão moderna cartesiana, é uma forma deficiente de encarar o mundo, pois castra voluntariamente a percepção humana, ao considerar a eventual limitação do poder do conhecimento humano como um dado absoluto, não como apenas uma parte do problema da realidade.

Defendo o realismo ingênuo, ou realismo não-crítico, postulo que a realidade objetiva é o dado absoluto, diante do qual a percepção subjetiva promove os diversos graus de conhecimento relativo, e essa relatividade é oriunda de nossas limitações perceptivas meramente e demasiadamente humanas.