EM FAMÍLIA Sérgio Buarque de Hollanda posa com cinco dos sete filhos. |
O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. (p. 45)
OBS.: O autor denota uma aversão ao fenômeno familiar classificando-o como uma entidade formada por negativas "vontades particularistas".
Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição . (p. 45)
OBS.: a tese da descontinuidade ecoa o manifesto do partido comunista, tenho que fazer a referência.
A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que teve seus adeptos mais entusiastas durante o século XIX. (p. 45)
OBS.: O autor não lembra que a família é um fenômeno de todas as épocas, não só do tempo historicista.
OBS.: Me ocorre que a perspectiva cartesiana, de dividir o problema em suas partes e tratá-los em compartimentos estanques ocorreu na análise do autor, pois ele considera o Estado um fenômeno racional e abstrato em oposição à família como fenômeno concreto e emocional, não se leva em consideração a integralidade do fenômeno humano na qual a pessoa é a interseção de todos os fenômenos sociais.
A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. (p. 45)
OBS.: Qual essência?
Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. (p. 45)
OBS.: A contrario sensu a pessoa no âmbito familiar não tem nenhum dos predicados acima citados?
OBS.: A família é tratada como um bode expiatório para que haja a sacralização do sacrificador estatal.
...um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo, e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. (p. 45)
OBS.: O triunfo da idéia sobre a matéria, não há melhor descrição do idealismo hegeliano, catar uma referência.
A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência. (p. 45)
OBS.: A família é transcendida pelo Estado? A pessoa no âmbito da família é uma escrava que deve ter sua condição abolida pelo agente estatal? A família é escravidão e o Estado é libertação?
Creonte encarna a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que é a família. (p. 46)
OBS.: A idéia em luta contra a realidade...
O conflito entre Antígona e Creonte é de todas as épocas e preserva-se sua veemência ainda em nossos dias. Em todas as culturas, o processo pelo qual a lei geral suplanta a lei particular faz-se acompanhar de crises mais ou menos graves e prolongadas, que podem afetar profundamente a estrutura da sociedade. O estudo dessas crises constitui um dos temas fundamentais da história social. (p. 46)
OBS.: Pois é! Neste momento que tenho que tratar do fator que é de "todas as épocas" e que ocorre em "todas as culturas", o processo de transição da crise mimética que engendra bodes expiatórios, que criam os elementos dos ritos, que forjam os mitos, que com o avanço civilizacional, e, principalmente, a partir da revelação cristã, criam as condições de possibilidade de ser estruturada uma mediação externa que nega a sacralidade da violência e eleva a vítima da condição de bode expiatório sacrificial para a condição de vítima que deve ser protegida e preservada numa atitude social que nega validade à violência mitológica, mas aceita a utilização de uma violência racionalizada pela regra jurídica.
OBS.: O autor elege a família como bode expiatório, para sacralizar o Estado, então Sérgio Buarque de Holanda cria mitos ao tratar do homem cordial, o mito da cordialidade do brasileiro como obstáculo à construção de um Estado burocrático à moda weberiana, assim sendo, o homem cordial deve ser sacrificado.
...famílias "retardatárias", concentradas em si mesmas e obedientes ao velho ideal que mandava educarem-se os filhos apenas para o círculo doméstico. (p. 47)
OBS.: Ou seja, deve-se abolir a educação familiar...
Segundo alguns pedagogos e psicólogos de nossos dias, a educação familiar deve ser apenas uma espécie de propedêutica da vida na sociedade, fora da família. (p. 47)
OBS.: O autor cita a nova pedagogia que nascia no início do século XX, que se propunha promover a abolição da velha ordem familiar.
...a separar o indivíduo da comunidade doméstica, a libertá-lo, por assim dizer, das "virtudes" familiares. (p. 48)
...a ideia de família - e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal - tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições à formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. (p. 48)
A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos. (p. 48-9)
OBS.: Quais são estes princípios? São liberais? Ou haverá outros princípios antifamiliares envolvidos?
E não haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, contribuíram largamente para a formação de homens públicos capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes arrancados aos seus meios provinciais e rurais de "viver por si", libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros, quase tanto como aos conhecimentos que ministravam as faculdades. (p. 49)
OBS.: Processo iniciático?
Nem sempre, é certo, as novas experiências bastavam para apagar neles o vinco doméstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto às exigências de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez mais igualitária. (p. 49-50)
...os âmbitos familiares excessivamente estreitos e exigentes...verdadeiras escolas de inadaptados e até psicopatas. (p. 50)
OBS.: Para o autor a família é a escola do crime.
No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização - que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas para a esfera de influência das cidades - ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje. (p. 51)
...distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. (p. 51)
Para o funcionário "patrimonial", a própria gestão política apresenta-se como um assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede com o verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. (p. 51)
Falta a tudo a ordenação impessoal que caracterizava a vida no Estado burocrático. (p. 51)
...o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. (p. 52)
...a esfera, por excelência, dos chamados "contratos primários", dos laços de sangue e de coração - está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas. (p. 52)
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o "homem cordial". (p. 52)
NOTA DE FIM Nº 06, p. 101-2: A expressão é do escritor Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicação Monterey. Não pareceria necessário reiterar o que já está implícito no texto, isto é, que a palavra "cordial" há de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e estritamente etimológico, se não tivesse sido interpretada em obra recente de autoria do sr. Cassiano Ricardo onde se fala no homem cordial dos aperitivos e das "cordiais saudações", "que são fechos de cartas tanto amáveis como agressivas", e se antepõe à cordialidade assim entendida o "capital sentimento" dos brasileiros, que será a bondade e até mesmo certa "técnica da bondade", "uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora". (p. 101)
Feito este esclarecimento e para melhor frisar a diferença, em verdade fundamental, entre as ideias sustentadas na referida obra e as sugestões que propõe o presente trabalho, cabe dizer que, pela expressão "cordialidade", se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas a que parece inclinar-se o sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falar em "bondade" ou em "homem bom". Cumpre ainda ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimento positivos de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos "grupos primários", cuja unidade, segundo observa o próprio eleborador do conceito, "não é somente de harmonia e amor". A amizade, desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimento privados ou íntimos, passa a ser, quando muito, belevolência, posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão do conceito. Assim como a inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade.[...] (p. 102)
Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo - ela pode exprimir-se em mandamentos em sentenças. (p. 52)
Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse esta fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. (p. 53)
OBS.: O povo japonês é um exemplo perfeito de mediação externa a partir do sagrado, porque ritualista.
Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualística da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social, é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência - e isso se explica pelo fato da atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no "homem cordial": é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. (p. 53)
OBS.: O povo brasileiro é um exemplo de delicado equilíbrio de mediação interna que é precariamente suspenso pela mediação externa gerada pela hipocrisia individual da cordialidade.
Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual reservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. (p. 53)
Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supreracia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo. (p. 53)
No "homem cordial", a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. (p. 53)
...reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica... (p. 53)
Ela é antes um viver nos outros. (p. 53)
Nada mais significativo dessa aversão ao ritualismo social, que exige, por vezes, uma personalidade fortemente homogênea e equilibrada em todas as suas partes, do que a dificuldade em que se sentem, geralmente, os brasileiros, de uma referência prolongada ante um superior. (p. 54)
Nosso temperamento admite fórmulas de referência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar. (p. 54)
OBS.: Intimidade = cordialidade.
A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade. (p. 54)
E isso é tanto mais específico quanto se sabe do apego frequente dos portugueses, tão próximos de nós em tantos aspectos, aos títulos e sinais de reverência. (p. 54)
À mesma ordem de manifestações pertence certamente a tendência para a omissão do nome de família no tratamento social. (p. 54)
O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira... (p. 55)
...foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, "democrático", um culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso. (p. 55)
A exaltação dos valores cordiais e das formas concretas e sensíveis da religião, que no catolicismo tridentino parecem representar uma exigência do esforço de reconquista espiritual e da propaganda da fé perante a ofensiva da Reforma, encontraram entre nós um terreno de eleição e acomodaram-se bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento social. (p. 58)
Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta "terra remissa algo melancólica", que de falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo o ritualismo não nos é necessário. (p. 58-9)
OBS.: O ritual do ponto de visto do formalismo religioso e social é fraco em nossa cultura cordial, todavia, não pode existir sociedade sem algum nível de ritualística, então, o homem cordial pulveriza em nível intimista o ritual para suprimir o momentum da violência mimética, todavia, o aspecto cordial do comportamento brasileiro tem sido impactado pela descoberta do ritual da legalidade nos últimos tempos, então, não é a família que impossibilita a racionalidade de imperar na burocracia estatal, pois o ritual de cordialidade e intimidade criada pela família é a base para se construir a aceitação da autoridade da lei, pois a família, por mais emotivas que sejam suas relações, também, impõe um nível de autocontrole e racionalidade sentimento (CITAR AQUELE AUTOR QUE DESCREVE A RACIONALIDADE DO SENTIMENTO COMO ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA SOCIAL E EVOLUTIVA)
A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. (p. 59)
OBS.: Ou seja, a personalidade do brasileiro é rebelde à dominação social! O que é um ponto negativo para a proposta socialista burocrática e racional defendida pelo autor.
Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades. (p. 59)
OBS.: Neste momento temos uma descrição do comportamento mimético do brasileiro.
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.