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terça-feira, 1 de maio de 2018

FICHAMENTO: O QUE É O SENTIMENTALISMO?



[...] uma importante característica do tipo de sentimentalismo [...] seu caráter público (p. 75)

[...] consequência de viver num mundo moderno, incluindo um mundo mental, tão amplamente saturado por produtos da mídia de massa. Nesse mundo, aquilo que é feito ou que acontece em privado não é feito ou não aconteceu absolutamente, ao menos não no sentido mais pleno possível. (p. 75-76)

A expressão pública do sentimentalismo tem consequências importantes. Em primeiro lugar, ela demanda uma resposta daqueles que a testemunharam. [...] Há, portanto, algo coercivo ou intimidador em exibições públicas de sentimentalismo. Tome parte ou, no mínimo, evite criticar. (p. 76)

Uma pressão inflacionária também age sobre essas exibições. [...] exibições emotivas cada vez mais extravagantes se tornam necessárias [...] (p. 76)

Em segundo lugar, exibições de sentimentalismo público não coagem apenas os transeuntes ocasionais [...], mas quando são suficientemente fortes ou disseminadas, começam a afetar políticas públicas. [...] permite que o governo jogue ossos para o público em vez de enfrentar os problemas de maneira determinada e racional, ainda que também inconvenientemente controversa. (p. 76)

Entre os defensores mais notáveis do sentimentalismo estava o filósofo americano Robert C. Solomon, que faleceu em 2007. Solomon acreditava, com razão, acho eu, que as emoções eram necessárias para toda atividade cognitiva e pensamento racional. Sem uma postura emocional em relação ao mundo, no fim das contas, ninguém faria nada, pensaria nada nem buscaria nada. Um estado de completa neutralidade emocional logo levaria à morte por inanição. (p. 76-77)

Solomon, porém, foi adiante. Em seu livro In Defense of Sentimentality [Em Defesa do Sentimentalismo], há um capítulo intitulado "Sobre o Kitsch e o Sentimentalismo", em que ele tenta defender o sentimentalismo refutando as objeções contra ele uma por uma. As objeções são seis, como se segue:

i. Que o sentimentalismo envolve ou provoca uma expressão excessiva da emoção.
ii. Que o sentimentalismo manipula nossas emoções.
iii. Que as emoções expressas no sentimentalismo são falsas ou fingidas.
iv. Que as emoções expressas no sentimentalismo são baratas, fáceis e superficiais.
v. Que o sentimentalismo é autoindulgente, impedindo conduta e respostas apropriadas.
vi. Que o sentimentalismo distorce nossas percepções e interfere no pensamento racional e na compreensão adequada do mundo. (p. 77)

"A questão não é se deve haver emoções, mas como, quando e em que grau elas devem ser expressadas, e que papel elas devem desempenhar na vida humana" (p. 78, itálicos no original)

"Claro que culturas diferentes podem diferir em relação a quanta emoção deve ser expressada; porém, duvido muito de que haja uma só em que não exista a ideia de um a expressão excessiva da emoção (ainda que isso seja apenas uma ideia implícita, manifestada pela desaprovação social)" (p. 78)

"Assim, há um consenso universal de que a expressão da emoção deveria ser consoante tanto com a própria emoção quanto com a situação social, ainda que não haja acordo quanto ao ponto preciso em essa expressão se torna excessiva. [...] (p. 79)

"Sobre o razoável pressuposto de que a emoção está sob controle consciente, o grau em que ela é expressa é, portanto, uma questão moral. Aquilo que é permissível e até louvável entre pessoas íntimas e confidentes é repreensível entre estranhos. De fato, o desejo ou a exigência de que todas as emoções  sejam igualmente expressáveis em todas as ocasiões e em todos os momentos destrói a possibilidade mesma de intimidade. Se o mundo inteiro é seu confidente, então ninguém é. A distinção entre o privado e o público é abolida, e a vida, por conseguinte, fica mais rasa. (p. 79)

"Mas não é só a expressão da emoção (que Solomon mistura com a própria emoção) que deve ser disciplinada, é a própria emoção que deve ser sujeita à disciplina." (p. 79)

"[...] O apetite cresce com a alimentação; a emoção também cresce com sua expressão." (p. 80)

"[...] o caráter de um homem é em parte obra dele mesmo, e aquilo que de início demanda esforço e autocontrole acaba se tornando uma disposição." (p. 80)

"[...] um ponto cartesiano da epistemologia moral: estou encolerizado, portanto estou certo." (p. 81)

"[...] O calor confortante e gratuito do sentimento é um fim em si mesmo, uma mera muleta para a autoestima." (p. 82)

"Além disso, quando o sentimentalismo se torna um fenômeno público de massa, ele se torna manipulador de um jeito agressivo: exige que todos tomem parte. Um homem que se recuse, afirmando não acreditar que o pretenso objeto de sentimento seja digno de exibição demonstrativa, coloca-se fora do âmbito virtuoso e torna-se praticamente um inimigo do povo. Sua culpa é política, uma recusa em reconhecer a verdade do velho adágio vox populi, vox dei - a voz do povo é a voz de Deus. O sentimentalismo então se torna coercitivo, isto é, manipulador de maneira ameaçadora." (p. 82)

"Em um estado de sentimentalismo, certamento do tipo vivido em público, a pessoa é mais comovida pelo fato de ser comovida do que por aquilo que supostamente a está comovendo. Além disso, está interessada em que todos vejam o quão comovida está. O trigo do sentimento genuíno é logo perdido no joio das considerações secundárias; e, tendo o exagero uma lógica própria, o joio tende a aumentar." (p. 83)

"Sem dúvida, todos nós caímos no sentimentalismo às vezes (porque é mesmo estranho que a música barata seja tão forte), sem que ninguém sogra nenhum mal. [...] Mas aquilo que é inofensivo em privado não é necessariamente inofensivo, muito menos benéfico, em público; e aqueles que acham que sua conduta privada e pública deveria ser sempre a mesma, por medo de na diferenciação introduzir a hipocrisia, têm uma visão da existência humana que carece de sutileza, de ironia e, sobretudo, de realismo." (p. 84-5)

"Contudo, diz Solomon, pessoas como os filósofos gostam de usar a razão e a lógica não só para obter as verdades que resultarão de seu uso, mas porque fazer isso é satisfatório em si mesmo, e também um traço distintivo em relação aos outros. Num mundo de individualistas, se não de indivíduos, isso é importante." (p. 85)

"Será então que condenamos os filósofos, como se fossem autoindulgentes? A resposta é sim, se seu apego à (digamos) satisfação de parecer mais inteligentes do que o resto do mundo é maior do que seu apego à verdade ou à sabedoria, ou tão grande que são incapazes de mudar, se não suas mentes, ao menos suas palavras. Outra vez, o orgulho pode obstruir o caminho da busca da verdade: preferimos vencer uma discussão com sofismas a chegar à verdade por uma investigação honesta, ainda que os melhores dentre nós sorrateiramente mudem de opinião após termos vencido aquilo que é correto usando jogo sujo e sofismas." (p. 85)

"A última acusação contra o sentimentalismo citada por Solomon é que ele distorce nossas percepções e impede o pensamento racional e o entendimento. O sentimentalismo demanda o apego a um conjunto de crenças distorcidas a respeito da realidade, e também à ficção da inocência e da perfeição, atuais e potenciais." (p.86)

"Quando se permite que o emocionalismo transborde para a esfera das políticas públicas, não é provável que disse saia algo de bom, exceto por acaso." (p. 87)

"O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento. Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de um condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade." (p. 87)

"A necessidade de julgamento implica que nossa situação no mundo, assim como a de outras pessoas, é quase sempre incerta e ambígua, e que nunca se pode fugir da possibilidade de erro. em nome de uma vida mental quieta, portanto, queremos simplicidade, não complexidade: o bem deveria ser inteiramente bom, o mal inteiramente mau; o belo inteiramente belo, e o feio inteiramente feio; o imaculado inteiramente imaculado, o e estragado inteiramente estragado; e assim por diante." (p. 87-8)

"[...] não quero sugerir que não exista distinção entre bem e mal e nada que distinga o assassino da vítima. Contudo, insinuar a mentes jovens que a história humana (e, por extensão, a vida humana inteira) tem sido e não é nada mais do isto, um conflito entre vítimas e perpretadores, entre oprimidos e opressores, entre bem e mal, é fazer com que seja improvável que elas desenvolvam aquele senso de proporções sem o qual (como afirmei alhures) a informação não passa de uma forma superior de ignorância." (p. 88)

"[...] Para muitas crianças nas escolas, os estudos do genocídio parecem ter tomado o lugar de todo e qualquer outro aspecto da história." (p. 88)

domingo, 15 de abril de 2018

SOBRE A INTELIGÊNCIA CORDIAL BRASILEIRA



Origem da linguagem e suas manifestações não-verbal, pré-verbal e verbal:

A origem da linguagem é um problema que remete à própria origem da cultura, pois antes da invenção da palavra escrita, antes da criação da expressão oral, antes da capacidade de comunicação verbal (mito-poética) houve algum nível de comunicação não-verbal (pré-ritual) e pré-verbal (ritual), isto é, sem a articulação de fonemas que representassem conceitos.

O que tornou possível a transição da expressão ainda animal (não-verbal) de gestos, gritos, rosnados, risos e demais expressões sem articulação simbólica (não verbal) fonética e gramatical (verbal), para a comunicação como a conhecemos?

Como o espectro comunicacional não-verbal e pré-verbal possibilitou a criação de uma ordem comunicativa verbal?

Qual tipo de atitude comunicacional humana pré-verbal precedeu imediatamente o processo de criação da própria linguagem verbal?

Qual o papel das emoções nas manifestações comunicativas pré-verbais? Será a emoção o elo perdido que conecta o momento da animalidade pré-verbal e não-verbal à gênese da palavra em sua forma verbalizável?

Haverá uma gramática das emoções que possibilita a existência da gramática das palavras?

Qual o mecanismo primordial que promoveu a transformação de emoções pré-verbais em verbos?



A linguagem da emoção e a teoria mimética:

Proponho-me a discutir a origem da linguagem, partindo da hipótese que suas manifestações pré-verbal e não-verbal surgiram na forma de uma linguagem de emoções, uma estratégia de sobrevivência que se utiliza de comunicação pré-verbal que possibilitou nos primórdios da cultura a convivência social.

Nesta perspectiva, as manifestações sociais das emoções, quando codificadas, são uma estratégia existencial que possibilitam a sustentação da existência do indivíduo, pois os motivos e justificativas para as reações emocionais são diretamente ligados aos comportamentos necessários à sobrevivência, o que revela um potencial racionalismo existencial pré-verbal.

Algo a ser ressaltado no âmbito da teoria mimética é que as emoções são a matéria prima da mimésis e o fator que desencadeia a crise mimética, pois a crise é o resultado do paroxismo da violência da emoções quando ficam fora de controle, e tal processo de descontrole é possível de ser superado pelo mecanismo do bode expiatório, que gera a catarse necessária para possibilitar o estabelecimento dos primeiros ritos sociais sagrados, que promovem o nascimento do primeiro símbolo, na forma da vítima sacrificial, cuja repetição cerimonial engendra o mito.

Assim sendo, a teoria mimética apresenta uma hipóteses na qual o processo social de ritualização permite o ambiente para o nascimento do verbo com a criação de mitos diretamente derivados da linguagem do ritual cuja origem é não-verbal.

O processo que origina a fala parte do fenômeno das emoções constantemente repetidas ritualmente, manifestadas por gritos, rugidos, rosnados, choro, riso e demais manifestações gestuais e sonoras possíveis, que ao serem articuladas repetidas vezes sofrem um constante aperfeiçoamenteo, e estabelecem padrões fonéticos, que se consolidam nas primeiras palavras carregas de significado ritual.

A palavra em sua origem primordial é, seguramente, um subproduto do ritual religioso sacrificial.

É interessante notar que a linguagem surge da crise que sacraliza e ritualiza a violência, que torna possível a constituição de uma ordem civilizacional.

O bode expiatório é ponto de convergência entre a violência e o sagrado, pois a violência banalizada gera a vingança interminável que destrói a comunidade, e a violência sacralizada estabelece os ritos e mitos que verbalizam as emoções socialmente estabelecidas pela repetição benéfica da crise mimética por meio do ritual, como instrumentos de mediação externa pacificadora da mediação interna que se originara da violência intestina potencial, esta última sempre atuante como um fator de entropia no meio social.

A comunicação oral origina-se da sacralização da violência, antes manifestada em emoções não-verbais de gestos e gritos que, num lance de dados do destino, pode ser solucionada pelo sacrifício do bode expiatório, cuja repetição cria a pedagogia do rito que rememora a criação do primeiro símbolo (o sacrificado) e estabelece um padrão de linguagem pré-verbal, na qual os gestos e gritos passam a ser significativos e permitem o aperfeiçoamento da linguagem ao ponto da criação do verbo oralizado.

O sacrifício é o acontecimento social primordial que cria a paz social necessária para a perduração das relações interpessoais nas origens da sociedade humana, e capacita uma associação de seres humanos em sua fase não-verbal com a linguagem das emoções, sua fase pré-verbal com a linguagem do rito, e, por fim, sua fase verbal com a linguagem dos mitos.

Ao desenvolver a pedagogia do sagrado, que limita a violência social, este ensino puramente religioso é compreendido como uma manifestação divina representada no rito, que revive o acontecimento que pacificou a violência, e, com o tempo, após infinita repetições, permite o nascimento da linguagem falada.

A linguagem em sua fase inicial é produto direto da manifestação religiosa que funciona como uma pedagogia das emoções convertendo a energia da violência em padrões rituais que geram a catarse por meio do ritual, a pedagogia do ritual permite a formação de narrativas mitológicas, pois os mitos em sua linguagem poética são a manifestação verbal deste registro do evento primordial.

Tanto faz se os mitos são gregos ou africanos, muito embora sejam encarados de um ponto de vista meramente literário atualmente, em suas origens, os mitos são sedimentações de ritos, nascidos em tempos na qual inexistia a própria linguagem falada.

Os primeiros ritos e sua pedagogia do eterno retorno estabilizaram-se em palavras.



O homem cordial:

Ora, por mais que sejamos induzidos a considerar que a realidade da comunicação nos níveis não-verbal (linguagem das emoções), pré-verbal (linguagem do ritual) e verbal (linguagem mitológica) como etapas atuantes nas origens da linguagem, tal percepção é falaciosa, pois cada pessoa ao nascer reinicia todo este processo de gênese da linguagem, que parte da comunicação emocional típica da primeira infância, com a criação de ritos e mitos da infância, e prossegue com a conformação de palavras vestidas de conceitos e símbolos durante a segunda infância e a adolescência, numa permanente pedagogia de autocontenção da violência instintiva do ser humano em suas relações interpessoais que ocorre durante a adolescência, até a desejável maturidade afetiva e intelectual da idade adulta.

Todavia, quando uma determinada pessoa está submetida a pressões permanentes, tanto em seu meio social e político, quanto nas relações mais próximas, sejam familiares ou de vizinhança, passa a determinar-se em suas atitudes cotidianas buscando sinais de perigo, com base em suas percepções linguística de amplo espectro (não-verbal e pré-verbal), e, assim, cria-se ressalvas comportamentais e pessoais, para se precaver dos perigos mais iminentes aos mais remotos percebidos numa espécie de sociedade em que impera o princípio da desconfiança.

O brasileiro, como digno representante de seus antepassados lusos, é este tipo de cidadão submetido ao absurdo social acima descrito como sociedade da desconfiança, seja oriunda nos mais altos níveis sociais pela permanente atuação de uma cleptocracia irresponsável com o bem comum, seja pela rotina de uma criminalidade que invade todos os aspectos do cotidiano da vida privada de cada cidadão.

Uma estrutura social baseada na desconfiança tende prevenir-se de uma potencial anarquia resultante de tal instabilidade que lhe é inerente, todo cidadão em tais circunstâncias é uma potencial vítima de crises sacrificiais, como ocorre quando se pratica um linchamento, em que a violência é descarregada sobre um culpado eleito por uma massa dominada pelo desejo de vingança, e cuja vítima eventualmente poderia ser inocente em relação à acusação que motiva o ataque contra si.

Neste ponto, é que resgato a noção cultural e antropológica brasileira de "cordialidade", como uma manifestação de inteligência social típica de sujeitos que necessitam sobreviver às adversidades de um ambiente na qual a confiança é o elemento mais desvalorizado.

Por exclusão, o brasileiro acaba por necessitar se refugiar nas relações interpessoais mais íntimas, seja a família, sejam as confrarias representadas por profissões, por associações com finalidades pias, políticas, desportivas ou mesmo por integrar sociedades iniciáticas das mais diversas matizes.

Em certa medida, os espaços públicos no âmbito da cultura brasileira, são zonas de perigo, ou de pura e simples exploração da boa-fé alheia, e, numa circunstância desta natureza, ao brasileiro somente resta desenvolver técnicas de convivência que apelam para elementos não-verbais e pré-verbais de forte caráter comunicativo em sua natureza emocional.

O brasileiro encara cada pessoa à sua frente como um predador em potencial, e há que haver algum elemento de salvaguarda social, que permita à percepção do sujeito a interação com menor o prejuízo potencial possível.

Nesta base é o estudo do nosso fenômeno cultural denominado de "homem cordial" é fundamental, como elemento constituinte da nossa antropologia social.

A valorização adequada dos aspectos positivos e o desenvolvimento dos modos de superação dos aspectos negativos relacionados ao fenômeno do "homem cordial" é uma das mais importantes contribuições da civilização brasileira para a humanidade.

O ponto de vista pessimista em relação à cordialidade brasileira é muito marcante em Sérgio Buarque de Holanda, enquanto que uma visão mais generosa é exposta por Gilberto Freire.

Creio que é muito interessante trabalhar a definição de "homem cordial" como uma forma de ser que não se prende aos elementos formais e lógico-racionais de uma filosofia da linguagem positivista, que somente considera a palavra falada e escrita, mas, sim, que se trata de uma percepção da humanidade que valoriza adequadamente o elemento emocional da comunicação humana.

O modo de ser nacional, com todos os seus defeitos de origem, e suas taras e deformações, é uma contribuição relevante, pois demonstra que um povo inteiro pode desenvolver mecanismos de mediação externa que suplantam conflitos que em outras culturas implicam em desastres, não é à toa que a história brasileira é uma narrativa de comédias no sentido dado por Aristóteles, ou seja, uma tragédia que não aconteceu, pois persiste um instinto de sobrevivência na psicologia das massas brasileiras que permitiu que grandes eventos históricos não sofressem seus últimos desenvolvimentos trágicos, talvez seja por isso que sejamos tão faltos de grandes guerras civis e revoluções sanguinárias, e, por outro lado, somos a nação na qual a legislação concessiva de anistias foi tão abundante aos longo de sua história.

O brasileiro, por ser afogado num ambiente de cotidiano hostil, desenvolveu a habilidade de perceber, em suas relações sociais e institucionais, o espectro emocional da linguagem (não-verbal e pré-verbal) e perceber sua condição de potencial vítima, seja diante de seu próprio governo, ou até mesmo diante do mais humilde de seus vizinhos, numa sociedade em que um povo ordeiro e trabalhador tem que conviver com uma anarquia institucionalizada pelos representantes do Poder governante.

Portanto, há um elemento de "inteligência cordial", definível como estratégia racional e emocional de sobrevivência do brasileiro, por este ter a percepção intuitiva de ser a potencial vítima de sacrificadores igualmente cordiais, e vice versa,

É a sociedade brasileira, praticamente, uma sociedade em guerra fria consigo mesmo, que sobrevive em tênue equilíbrio operacionalizado pelo fenômeno da "cordialidade".

Por fim, complemento que minha hipótese acerca deste tênue equilíbrio social possui entre seus elementos cordiais, que estão em constante troca de posições vítima/sacrificador, só é possível em razão de nosso forte substrato cultural fundado na revelação cristã, que nos permite perceber que a vítima é sempre inocente.

Werner Nabiça Coêlho

FICHAMENTO: FIÉIS ÀS NOSSAS EMOÇÕES DE ROBERT C. SOLOMON



De fato, paradoxalmente, sugeriria que as emoções são até mais centrais à racionalidade do que a razão e o raciocínio, porque sem elas (como argumentou David Hume, alguns séculos atrás, no Tratado sobre a natureza humana) a razão não tem objetivo ou foco. A recente pesquisa psiquiátrica e neurológica tende a confirmar isso. (p. 20-1)

As emoções de que me ocuparei neste livro não serão, portanto, as súbitas "explosões" que tanto fascinam os neurocientistas e alguns psicólogos, mas as emoções e obsessões de longo prazo que nos têm fascinado através da história... (p. 21)

...emoções são processos que por sua própria natureza, levam tempo e podem, de fato, continuar ininterruptamente. Não são necessariamente conscientes. (p. 22)

Um grande problema é nossa tendência a pensar em uma emoção como um evento psicológico separado. (p. 22)

Uma emoção é um processo complexo que engloba vários e diferentes aspectos da vida de uma pessoa, incluindo interações e relações com outras pessoas, bem como seu bem-estar físico, ações, gestos, expressões, sentimentos, pensamentos e experiências semelhantes. (p. 22)

...gostaria de iniciar com a opinião - hesitante e irônica que posse ser - de que nós não sabemos o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa. (p. 24)

Temos que aprender como reconhecer nossas emoções, como lidar com elas, como usá-las, e isso é um conjunto de habilidades que a maioria de nós reuniu apenas acidentalmente, sem pensar e de forma inadequada. (p. 24)

Há em andamento sérios debates sobre se as emoções formam uma classe unificada e se são "realmente" fisiológicas, como alguns argumentariam, ou se assemelham-se mais a julgamentos de valor ou tendências comportamentais. No entanto, não é como se não tivéssemos ideia do que estamos examinando aqui. Entretanto, compreender é muito mais do que meramente ser capaz de concordar a respeito de um assunto. (p. 24-5)

Baseado em Sartre, argumentarei que nossas emoções são estratégias por meio das quais nos tornamos felizes ou infelizes e que dão significado a nossas vidas. Ao cultivar nossas emoções, determinamos as virtudes e os vícios que nos fazem pessoas melhores ou piores. (p. 26)

vivemos em nossas emoções e por meio delas (p. 26)

Se alguém se importa com alguma coisa - e é virtualmente impossível imaginar alguém que com nada se importe - , esse alguém terá emoções. (p. 27)

...emoção básica é aquela essencialmente neurológica (ou melhor, neuro-hormonal-muscular). Consiste numa resposta complexa mais ou menos fixa, uma síndrome que envolve certas partes do cérebro e dos sistema endócrino e características expressões comportamentais hard-wiredi, especialmente faciais. (p. 34)

...as emoções são sentimentos, no sentido de que são tipicamente experimentadas. (p. 35)

...uma emoção é (pelo menos em grande parte) uma experiência (um "sentimento"), mas não deve ser, de modo algum, identificada com algo semelhante a uma sensação ("sentimento" nesse outro sentido. (p. 35)

A raiva (como todas as emoções) é um fenômeno cognitivo e impregnado de valores, não apenas um estado ou evento momentâneo, mas um processo complexo que prossegue através do tempo e pode durar muito. Envolve necessariamente sentimento e julgamento, bem como fisiologia, e, às vezes, especialmente depois de certo período, pode haver pouca resposta fisiológica  evidente. (p. 37)

É uma forma de interagir com outra pessoa (situação ou tarefa) e um modo de situar-se no mundo. (p. 41)

...uma emoção é um engajamento autoconsciente no mundo e, para compreender a raiva, temos de compreender exatamente que tipo de engajamento é esse. (p. 41)

...quero adotar uma perspectiva existencialista e falar sobre o que fazemos com nossas emoções, e não apenas sobre o que as causa. (p. 43)

...com frequência, as emoções são hábitos, até certo ponto aprendidos, mas também fruto de prática e repetição. (p. 44)

Hábitos emocionais são produto de vias bastante usadas e dependências químicas bem-estabelecidas. (p. 44)

...a ideia de que as emoções são estratégias sugere que a perspectiva em que melhor aprendemos sobre as emoções é na segunda pessoa, na interação e troca interpessoais. Portanto, a raiva (e outras emoções) está menos "na" mente (nem corpo ou no cérebro) e mais do lado de fora, no espaço social e interpessoal. (p. 45)

...a raiva é uma emoção literalmente julgadora ou magistral. (p. 48)

Na raiva, o indivíduo coloca-se no papel superior de juiz e jurado. (p. 48)

...na raiva, o outro é levado a julgamento. Ainda mais poderosa e mais julgadora é a indignação moral, uma emoção em que se acusa o outro não apenas em benefício próprio, mas em nome de um princípio moral. (p. 48)

A vantagem estratégica desse esquema deveria ser óbvia. Emergindo de uma situação em que ferida, ofendida ou humilhada, a pessoa se reposiciona como superior, até virtuosa. É uma posição psicológica poderosa. É também bastante presunçosa, motivo pelo qual a tradição cristã, justificadamente, faz advertências a respeito. (p. 48)

Não há ocasiões em que a raiva é perfeitamente razoável? (p. 48)

...a raiva pode ser, muitas vezes, uma resposta razoável e racional à adversidade. (p. 49)

...a ideia de que a raiva é uma forma de engajamento no mundo. Ficamos com raiva de alguém, alguma coisa. Consequentemente, a questão importante é se a raiva está corretamente dirigida, se escolheu o objeto certo (o ofensor) e se é justificada pela situação. (A pessoa-alvo pode ser de fato o ofensor, mas a ofensa ser tão insignificante que não justifica a raiva.) Se tanto o objeto está correto como se justifica a seriedade da acusação, então a raiva é racional e razoável. (p. 49)

Porém, se a raiva também pode ser uma estratégia,  existe uma consideração adicional, além da precisão e da justiça que governa a racionalidade da raiva. Em outras palavras, ficar com raiva serve aos objetivos finais da pessoa?. (p. 50)

...a raiva é sensata dependendo de se encaixar ou não nos objetivos de longo prazo da pessoa.. (p. 50)

O que aprendemos, então? Que a raiva não é apenas um sentimento autocontido, mas um engajamento com outras pessoas e com o mundo, que pode ser mais ou menos justificado, mais ou menos primitivo ou refinado, mais ou menos gratificante e mais ou menos adequado moralmente. Como estratégia, não é apenas algo que nos acontece, mas algo que colocamos em ação, quer refletidamente, quer não. Isso levanta uma última questão que quero deixar pendente ao longo destes capítulos iniciais. Às vezes, talvez com frequência, aquilo que fazemos não é imediatamente óbvio para nós. Grande parte de nossa vida emocional é, como insistiu Freud, inconsciente.. (p. 52-3)

Considero o inconsciente não apenas como uma profunda descoberta psicanalítica, mas como um dado fundamental. As pessoas nem sempre sabem quando estão com raiva e nem sempre sabem o que sentem.. (p. 53)

Robert C. Solomon, Fiéis às nossas emoções: o que elas realmente nos dizem; tradução de Miriam Gabaglia de Pontes Medeiros. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

domingo, 19 de junho de 2016

- SÉRIE O HOMEM CORDIAL - O JEITO DE SER NACIONAL TEM SEU VALOR! O QUE É O "HOMEM CORDIAL"?




A expressão "homem cordial" é do escritor Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicação Monterey.

Cumpre ainda ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimento positivos de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado.

(Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012, p. 102)