Mostrando postagens com marcador Mentira. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mentira. Mostrar todas as postagens

sábado, 4 de maio de 2019

MITO E VERDADE




Vamos lá, o mito é sinônimo de mentira?

Também assisti aulas de introdução à filosofia em que utilizava-se bibliografia marxista de história da filosofia, em particular com citações do Jean-Pierre Vernant, que adota aquela balela de que a filosofia grega aconteceu por conta da criação da moeda e outras tontices de cunho materialista, como se a tal de "infraestrutura" (estrutura econômica) fosse a origem imanente do "superestrutura" (cultura).

Prefiro inverter esta equação e apostar na força do espírito como a pedra fundamental sobre a qual são estabelecidas as conquistas humanas, e tal poder manifesta-se no mundo pelo Poder da Linguagem.

A realidade da linguagem pode ser encarada com base em 04 momentos dinâmicos, simultâneos do ponto de vista ontológico, e sucessivos de um perspectiva lógica, isto é, a estrutura da linguagem em seus quatro níveis (poético, retórico, dialético e lógico) é o pressuposto para a possibilidade de existência de um infraestrutura ou uma superestrutura, pois sociedade, produção e cultura somente sustentam-se com base no exercício da correta comunicação, na eficaz proliferação de conhecimento e seu desenvolvimento, não à toa a sociedade do conhecimento é o momento histórico que vivenciamos.

Aliás, a teoria dos quatro discursos que sintetizei acima é uma criação do Olavo de Carvalho, que com base na filosofia aristotélica nos fornece uma excelente ferramenta de descrição da realidade em seu aspecto linguístico.

Mas, remetendo-me à questão inicial, penso que o mito é a verdade apreendida pela imaginação encantada pela realidade concreta, é a verdade inerente ao símbolo, a verdade da poesia e da arte, a verdade com todas as possibilidades, com todos os exageros e todas as hipérboles, mas é a verdade que doa vida às demais formas de linguagem.

O mito, portanto, é portador de verdades fundamentais da realidade, e, também, de ilusões, porque é a linguagem dos símbolos, é de onde principia a própria linguagem, e de onde nascem as outras formas de linguagem, que por sua vez geram novas visões mitológicas e imaginativas.

Entre tantas mitologias vigentes há o mito da superioridade absoluta da ciência, crítica e materialista, como forma de conhecimento incontestável, um símbolo que dentro dos limites do método científico, abstrativista e especializado, é incontestável, todavia, quando considerado dentro dos limites da realidade é uma falsidade que causa inúmeros perigos e desvios.

O mito quando perde seu caráter simbólico conectado com a realidade concreta, e torna-se um símbolo de uma idéia negadora da realidade, aí sim, será uma mentira das mais deslavadas e nuas.

domingo, 8 de julho de 2018

O REINO DA MENTIRA - RUI BARBOSA



O REINO DA MENTIRA*

Mentira tôda ela. Mentira de tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu, onde, segundo Padre Vieira, que não chegou a conhecer o Dr. Urbano dos Santos, o próprio sol mentia ao Maranhão, e diríeis que, hoje, mente ao Brasil inteiro. Mentira nos protestos. Mentira nas promessas. Mentira nos programas. Mentira nos projetos. Mentira nos progressos. Mentira nas reformas. Mentira nas convicções. Mentira nas transmutações. Mentira nas soluções. Mentira nos homens, nos atos e nas cousas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações e nos blocos. Mentira dos caudilhos aos seus apaniguados, mentira dos seus apaniguados aos caudilhos, mentira de caudilhos e apaniguados à nação. Mentira nas instituições. Mentira nas eleições. Mentira nas apurações. Mentira nas mensagens. Mentiras nos relatórios. Mentira nos inquéritos. Mentira nos concursos. Mentira nas embaixadas. Mentira nas candidaturas. Mentiras nas garantias. Mentira nas responsabilidades. Mentira nos desmentidos. A mentira geral. O monopólio da mentira. Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por se não se discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vêzes não sabem se estão, ou não estão mentindo. Um ambiente, em suma, de mentiraria, que, depois de ter iludido ou desesperado os contemporâneos, corre o risco de lograr ou desesperar os vindouros, a posteridade, a história, no exame de uma época, em que, à fôrça de se intrujarem uns aos outros, os políticos, afinal, se encontram burlados pelas suas próprias burlas, e colhidos nas malhas da sua própria intrujice, como é precisamente agora o caso.

Já se entoou no parlamento republicano o panegírico do jôgo. Já se lavrou na imprensa da atualidade a apologia da perfídia. Ainda não se ensaiou, numa tribuna ou na outra, a glorificação da mentira. Mas há de vir. Há de estar próxima. Já tarda. Não se concebe que se haja demorado tanto. É a justiça da nossa época a si mesma. Pelo hábito de preterir a tudo, acaba ela sem fim, destarte, preterindo a si própria. 

(Rui Barbosa, Campanhas Presidenciais, 2ª edição, Livraria Editora Iracema, São Paulo, 1966, p. 165-6)

*Conferência proferida na Associação Comercial do Rio de Janeiro, em 8 de março de 1919, por ocasião da campanha presidencial em que teve como antagonista o senador Epitácio Pessoa. Rui venceu em todas as grandes capitais e cidades do Brasil.

domingo, 15 de abril de 2018

FICHAMENTO: A BIOÉTICA É DE MÁ-FÉ?

Jean-Paul Sartre, o filósofo do relativismo e da má-fé


Prefácio

“A má-fé é mentira, mas mentira para si mesmo, explica Sartre.

Trata-se, na má-fé, de ‘mascarar uma verdade desagradável ou de apresentar como verdade um erro agradável. A má-fé, portanto, tem a estrutura da mentira. Mas o que muda tudo é que na má-fé eu mascaro a verdade para mim mesmo. A dualidade do enganador e do enganado não existe aqui [...] aquele ao qual se mente e aquele que mente são uma única e mesma pessoa, o que significa que devo saber, enquanto enganador, a verdade que me é mascarada enquanto sou enganado’. Assim se apresenta segundo Sartre, o paradoxo da má-fé. (p. 07)

“[...] ‘uma certa arte de formar conceitos contraditórios, isto é, que unem em si uma idéia e a negação dessa idéia’” (p. 08).

LECOURT, Dominique. Erros agradáveis, verdades desagradáveis.

“A bioética apresenta-se primeiramente com um conjunto mais ou menos bem amarrado de discursos de alerta sobre as perspectivas abertas pelas pesquisas biomédicas, de algumas interrogações metafísicas mais ou menos conhecidas sobre a pessoa humana combinadas com a recordação sonora de alguns imperativos pretensamente categóricos” (p. 09)

“A sistematização que está ocorrendo em escala internacional tem o grande mérito de esclarecer essa máscara com uma luz razoavelmente direta” (p. 11)

“[...] a bioética tende a apresentar-se como o viés pelo qual o direito poderia se fundar em uma ética de valor universal. Realmente, seria muito agradável ter resolvido (até que enfim!) desse modo a questão filosófica lancinante que o Ocidente moderno até agora não tinha conseguido solucionar: a de encontrar uma garantia absoluta (atemporal) para seus sistemas jurídicos.”

“[...] a ética constitui o discurso que enuncia os princípios da compatibilidade geral entre esses sistemas em um dado momento. A ética não é primeira, mas a segunda em relação ao direito, assim como em relação aos outros sistemas. Mesmo que ela tenha filosoficamente o discurso do fundamento para unifica-los e para que os indivíduos se tornem acessíveis às prescrições e proibições da moral que é retirada desses discursos. Prescrições e proibições que tomam esses indivíduos pelo corpo (o sexo e os prazeres) com o fim de dar forma a seus modos de existir como pessoas (no âmbito social)” (p. 11-12)

“As questões ditas de bioéticas não deverão ser tomadas, ao contrário, como convites à revisão das próprias bases de nossa concepção dos ‘direitos humanos’, particularmente se nos interrogarmos sobre as consequências imaginárias do poder dos sistemas normativos sobre os membros de toda sociedade?” (p. 14)

MEMMI, Dominique. O que fazer com o corpo hoje?

“’Em toda sociedade, o corpo se encontra no interior de poderes muito compactos, que lhe impõem coações, proibições, obrigações’, diz Michel Foucault”. Como se exerce esse controle hoje? Na recusa do caráter arbitrário e imperativo dessas normas. Isso, ao menos, é o que parece ilustrar o funcionamento do primeiro comitê de ‘especialistas’ criado na França, em 1983, o Comité Consultantif National d’Éthique.” (p. 15)

“A reatualização do termo ‘ética’, que joga com a ambiguidade semântica entre as noções de moral da ciência e de ciência da moral, assinala essa preocupação de distinção intelectual. Uma análise dos 34 pareceres e dos 3 relatórios produzidos pelo Comitê desde a sua criação até o seu décimo aniversário” (p. 15)

“A recusa de toda ‘apropriação disciplinar’ da bioética, a reinvindicação constante da interdisciplinaridade, mas também a rejeição do termo de ‘especialista em ética’, isto é, de toda profissionalização desse empreendimento de fabricação de normas sobre os usos do corpo, eis outro topoi próprio dos meios da bioética, sinônimo da ausência de certeza nesses assuntos” (p. 17)

“Essa auto-restrição generalizada é acompanhada por uma valorização moralizante dessas mutilações. Louva-se a humildade do Comitê, sua retidão ou a grandeza de sua renúncia. Os membros do Comitê também se mostram perturbados com perguntas sobre os efeitos concretos de seu trabalho ali” (p. 18)

“[...] nossos interlocutores ficaram literalmente sem ter o que falar diante de qualquer pergunta precisa sobre esse assunto” (p. 19)

“Tudo se passa então como se os especialistas em ética estivessem socialmente proibidos, no exercício de sua função, de ter, além de uma opinião ‘na primeira pessoa’, um pensamento que seja da ordem do ‘sim’ ou do ‘não’, um pensamento eficaz ou autoritário” (p. 19-20)

“A autolimitação consentida do próprio poder por parte dos especialistas em ética, tanto dentro como fora do Comitê, é em parte ilusória” (p. 20)

“O silêncio prolongado, a perplexidade nas entrevistas dos especialistas em reprodução assistida, como a renúncia entusiasmada dos membros do Comitê, traduzem de fatos os limites da autorização social de que os especialistas em ética dispõem, e mais que isso: as limitações de legitimidade, que hoje abarcam a imposição de normas referentes ao corpo humano” (p. 21-22)

“Uma regulação por meio de palavras

E, contudo, o que ele fazem não é inexpressivo. ‘Valores’, ‘prudência’, ‘ética’: o que choca aqui é a intensidade do esforço investido na fabricação de palavras” (p. 22)

“Em que consistiu de fato o trabalho efetivo do Comitê? Em não dar razão nem aos comerciantes nem aos padres” (p. 22)

[...] em 1975, aborto foi introduzido na França, foi preciso inventar uma delimitação de seus usos possíveis que pudesse tranquilizar as pessoas preocupadas com a vida prometida no embrião. Sem, em 1984, a invenção da noção de ‘pessoa humana potencial’ representou uma operação tão importante no Comitê, é porque ela representa a versão científica, conceitual, dessa busca persistente de compromisso [...] O direito havia inventado, no início dos anos 1950, no momento da regulamentação das doações de sangue, uma categoria intermediária entre a pessoa e a coisa: ‘a substância de origem humana’” (p. 23)

“[...] O que está em jogo é evidente: encontrar entre duas posições vistas pelos eticistas contemporâneos como impossíveis, a que defendo que o corpo é um ‘aglomerado de células’ infinitamente manipulável e a que defende que ele é intocável, dependente somente da vontade da natureza ou de Deus: ‘Eu estava de acordo com a idéia de pessoa humana potencial. Isso permite manter a interrupção voluntária da gravidez e, ao mesmo tempo proteger o embrião. Felizmente, a questão do momento em que o embrião se torna pessoa não foi decidida (Soc. 59). Em Suma, para anular os católicos e, mais ainda, os humanistas leigos e os comerciantes era preciso inventar uma sacralidade não-metafísica” (p. 23-24)

“O mesmo foi feito para garantir-se contra os comerciantes. Dos 34 pareceres gerados pelo Comitê durante a década de 1983-1993 emerge a preocupação constante de afastar do corpo toda ameaça de redução a mercadoria. Isso começa cedo. Dois dos três primeiro pareceres (pareceres n. 1 e 3) invoncam o princípio de não-comercialização do corpo humano. (p. 24)

“Aversão ao corpo mercantil, portanto, mas sem retorno resoluto ao sagrado tradicional [...] uma posição discreta a favor da ciência e da transformação dos costumes provocada por sua evolução. O conjunto do dispositivo ético se parece com uma operação de dessacralização – muito controlada – dos corpos em benefício dos novos usos sociais e científicos que deles são feitos” (p. 25)

LECOURT, Dominique;A bioética é de má-fé? Tradução de Nicolás Nyimi Campanário, Edições Loyola, 2002