Uma mesma vida tem de ser investida em seu aspecto de algo que vai ser no futuro e de ser lembrada no aspecto de coisa passada. (p. 175)
Logo, investidura e registro são atos indispensáveis para a vida na Terra. (p. 175)
Em sua unidade de vestuário e linguagem, chamamo-los ritual. Em sua polaridade, chamamo-los "cerimônias" e "acontecimentos da história". (p. 175)
...precisamos de fórmulas que protejam a sua indefinição no início da carreira. As fórmulas dão liberdade aos nossos poderes criativos indefinidos até que tenhamos dado nossa contribuição. (p. 175)
A vida humana não é nua nem anônima. É ritualística. (p. 175)
Nosso corpo natural não tem função social. Entramos no corpo social graças ao vestuário, que representa um corpo temporário. (p. 175-6)
Um homem ter feito um nome para si significa literalmente ter feito com que outras pessoas falem dele e pensem nele! (p. 176)
Uma cerimônia que invista de determinada função ou título acadêmico um homem, ou que lhe confira qualquer poder, é eloqüente em sua tentativa de fazer com que o candidato ouça. (p. 176)
A cerimônia pretende formar a audição, chamar a atenção e despertar o entendimento de uma criança para todo o seu período de crescimento. (p. 176)
Roupas são investimentos a crédito para uma vida inteira: nomes são fruto de vidas completamente vividas. É nesses espaços de tempo que devemos buscar os processos originais da linguagem. (p. 177)
O ritual criou a durabilidade da linguagem. (p. 177)
A linguagem articulada humana irrompe onde homens são iniciados ou sepultados, porque tais ordenações de uma vida inteira são as verdadeiras tarefas com que se deparam os que tentam pôr fim à guerra, à depressão, à degeneração ou à revolução. (p. 177)
Um ritual não pode ser levado muito a sério nem será formalmente bom onde seja aplicado a expectativas breves. Aí ele se torna humorístico. (p. 177)
Na atual realidade histórica, os rituais são por toda a parte desvalorizados por se voltarem cada vez mais para curtos períodos de vida. (p. 177)
As palavras são como machados e espadas antes que o humor lhes tire o gume, pois o ritual verbal varre longos corredores de tempo para o futuro e para o passado, a fim de que a vida de um homem não permaneça subumana. (p. 177-8)
É uma lei: o homem não se torna humano sem que determinada organização física e indeterminado órgão social - ou o corpo do homem e seu caráter temporal - sejam integrados numa unidade. (p. 178)
O ritual, que consiste em cerimonial e memória nomeada, é o processo dessa integração. (p. 178)
Por isso ritual é medido em geração; a medida da perfeição de um ritual é o se poder de atar várias gerações de homens. (p. 178)
Para interpretar o ritual primário, talvez seja melhor concentrarmo-nos na questão do poder. Abrir corredores de trinta ou quarenta anos em direção ao passado e ao futuro requer poder. (p. 178)
Requer muito mais poder do que aquele que atribuímos à fala. (p. 178)
A filosofia vulgar da linguagem diz-nos que a fala comunica o pensamento de um homem a outro. (p. 178)
Se o objetivo da fala fosse transmitir idéias, ela necessitaria de poder mínimo. E é verdade: os falantes moderno balbuciam quase sem mudar de tom. (p. 178)
Mas sua filosofia da linguagem interpreta tipos secundários de linguagem; nem sequer tenta interpretar o caráter monumental dos nomes. Acredita, com Kant, que "tempo" é uma forma de pensamento. (p. 178)
A história e nossa própria e calamitosa experiência provam que o tempo é criado pela linguagem. (p. 178)
Todos podemos estar no tempo antes de falar. (p. 178-9)
Mas não temos o tempo senão porque podemos distinguir um presente entre o passado e o futuro. (p. 179)
Esse presente não existe em lugar algum da natureza, mas podemos criá-lo unindo nossas diversas vidas num só nome e reunindo-as num grande reservatório de sobretempo. (p. 179)
O homem tem tanto tempo quanto tenha nomes sob os quais gerações inteiras estejam dispostas a cooperar ao longo das eras. (p. 179)
Desfrutamos um presente quando damos a mão a pessoas de outros tempos, passado e futuro, num só espírito. (p. 179)
Quanto mais honramos os nomes do passado, mais reclamamos um longo futuro. (p. 179)
Essa é a essência da vida consciente, vida capaz de articular tempos e lugares entre passado e futuro de forma tão convincente, que recebemos direção e orientação claras quanto a nosso lugar no tempo. (p. 179)
A língua que é "materna" através dos milênios e o "cabeça", que é o modo de chamar o chefe de geração em geração, são expressões simbólicas. (p. 180)
A língua materna não é senão a experiência de um grupo que recebe e aceita nomes acima de si mesmo mediante um processo criativo e atual, investido num cabeça. (p. 180)
Em nossa própria época, a morte e o artificialismo transformam a linguagem numa arena de interesses políticos e econômicos. (p. 181)
O primeiro resultado de nossa análise é que cabeças e línguas eram compelidos a falar em nome de heróis sepultos. (p. 181)
Os cabeças conferiam cerimoniosamente a autoridade de nomeadores àqueles que a vestiam como seu corpo social. (p. 181)
Toda liberdade é poder para o futuro. A necessidade de criar sucessores para os líderes criou o direito à liberdade. (p. 181)
Queremos dizer que, enfim, todos alcançaram a liberdade dos sacerdotes e reis. (p. 181)
A democracia, é fato, busca estender a todos a liberdade dos mais altos cargos, os de sacerdotes e reis, de oradores e escribas. Não obstante, sem os graus de sacerdotes e de rei, na haveria para ser estendido. (p. 181-2)
Não será que por muito tempo o clamor por um emprego virá em primeiro lugar, já que ele é na verdade o clamor por alguém que me diga o que fazer por um salário? (p. 182)
Nós, que chegamos a reconhecer que todos os homens podem agir como sacerdotes e reis, teremos um longo caminho a percorrer antes que a economia do futuro tenha um lugar para o imperativo: "Todo o homem é um chefe!" Deveríamos acalentar isso como objetivo supremo. (p. 182)
O poder sobre o futuro está nas mãos daqueles sujeitos que podem dar emprego, e isso significa ordens. (p. 183)
Essa é, evidentemente, uma das razões para aprender a pensar mais corretamente acerca da linguagem e do vestuário na atual conjuntura. Pois é sempre o poder sobre o futuro o que se confere mediante o vestuário e a linguagem. (p. 183)
O que criava o herdeiro era sua aceitação formal pelo pai e não seu nascimento. (p. 184)
A linguagem emerge da sutura entre morte e nascimento. (p. 184)
O realismo da linguagem consiste em que ela vem após as obscuridades da vida comum e do sofrimento pessoal. (p. 184)
A história de todas as leis faz-nos parecer correta a nossa interpretação do intervalo entre a morte e o nascimento. (p. 184)
A primeira e, originalmente, única lei é a lei da sucessão. (p. 184)
A distinção entre o código penal e o civil funda-se na diferença entre a morte violenta e a morte natural. (p. 184)
Em quase todas as línguas, a queixa em juízo por uma morte violenta e o planctus, luto formal por morte natural, são chamados por nomes idênticos ou parecidos. (p. 184)
Quase todas as civilizações não-cristãs preservam os sinais da irrupção da queixa legal e formal a partir de uivos e gritos naturais e animais. (p. 184)
OBS.: CRISE MIMÉTICA
...o aparecimento da ordem a partir do caos, da forma a partir da confusão, pode ser revivido todas as vezes que se executa o ritual. (p. 185)
A situação negativa anterior torna-se parte do ritual, para que a solução positiva que se segue não fique incompreensível. (p. 185)
Rituais cuja pré-história, cuja "irritação" deixa de ser compreensível não nos tocam. (p. 185)
A reverência pelo poder humano de falar depende do nosso medo de submergir no estado animal. (p. 185)
...representar o processo que vai do grito à fala, executando os procedimentos pelos quais essa emergência é alcançada. (p. 185)
O espírito procede, por um lado, na interação entre mulheres e crianças e, por outro, na interação dos homens. Esse é o significado do termo "processo do espírito". (p. 185)
A emergência é um processo natural, e na natureza o indivíduo e o meio ambiente são vistos como entidades separadas. (p. 186)
No ritual prevalece a atitude oposta: os gritos são tansubstanciados, e a fala procede das origens mesmas: dos sons que compunham gritos. (p. 186)
Por milhares de anos, quando se cometia uma assassínio, exigiu-se que os parentes do morto levassem o corpo ante os juízes. Na corte, a queixa era feita tanto pela lamentação das mulheres como pelas acusações verbais do parente mais próximo. (p. 186)
Esse dualismo tornou transparente o concentus [harmonia, conformidade] entre nossa natureza animal e nossa história formal. (p. 186)
O homem primeiro gritou e depois falou, porque falar era o primeiro passo longe do grito. (p. 186)
Choros e gritos eram inseridos na cerimônia como medida da linguagem articulada. Tal interação na religião entre grito e nome, entre mulher e homem, representou a reconciliação entre nossa natureza animal e nossa natureza intelectual. (p. 186)
Paulo tornou a linguagem formal acessível ás mulheres... (p. 186)
O ritual tribal comunicava religião, lei, escrita e fala. O ritual criou o tempo - como passado e futuro - , o poder - como liberdade e sucessão -, a ordem - como título e nome - , a expectativa - como cerimônia e vestuário - , a tradição - como canto fúnebre e mito do herói. O ritual ligo o homem ao tempo, e isso é expresso pelo termo "religião" (p. 187-8)
...os trivia das línguas, literatura e lógica...(p. 217)
Línguas estrangeiras deveriam ser aprendidas, em primeiro lugar, como línguas elevadas, antes que se enfatizasse o uso coloquial. Canções, leis e salmos constituem bom ponto de partida. (p. 217)
...a descoberta de que o discurso racional pressupõe o discurso ritualístico. Descobrimos que a lógica de nossas escolas cobria, na melhor das hipóteses, um quarto do território real da lógica. (p. 218)
Antes de qualquer coisa possa ser computada, calculada, observada ou testada, ela tem de ter sido algo nomeado, com que se falou, com que se operou, algo com que se teve alguma experiência. (p. 218)
Com suas generalizações e numerais, a ciência priva as coisas de nomes. Mas não pode fazer isso senão com coisas que previamente se revestiram de nomes. (p. 218)
A ciência é uma aproximação secundária e abstrata à realidade. (p. 218)
Devemos estar imersos e enraizados num universo nomeado, para depois dele nos podermos emancipar pela ciência. (p. 218)
Esta breve investigação das novas vias mostra que, dentre as sete artes liberais, o chamado trivium - gramática, retórica e lógica - é o que mais se beneficia de nossos estudos. (p. 219)
Nossa abordagem eleva as "trivialidades" desses três campos introdutórios do saber à estatura de ciências plenamente desenvolvidas. (p. 219)
Elas tornar-se-ão as grandes ciências do futuro. (p. 219)
Tal ascensão ao poder teve um paralelo quatrocentos anos atrás, quando o chamado quadrivium (aritmética, geometria, música, astronomia) e o trivium (gramática, retórica, lógica) não passavam de meros serviçais e ferramentas auxiliares. (p. 219)
É preciso substituir a faculdade de direito por todo um conjunto de ciências sociais, incluindo uma acerca de nossa própria consciência. (p. 219)
A consciência não funciona senão quando a mente responde a imperativos e utiliza metáforas e símbolos. (p. 219)
Até os cientistas devem falar com confiança e segurança antes de poder pensar analiticamente. (p. 219)
Que é um símbolo? Que é uma metáfora? Constituem o pão nosso de cada dia? Símbolos são fala cristalizada. E a fala cristaliza-se em símbolos porque, em seu estado criativo, é metafórica. Símbolos e metáforas relacionam-se como a juventude e a velhice da linguagem. (p. 219-20)
Até os símbolos dos lógicos a provam... são fala cristalizada. [...] A fala deve levar aos símbolos. Os símbolos resultam da fala. "Ouvimos" os símbolos como se fossem fala. "Olhamos" para a fala porque ela nos levará aos símbolos. (p. 220)
Os símbolos representam o estado "real" ou principal de uma pessoa a despeito de quais aparências. Representam meu melhor eu em sua ausência... (p. 221)
Isso nos dá uma pista dos autênticos lugares dos símbolos. Eles sucedem a atos de investidura, por meio dos quais se tornam indeléveis e importantes elementos da realidade. (p. 221)
Um ritual antecede ao símbolo. Se nenhum ritual investiu a pessoa, o símbolo não passa de mero brinquedo frívolo. (p. 221) (OBS. tem uma nota de rodapé interessante)
Quanto mais seriamente o ritual é "falado", mais o símbolo se fixa. Não há, porém, símbolo sem fala. (p. 222)
Os símbolos reiteram o fato de que a fala visa à verdade de longo alcance e de que, para tanto, ela procura substituir as aparências do mundo visível por uma ordem mais elevada, melhor ou mais penetrante. (p. 222)
Porque o símbolo mostra melhor sua eficiência após o término da cerimônia de investidura, e concebem-se as cerimônias de investidura precisamente como um poder capaz de criar um segundo mundo. (p. 222)
A linguagem humana é metafórica por definição. Nada nela é o que é. Tudo significa algo que, em sim mesmo, não é. (p. 222)
Necessitamos que alguém nos dirija a palavra, senão enlouquecemos ou adoecemos. (p. 231)
A primeira condição para a saúde é que alguém fale conosco co sinceridade de propósitos, como se fôssemos únicos. (p. 231)
A relação entre a saúde e o ato de falarem conosco com o poder de nosso "vocativo" único torna imperiosa a resistência a que a educação seja monopólio do Estado. (p. 231)
A posse é algo terrível, mas é também a fonte de grandeza, quanto tomada no verdadeiro e genuíno espírito de exclusividade. (p. 233)
Esse espírito consiste simplesmente no seguinte conhecimento: "Ninguém é tão querido", "Eu sou a única pessoa no mundo", "Esta é a única criança no mundo". (p. 233)
Quem quer que tenha tal espírito de exclusividade para com outro ser humano tem uma qualidade, uma qualidade "gramatical" que ninguém mais tem e que indispensável - a qualidade de dar ordens, de dizer: escuta, vem, come, ama-me, vai dormir. (p. 233)
É derivado da maternidade ou da paternidade genuínas. O direito de dar ordens depende da qualidade de pôr aqueles a quem se dirigem essas ordens acima de tudo o mais. (p. 234)
A pessoa que nunca foge à responsabilidade, que sabe que não pode fugir à responsabilidade, adquire o direito de dar ordens. (p. 234)
As mães não se tornam conscientes da maternidade senão na experiência de dar ordens, cantar canções e contar histórias aos filhos. E as crianças tornam-se filhos e filhas graças à voz da mãe. (p. 234)
Toda a potência original do ritual da fala se encontra na relação entre mãe e filho. (p. 234)
E sabemos que a potência de qualquer imperativo depende de que o falante se lance para fora de si mesmo na ordem que dá, e de que o ouvinte seja lançado à ação. Ambos então se direcionam para fora, ou, como costumamos dizer, não são autocentrados. (p. 234)
No chamado da mãe "Vem, Johnny", a invocação "Johnny" projeta para fora o eu da mãe, e a forma verbal "vem" faz vir para fora o do filho. Ambos se entregam a uma interação mútua. (p. 234)
O papel do vocativo é tão pouco entendido hoje quanto o do imperativo. (p. 235)
Qualquer vocativo mostra a fala em seu estádio criativo, porque a princípio falamos não de coisas mortas, mas para pessoas vivas. (p. 235)
O Crátilo de Platão é um triste modelo dessa abordagem chã de linguagem. (p. 235)
O falante projeta-se a si mesmo para eles. Encontramo-nos em nossos vocativos. Assim como a mãe se torna mãe chamando o nome do filho, nós nos tornamos oficiais ao chamar nossos soldados, chefes ao chamar nossos operários, professor ao chamar nossos alunos. (p. 236)
Os vocativos fazem algo aos falantes: trazem-nos para fora. Os vocativos são nossa fé e vêm antes dos nominativos, não importa o que digam os gramáticos. (p. 236)
Quem está pronto para abandonar-se a si mesmo e depositar toda a sua fé no nome de outra pessoa é trazido para fora e para cima de si mesmo, e se torna depositário, líder e representante do nome invocado. (p. 237)
...a taça temporal de expectativa e cumprimento. (p. 238)
Há um termo algo batido para designar essa forma da saúde do falante; chamamo-la "responsabilidade". Mas o termo perdeu sua pujança por ter sido usado de maneira demasiado ativa. (p. 238)
"Vem, Johnny!" é um responsório em que mãe e filho se perdem a si mesmo: ela lançando todo o seu peso sobre o vocativo; ele permitindo que o imperativo se acomode nele, o paciente da ação, como num "escabelo". Ninguém pode ser "responsável" sem resposta; seria uma existência por demais unilateral. (p. 238)
A gramática moderna faz vista grossa ao fato de que qualquer vida é ambivalente, oscilante entre o ativo e o passivo. [...] Eles e ele são concomitantemente ativos e passivos. E essa é a norma humana. (p. 239)
Qualquer grupo feliz e afável, sem autoquestionamento nem autoconsciência grupal, vive numa voz média na qual a divisão entre ativo e passivo permanece subdesenvolvida e é menos importante que o responsório entre pessoas que acreditam em sua solidariedade única. (p. 239)
O casamento seria impossível sem tal correlação entre vocativo e imperativo. O falante vive no vocativo; o ouvinte vem à vida no imperativo. (p. 239)
Eugen Rosenstock-Huessy (1888-1973) A origem da linguagem; edição e notas Olavo de Carvalho e Carlos Nougué: introdução, Harold M. Sathmer e Michael Gorman-Thelen: tradução Pedro Sette Câmara, Marcelo de Polli Bezerra, Márcia Xavier de Brito e Maria Inêz Panzoldo de Carvalho. - Rio de Janeiro: Record, 2002.
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