domingo, 15 de abril de 2018

FICHAMENTO: A BIOÉTICA É DE MÁ-FÉ?

Jean-Paul Sartre, o filósofo do relativismo e da má-fé


Prefácio

“A má-fé é mentira, mas mentira para si mesmo, explica Sartre.

Trata-se, na má-fé, de ‘mascarar uma verdade desagradável ou de apresentar como verdade um erro agradável. A má-fé, portanto, tem a estrutura da mentira. Mas o que muda tudo é que na má-fé eu mascaro a verdade para mim mesmo. A dualidade do enganador e do enganado não existe aqui [...] aquele ao qual se mente e aquele que mente são uma única e mesma pessoa, o que significa que devo saber, enquanto enganador, a verdade que me é mascarada enquanto sou enganado’. Assim se apresenta segundo Sartre, o paradoxo da má-fé. (p. 07)

“[...] ‘uma certa arte de formar conceitos contraditórios, isto é, que unem em si uma idéia e a negação dessa idéia’” (p. 08).

LECOURT, Dominique. Erros agradáveis, verdades desagradáveis.

“A bioética apresenta-se primeiramente com um conjunto mais ou menos bem amarrado de discursos de alerta sobre as perspectivas abertas pelas pesquisas biomédicas, de algumas interrogações metafísicas mais ou menos conhecidas sobre a pessoa humana combinadas com a recordação sonora de alguns imperativos pretensamente categóricos” (p. 09)

“A sistematização que está ocorrendo em escala internacional tem o grande mérito de esclarecer essa máscara com uma luz razoavelmente direta” (p. 11)

“[...] a bioética tende a apresentar-se como o viés pelo qual o direito poderia se fundar em uma ética de valor universal. Realmente, seria muito agradável ter resolvido (até que enfim!) desse modo a questão filosófica lancinante que o Ocidente moderno até agora não tinha conseguido solucionar: a de encontrar uma garantia absoluta (atemporal) para seus sistemas jurídicos.”

“[...] a ética constitui o discurso que enuncia os princípios da compatibilidade geral entre esses sistemas em um dado momento. A ética não é primeira, mas a segunda em relação ao direito, assim como em relação aos outros sistemas. Mesmo que ela tenha filosoficamente o discurso do fundamento para unifica-los e para que os indivíduos se tornem acessíveis às prescrições e proibições da moral que é retirada desses discursos. Prescrições e proibições que tomam esses indivíduos pelo corpo (o sexo e os prazeres) com o fim de dar forma a seus modos de existir como pessoas (no âmbito social)” (p. 11-12)

“As questões ditas de bioéticas não deverão ser tomadas, ao contrário, como convites à revisão das próprias bases de nossa concepção dos ‘direitos humanos’, particularmente se nos interrogarmos sobre as consequências imaginárias do poder dos sistemas normativos sobre os membros de toda sociedade?” (p. 14)

MEMMI, Dominique. O que fazer com o corpo hoje?

“’Em toda sociedade, o corpo se encontra no interior de poderes muito compactos, que lhe impõem coações, proibições, obrigações’, diz Michel Foucault”. Como se exerce esse controle hoje? Na recusa do caráter arbitrário e imperativo dessas normas. Isso, ao menos, é o que parece ilustrar o funcionamento do primeiro comitê de ‘especialistas’ criado na França, em 1983, o Comité Consultantif National d’Éthique.” (p. 15)

“A reatualização do termo ‘ética’, que joga com a ambiguidade semântica entre as noções de moral da ciência e de ciência da moral, assinala essa preocupação de distinção intelectual. Uma análise dos 34 pareceres e dos 3 relatórios produzidos pelo Comitê desde a sua criação até o seu décimo aniversário” (p. 15)

“A recusa de toda ‘apropriação disciplinar’ da bioética, a reinvindicação constante da interdisciplinaridade, mas também a rejeição do termo de ‘especialista em ética’, isto é, de toda profissionalização desse empreendimento de fabricação de normas sobre os usos do corpo, eis outro topoi próprio dos meios da bioética, sinônimo da ausência de certeza nesses assuntos” (p. 17)

“Essa auto-restrição generalizada é acompanhada por uma valorização moralizante dessas mutilações. Louva-se a humildade do Comitê, sua retidão ou a grandeza de sua renúncia. Os membros do Comitê também se mostram perturbados com perguntas sobre os efeitos concretos de seu trabalho ali” (p. 18)

“[...] nossos interlocutores ficaram literalmente sem ter o que falar diante de qualquer pergunta precisa sobre esse assunto” (p. 19)

“Tudo se passa então como se os especialistas em ética estivessem socialmente proibidos, no exercício de sua função, de ter, além de uma opinião ‘na primeira pessoa’, um pensamento que seja da ordem do ‘sim’ ou do ‘não’, um pensamento eficaz ou autoritário” (p. 19-20)

“A autolimitação consentida do próprio poder por parte dos especialistas em ética, tanto dentro como fora do Comitê, é em parte ilusória” (p. 20)

“O silêncio prolongado, a perplexidade nas entrevistas dos especialistas em reprodução assistida, como a renúncia entusiasmada dos membros do Comitê, traduzem de fatos os limites da autorização social de que os especialistas em ética dispõem, e mais que isso: as limitações de legitimidade, que hoje abarcam a imposição de normas referentes ao corpo humano” (p. 21-22)

“Uma regulação por meio de palavras

E, contudo, o que ele fazem não é inexpressivo. ‘Valores’, ‘prudência’, ‘ética’: o que choca aqui é a intensidade do esforço investido na fabricação de palavras” (p. 22)

“Em que consistiu de fato o trabalho efetivo do Comitê? Em não dar razão nem aos comerciantes nem aos padres” (p. 22)

[...] em 1975, aborto foi introduzido na França, foi preciso inventar uma delimitação de seus usos possíveis que pudesse tranquilizar as pessoas preocupadas com a vida prometida no embrião. Sem, em 1984, a invenção da noção de ‘pessoa humana potencial’ representou uma operação tão importante no Comitê, é porque ela representa a versão científica, conceitual, dessa busca persistente de compromisso [...] O direito havia inventado, no início dos anos 1950, no momento da regulamentação das doações de sangue, uma categoria intermediária entre a pessoa e a coisa: ‘a substância de origem humana’” (p. 23)

“[...] O que está em jogo é evidente: encontrar entre duas posições vistas pelos eticistas contemporâneos como impossíveis, a que defendo que o corpo é um ‘aglomerado de células’ infinitamente manipulável e a que defende que ele é intocável, dependente somente da vontade da natureza ou de Deus: ‘Eu estava de acordo com a idéia de pessoa humana potencial. Isso permite manter a interrupção voluntária da gravidez e, ao mesmo tempo proteger o embrião. Felizmente, a questão do momento em que o embrião se torna pessoa não foi decidida (Soc. 59). Em Suma, para anular os católicos e, mais ainda, os humanistas leigos e os comerciantes era preciso inventar uma sacralidade não-metafísica” (p. 23-24)

“O mesmo foi feito para garantir-se contra os comerciantes. Dos 34 pareceres gerados pelo Comitê durante a década de 1983-1993 emerge a preocupação constante de afastar do corpo toda ameaça de redução a mercadoria. Isso começa cedo. Dois dos três primeiro pareceres (pareceres n. 1 e 3) invoncam o princípio de não-comercialização do corpo humano. (p. 24)

“Aversão ao corpo mercantil, portanto, mas sem retorno resoluto ao sagrado tradicional [...] uma posição discreta a favor da ciência e da transformação dos costumes provocada por sua evolução. O conjunto do dispositivo ético se parece com uma operação de dessacralização – muito controlada – dos corpos em benefício dos novos usos sociais e científicos que deles são feitos” (p. 25)

LECOURT, Dominique;A bioética é de má-fé? Tradução de Nicolás Nyimi Campanário, Edições Loyola, 2002

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