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Jean-Paul Sartre, o filósofo do relativismo e da má-fé |
Prefácio
“A má-fé é
mentira, mas mentira para si mesmo, explica Sartre.
Trata-se, na má-fé,
de ‘mascarar uma verdade desagradável ou de apresentar como
verdade um erro agradável. A má-fé, portanto, tem a estrutura da
mentira. Mas o que muda tudo é que na má-fé eu mascaro a verdade
para mim mesmo. A dualidade do enganador e do enganado não existe
aqui [...] aquele ao qual se mente e aquele que mente são uma única
e mesma pessoa, o que significa que devo saber, enquanto enganador, a
verdade que me é mascarada enquanto sou enganado’. Assim se
apresenta segundo Sartre, o paradoxo da má-fé. (p. 07)
“[...] ‘uma certa
arte de formar conceitos contraditórios, isto é, que unem em si uma
idéia e a negação dessa idéia’” (p. 08).
LECOURT, Dominique.
Erros agradáveis, verdades desagradáveis.
“A bioética
apresenta-se primeiramente com um conjunto mais ou menos bem amarrado
de discursos de alerta sobre as perspectivas abertas pelas pesquisas
biomédicas, de algumas interrogações metafísicas mais ou menos
conhecidas sobre a pessoa humana combinadas com a recordação sonora
de alguns imperativos pretensamente categóricos” (p. 09)
“A sistematização
que está ocorrendo em escala internacional tem o grande mérito de
esclarecer essa máscara com uma luz razoavelmente direta” (p. 11)
“[...] a bioética
tende a apresentar-se como o viés pelo qual o direito poderia se
fundar em uma ética de valor universal. Realmente, seria muito
agradável ter resolvido (até que enfim!) desse modo a questão
filosófica lancinante que o Ocidente moderno até agora não tinha
conseguido solucionar: a de encontrar uma garantia absoluta
(atemporal) para seus sistemas jurídicos.”
“[...] a ética
constitui o discurso que enuncia os princípios da compatibilidade
geral entre esses sistemas em um dado momento. A ética não é
primeira, mas a segunda em relação ao direito, assim como em
relação aos outros sistemas. Mesmo que ela tenha filosoficamente o
discurso do fundamento para unifica-los e para que os indivíduos se
tornem acessíveis às prescrições e proibições da moral que é
retirada desses discursos. Prescrições e proibições que tomam
esses indivíduos pelo corpo (o sexo e os prazeres) com o fim de dar
forma a seus modos de existir como pessoas (no âmbito social)” (p.
11-12)
“As questões ditas
de bioéticas não deverão ser tomadas, ao contrário, como convites
à revisão das próprias bases de nossa concepção dos ‘direitos
humanos’, particularmente se nos interrogarmos sobre as
consequências imaginárias do poder dos sistemas normativos sobre os
membros de toda sociedade?” (p. 14)
MEMMI, Dominique. O que
fazer com o corpo hoje?
“’Em toda
sociedade, o corpo se encontra no interior de poderes muito
compactos, que lhe impõem coações, proibições, obrigações’,
diz Michel Foucault”. Como se exerce esse controle hoje? Na recusa
do caráter arbitrário e imperativo dessas normas. Isso, ao menos, é
o que parece ilustrar o funcionamento do primeiro comitê de
‘especialistas’ criado na França, em 1983, o Comité
Consultantif National d’Éthique.” (p. 15)
“A reatualização do
termo ‘ética’, que joga com a ambiguidade semântica entre as
noções de moral da ciência e de ciência da moral, assinala essa
preocupação de distinção intelectual. Uma análise dos 34
pareceres e dos 3 relatórios produzidos pelo Comitê desde a sua
criação até o seu décimo aniversário” (p. 15)
“A recusa de toda
‘apropriação disciplinar’ da bioética, a reinvindicação
constante da interdisciplinaridade, mas também a rejeição do termo
de ‘especialista em ética’, isto é, de toda profissionalização
desse empreendimento de fabricação de normas sobre os usos do
corpo, eis outro topoi próprio dos meios da bioética,
sinônimo da ausência de certeza nesses assuntos” (p. 17)
“Essa auto-restrição
generalizada é acompanhada por uma valorização moralizante dessas
mutilações. Louva-se a humildade do Comitê, sua retidão
ou a grandeza de sua renúncia. Os membros do Comitê também
se mostram perturbados com perguntas sobre os efeitos concretos de
seu trabalho ali” (p. 18)
“[...] nossos
interlocutores ficaram literalmente sem ter o que falar diante de
qualquer pergunta precisa sobre esse assunto” (p. 19)
“Tudo se passa então
como se os especialistas em ética estivessem socialmente proibidos,
no exercício de sua função, de ter, além de uma opinião ‘na
primeira pessoa’, um pensamento que seja da ordem do ‘sim’ ou
do ‘não’, um pensamento eficaz ou autoritário” (p. 19-20)
“A autolimitação
consentida do próprio poder por parte dos especialistas em ética,
tanto dentro como fora do Comitê, é em parte ilusória” (p. 20)
“O silêncio
prolongado, a perplexidade nas entrevistas dos especialistas em
reprodução assistida, como a renúncia entusiasmada dos membros do
Comitê, traduzem de fatos os limites da autorização social
de que os especialistas em ética dispõem, e mais que isso: as
limitações de legitimidade, que hoje abarcam a imposição de
normas referentes ao corpo humano” (p. 21-22)
“Uma regulação por
meio de palavras
E, contudo, o que ele
fazem não é inexpressivo. ‘Valores’, ‘prudência’, ‘ética’:
o que choca aqui é a intensidade do esforço investido na fabricação
de palavras” (p. 22)
“Em que consistiu de
fato o trabalho efetivo do Comitê? Em não dar razão nem aos
comerciantes nem aos padres” (p. 22)
[...] em 1975, aborto
foi introduzido na França, foi preciso inventar uma delimitação de
seus usos possíveis que pudesse tranquilizar as pessoas preocupadas
com a vida prometida no embrião. Sem, em 1984, a invenção da noção
de ‘pessoa humana potencial’ representou uma operação tão
importante no Comitê, é porque ela representa a versão científica,
conceitual, dessa busca persistente de compromisso [...] O direito
havia inventado, no início dos anos 1950, no momento da
regulamentação das doações de sangue, uma categoria intermediária
entre a pessoa e a coisa: ‘a substância de origem humana’” (p.
23)
“[...] O que está em
jogo é evidente: encontrar entre duas posições vistas pelos
eticistas contemporâneos como impossíveis, a que defendo que o
corpo é um ‘aglomerado de células’ infinitamente manipulável
e a que defende que ele é intocável, dependente somente da vontade
da natureza ou de Deus: ‘Eu estava de acordo com a idéia de pessoa
humana potencial. Isso permite manter a interrupção voluntária da
gravidez e, ao mesmo tempo proteger o embrião. Felizmente, a questão
do momento em que o embrião se torna pessoa não foi decidida (Soc.
59). Em Suma, para anular os católicos e, mais ainda, os humanistas
leigos e os comerciantes era preciso inventar uma sacralidade
não-metafísica” (p. 23-24)
“O mesmo foi feito
para garantir-se contra os comerciantes. Dos 34 pareceres gerados
pelo Comitê durante a década de 1983-1993 emerge a preocupação
constante de afastar do corpo toda ameaça de redução a mercadoria.
Isso começa cedo. Dois dos três primeiro pareceres (pareceres n. 1
e 3) invoncam o princípio de não-comercialização do corpo humano.
(p. 24)
“Aversão ao corpo
mercantil, portanto, mas sem retorno resoluto ao sagrado tradicional
[...] uma posição discreta a favor da ciência e da transformação
dos costumes provocada por sua evolução. O conjunto do dispositivo
ético se parece com uma operação de dessacralização – muito
controlada – dos corpos em benefício dos novos usos sociais e
científicos que deles são feitos” (p. 25)
LECOURT, Dominique;A bioética é de má-fé? Tradução de Nicolás Nyimi Campanário, Edições Loyola, 2002