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terça-feira, 1 de maio de 2018

FICHAMENTO: O QUE É O SENTIMENTALISMO?



[...] uma importante característica do tipo de sentimentalismo [...] seu caráter público (p. 75)

[...] consequência de viver num mundo moderno, incluindo um mundo mental, tão amplamente saturado por produtos da mídia de massa. Nesse mundo, aquilo que é feito ou que acontece em privado não é feito ou não aconteceu absolutamente, ao menos não no sentido mais pleno possível. (p. 75-76)

A expressão pública do sentimentalismo tem consequências importantes. Em primeiro lugar, ela demanda uma resposta daqueles que a testemunharam. [...] Há, portanto, algo coercivo ou intimidador em exibições públicas de sentimentalismo. Tome parte ou, no mínimo, evite criticar. (p. 76)

Uma pressão inflacionária também age sobre essas exibições. [...] exibições emotivas cada vez mais extravagantes se tornam necessárias [...] (p. 76)

Em segundo lugar, exibições de sentimentalismo público não coagem apenas os transeuntes ocasionais [...], mas quando são suficientemente fortes ou disseminadas, começam a afetar políticas públicas. [...] permite que o governo jogue ossos para o público em vez de enfrentar os problemas de maneira determinada e racional, ainda que também inconvenientemente controversa. (p. 76)

Entre os defensores mais notáveis do sentimentalismo estava o filósofo americano Robert C. Solomon, que faleceu em 2007. Solomon acreditava, com razão, acho eu, que as emoções eram necessárias para toda atividade cognitiva e pensamento racional. Sem uma postura emocional em relação ao mundo, no fim das contas, ninguém faria nada, pensaria nada nem buscaria nada. Um estado de completa neutralidade emocional logo levaria à morte por inanição. (p. 76-77)

Solomon, porém, foi adiante. Em seu livro In Defense of Sentimentality [Em Defesa do Sentimentalismo], há um capítulo intitulado "Sobre o Kitsch e o Sentimentalismo", em que ele tenta defender o sentimentalismo refutando as objeções contra ele uma por uma. As objeções são seis, como se segue:

i. Que o sentimentalismo envolve ou provoca uma expressão excessiva da emoção.
ii. Que o sentimentalismo manipula nossas emoções.
iii. Que as emoções expressas no sentimentalismo são falsas ou fingidas.
iv. Que as emoções expressas no sentimentalismo são baratas, fáceis e superficiais.
v. Que o sentimentalismo é autoindulgente, impedindo conduta e respostas apropriadas.
vi. Que o sentimentalismo distorce nossas percepções e interfere no pensamento racional e na compreensão adequada do mundo. (p. 77)

"A questão não é se deve haver emoções, mas como, quando e em que grau elas devem ser expressadas, e que papel elas devem desempenhar na vida humana" (p. 78, itálicos no original)

"Claro que culturas diferentes podem diferir em relação a quanta emoção deve ser expressada; porém, duvido muito de que haja uma só em que não exista a ideia de um a expressão excessiva da emoção (ainda que isso seja apenas uma ideia implícita, manifestada pela desaprovação social)" (p. 78)

"Assim, há um consenso universal de que a expressão da emoção deveria ser consoante tanto com a própria emoção quanto com a situação social, ainda que não haja acordo quanto ao ponto preciso em essa expressão se torna excessiva. [...] (p. 79)

"Sobre o razoável pressuposto de que a emoção está sob controle consciente, o grau em que ela é expressa é, portanto, uma questão moral. Aquilo que é permissível e até louvável entre pessoas íntimas e confidentes é repreensível entre estranhos. De fato, o desejo ou a exigência de que todas as emoções  sejam igualmente expressáveis em todas as ocasiões e em todos os momentos destrói a possibilidade mesma de intimidade. Se o mundo inteiro é seu confidente, então ninguém é. A distinção entre o privado e o público é abolida, e a vida, por conseguinte, fica mais rasa. (p. 79)

"Mas não é só a expressão da emoção (que Solomon mistura com a própria emoção) que deve ser disciplinada, é a própria emoção que deve ser sujeita à disciplina." (p. 79)

"[...] O apetite cresce com a alimentação; a emoção também cresce com sua expressão." (p. 80)

"[...] o caráter de um homem é em parte obra dele mesmo, e aquilo que de início demanda esforço e autocontrole acaba se tornando uma disposição." (p. 80)

"[...] um ponto cartesiano da epistemologia moral: estou encolerizado, portanto estou certo." (p. 81)

"[...] O calor confortante e gratuito do sentimento é um fim em si mesmo, uma mera muleta para a autoestima." (p. 82)

"Além disso, quando o sentimentalismo se torna um fenômeno público de massa, ele se torna manipulador de um jeito agressivo: exige que todos tomem parte. Um homem que se recuse, afirmando não acreditar que o pretenso objeto de sentimento seja digno de exibição demonstrativa, coloca-se fora do âmbito virtuoso e torna-se praticamente um inimigo do povo. Sua culpa é política, uma recusa em reconhecer a verdade do velho adágio vox populi, vox dei - a voz do povo é a voz de Deus. O sentimentalismo então se torna coercitivo, isto é, manipulador de maneira ameaçadora." (p. 82)

"Em um estado de sentimentalismo, certamento do tipo vivido em público, a pessoa é mais comovida pelo fato de ser comovida do que por aquilo que supostamente a está comovendo. Além disso, está interessada em que todos vejam o quão comovida está. O trigo do sentimento genuíno é logo perdido no joio das considerações secundárias; e, tendo o exagero uma lógica própria, o joio tende a aumentar." (p. 83)

"Sem dúvida, todos nós caímos no sentimentalismo às vezes (porque é mesmo estranho que a música barata seja tão forte), sem que ninguém sogra nenhum mal. [...] Mas aquilo que é inofensivo em privado não é necessariamente inofensivo, muito menos benéfico, em público; e aqueles que acham que sua conduta privada e pública deveria ser sempre a mesma, por medo de na diferenciação introduzir a hipocrisia, têm uma visão da existência humana que carece de sutileza, de ironia e, sobretudo, de realismo." (p. 84-5)

"Contudo, diz Solomon, pessoas como os filósofos gostam de usar a razão e a lógica não só para obter as verdades que resultarão de seu uso, mas porque fazer isso é satisfatório em si mesmo, e também um traço distintivo em relação aos outros. Num mundo de individualistas, se não de indivíduos, isso é importante." (p. 85)

"Será então que condenamos os filósofos, como se fossem autoindulgentes? A resposta é sim, se seu apego à (digamos) satisfação de parecer mais inteligentes do que o resto do mundo é maior do que seu apego à verdade ou à sabedoria, ou tão grande que são incapazes de mudar, se não suas mentes, ao menos suas palavras. Outra vez, o orgulho pode obstruir o caminho da busca da verdade: preferimos vencer uma discussão com sofismas a chegar à verdade por uma investigação honesta, ainda que os melhores dentre nós sorrateiramente mudem de opinião após termos vencido aquilo que é correto usando jogo sujo e sofismas." (p. 85)

"A última acusação contra o sentimentalismo citada por Solomon é que ele distorce nossas percepções e impede o pensamento racional e o entendimento. O sentimentalismo demanda o apego a um conjunto de crenças distorcidas a respeito da realidade, e também à ficção da inocência e da perfeição, atuais e potenciais." (p.86)

"Quando se permite que o emocionalismo transborde para a esfera das políticas públicas, não é provável que disse saia algo de bom, exceto por acaso." (p. 87)

"O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento. Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de um condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade." (p. 87)

"A necessidade de julgamento implica que nossa situação no mundo, assim como a de outras pessoas, é quase sempre incerta e ambígua, e que nunca se pode fugir da possibilidade de erro. em nome de uma vida mental quieta, portanto, queremos simplicidade, não complexidade: o bem deveria ser inteiramente bom, o mal inteiramente mau; o belo inteiramente belo, e o feio inteiramente feio; o imaculado inteiramente imaculado, o e estragado inteiramente estragado; e assim por diante." (p. 87-8)

"[...] não quero sugerir que não exista distinção entre bem e mal e nada que distinga o assassino da vítima. Contudo, insinuar a mentes jovens que a história humana (e, por extensão, a vida humana inteira) tem sido e não é nada mais do isto, um conflito entre vítimas e perpretadores, entre oprimidos e opressores, entre bem e mal, é fazer com que seja improvável que elas desenvolvam aquele senso de proporções sem o qual (como afirmei alhures) a informação não passa de uma forma superior de ignorância." (p. 88)

"[...] Para muitas crianças nas escolas, os estudos do genocídio parecem ter tomado o lugar de todo e qualquer outro aspecto da história." (p. 88)

domingo, 15 de abril de 2018

FICHAMENTO: FIÉIS ÀS NOSSAS EMOÇÕES DE ROBERT C. SOLOMON



De fato, paradoxalmente, sugeriria que as emoções são até mais centrais à racionalidade do que a razão e o raciocínio, porque sem elas (como argumentou David Hume, alguns séculos atrás, no Tratado sobre a natureza humana) a razão não tem objetivo ou foco. A recente pesquisa psiquiátrica e neurológica tende a confirmar isso. (p. 20-1)

As emoções de que me ocuparei neste livro não serão, portanto, as súbitas "explosões" que tanto fascinam os neurocientistas e alguns psicólogos, mas as emoções e obsessões de longo prazo que nos têm fascinado através da história... (p. 21)

...emoções são processos que por sua própria natureza, levam tempo e podem, de fato, continuar ininterruptamente. Não são necessariamente conscientes. (p. 22)

Um grande problema é nossa tendência a pensar em uma emoção como um evento psicológico separado. (p. 22)

Uma emoção é um processo complexo que engloba vários e diferentes aspectos da vida de uma pessoa, incluindo interações e relações com outras pessoas, bem como seu bem-estar físico, ações, gestos, expressões, sentimentos, pensamentos e experiências semelhantes. (p. 22)

...gostaria de iniciar com a opinião - hesitante e irônica que posse ser - de que nós não sabemos o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa. (p. 24)

Temos que aprender como reconhecer nossas emoções, como lidar com elas, como usá-las, e isso é um conjunto de habilidades que a maioria de nós reuniu apenas acidentalmente, sem pensar e de forma inadequada. (p. 24)

Há em andamento sérios debates sobre se as emoções formam uma classe unificada e se são "realmente" fisiológicas, como alguns argumentariam, ou se assemelham-se mais a julgamentos de valor ou tendências comportamentais. No entanto, não é como se não tivéssemos ideia do que estamos examinando aqui. Entretanto, compreender é muito mais do que meramente ser capaz de concordar a respeito de um assunto. (p. 24-5)

Baseado em Sartre, argumentarei que nossas emoções são estratégias por meio das quais nos tornamos felizes ou infelizes e que dão significado a nossas vidas. Ao cultivar nossas emoções, determinamos as virtudes e os vícios que nos fazem pessoas melhores ou piores. (p. 26)

vivemos em nossas emoções e por meio delas (p. 26)

Se alguém se importa com alguma coisa - e é virtualmente impossível imaginar alguém que com nada se importe - , esse alguém terá emoções. (p. 27)

...emoção básica é aquela essencialmente neurológica (ou melhor, neuro-hormonal-muscular). Consiste numa resposta complexa mais ou menos fixa, uma síndrome que envolve certas partes do cérebro e dos sistema endócrino e características expressões comportamentais hard-wiredi, especialmente faciais. (p. 34)

...as emoções são sentimentos, no sentido de que são tipicamente experimentadas. (p. 35)

...uma emoção é (pelo menos em grande parte) uma experiência (um "sentimento"), mas não deve ser, de modo algum, identificada com algo semelhante a uma sensação ("sentimento" nesse outro sentido. (p. 35)

A raiva (como todas as emoções) é um fenômeno cognitivo e impregnado de valores, não apenas um estado ou evento momentâneo, mas um processo complexo que prossegue através do tempo e pode durar muito. Envolve necessariamente sentimento e julgamento, bem como fisiologia, e, às vezes, especialmente depois de certo período, pode haver pouca resposta fisiológica  evidente. (p. 37)

É uma forma de interagir com outra pessoa (situação ou tarefa) e um modo de situar-se no mundo. (p. 41)

...uma emoção é um engajamento autoconsciente no mundo e, para compreender a raiva, temos de compreender exatamente que tipo de engajamento é esse. (p. 41)

...quero adotar uma perspectiva existencialista e falar sobre o que fazemos com nossas emoções, e não apenas sobre o que as causa. (p. 43)

...com frequência, as emoções são hábitos, até certo ponto aprendidos, mas também fruto de prática e repetição. (p. 44)

Hábitos emocionais são produto de vias bastante usadas e dependências químicas bem-estabelecidas. (p. 44)

...a ideia de que as emoções são estratégias sugere que a perspectiva em que melhor aprendemos sobre as emoções é na segunda pessoa, na interação e troca interpessoais. Portanto, a raiva (e outras emoções) está menos "na" mente (nem corpo ou no cérebro) e mais do lado de fora, no espaço social e interpessoal. (p. 45)

...a raiva é uma emoção literalmente julgadora ou magistral. (p. 48)

Na raiva, o indivíduo coloca-se no papel superior de juiz e jurado. (p. 48)

...na raiva, o outro é levado a julgamento. Ainda mais poderosa e mais julgadora é a indignação moral, uma emoção em que se acusa o outro não apenas em benefício próprio, mas em nome de um princípio moral. (p. 48)

A vantagem estratégica desse esquema deveria ser óbvia. Emergindo de uma situação em que ferida, ofendida ou humilhada, a pessoa se reposiciona como superior, até virtuosa. É uma posição psicológica poderosa. É também bastante presunçosa, motivo pelo qual a tradição cristã, justificadamente, faz advertências a respeito. (p. 48)

Não há ocasiões em que a raiva é perfeitamente razoável? (p. 48)

...a raiva pode ser, muitas vezes, uma resposta razoável e racional à adversidade. (p. 49)

...a ideia de que a raiva é uma forma de engajamento no mundo. Ficamos com raiva de alguém, alguma coisa. Consequentemente, a questão importante é se a raiva está corretamente dirigida, se escolheu o objeto certo (o ofensor) e se é justificada pela situação. (A pessoa-alvo pode ser de fato o ofensor, mas a ofensa ser tão insignificante que não justifica a raiva.) Se tanto o objeto está correto como se justifica a seriedade da acusação, então a raiva é racional e razoável. (p. 49)

Porém, se a raiva também pode ser uma estratégia,  existe uma consideração adicional, além da precisão e da justiça que governa a racionalidade da raiva. Em outras palavras, ficar com raiva serve aos objetivos finais da pessoa?. (p. 50)

...a raiva é sensata dependendo de se encaixar ou não nos objetivos de longo prazo da pessoa.. (p. 50)

O que aprendemos, então? Que a raiva não é apenas um sentimento autocontido, mas um engajamento com outras pessoas e com o mundo, que pode ser mais ou menos justificado, mais ou menos primitivo ou refinado, mais ou menos gratificante e mais ou menos adequado moralmente. Como estratégia, não é apenas algo que nos acontece, mas algo que colocamos em ação, quer refletidamente, quer não. Isso levanta uma última questão que quero deixar pendente ao longo destes capítulos iniciais. Às vezes, talvez com frequência, aquilo que fazemos não é imediatamente óbvio para nós. Grande parte de nossa vida emocional é, como insistiu Freud, inconsciente.. (p. 52-3)

Considero o inconsciente não apenas como uma profunda descoberta psicanalítica, mas como um dado fundamental. As pessoas nem sempre sabem quando estão com raiva e nem sempre sabem o que sentem.. (p. 53)

Robert C. Solomon, Fiéis às nossas emoções: o que elas realmente nos dizem; tradução de Miriam Gabaglia de Pontes Medeiros. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

domingo, 23 de outubro de 2016

- SÉRIE O HOMEM CORDIAL - EMOÇÕES SÃO RAZÕES


Afinal o que leva a nacionalidade brasileira a produzir homens cordiais, numa sociedade em que são tecidas teias de relacionamentos por meio de emoções, em detrimento do cálculo racional puro e simples?

Sérgio Buarque de Holanda faz duras críticas ao nosso cordialismo, por considerá-lo a origem de nosso atraso, nosso sentimentalismo seria o fator que não permitiria que o Estado assuma seu papel transcendental em relação à família, com o estabelecimento de uma burocracia racionalista e impessoal, na qual o bem público seria antagônico aos interesses familiares.

Entre os efeitos desejados pelo célebre sociólogo de Raízes do Brasil, com a superação de nossa prevalência emotiva, seria o fim da entidade familiar patriarcal, considerada por Sérgio Buarque de Holanda como um verdadeiro óbice ao progresso, por ser uma base social primitiva a impedir o pleno desenvolvimento da civilização moderna brasileira, sob o Trópico de Câncer.

É irônico que Sérgio Buarque de Holanda lance mão do exemplo da cultura ritualística japonesa para contrapor ao nosso informalismo cordial.

O povo japonês é amante do rito.

Pode-se dizer numa perspectiva mimética (René Girard) que a cultura japonesa é um exemplo perfeito de mediação externa a partir do sagrado ritualista, que preserva o modelo arcaico xintoísta amalgamado com inúmeras influências externas que foram absorvidas e harmonizadas para o contexto japonês.

O povo brasileiro, por outro lado, é um exemplo de delicado equilíbrio de mediação interna, na qual o informalismo predomina nas relações sociais, precariamente suspensa pela mediação externa possibilitada pela cultura de origem lusa fundamentalmente impregnada de valores cristãos.

O nosso informalismo gera um elevado nível de hipocrisia social vigente, traduzida em sentimentalismos e desejo de intimidade para com o próximo, este elemento de emotividade é um hábito arraigado em todos os aspectos da vida social, como uma constante empatia fruto da valorização de elementos morais fortemente cristãos, oriundos de nossa formação cultural atávica lusa e cruzada.

O elemento de cordialidade é uma dimensão essencial do cidadão luso-brasileiro, cuja existência tem sido testada por séculos de adversidades sócio-políticas, resultantes de um processo de formação populacional resultante de sucessivos processos de conquistas, de submissão forçada de uma diversidade de povos e de dominação de territórios imensos, que foram milagrosamente consolidados por um poderoso, e corrupto, Estado Moderno, que exerceu de forma pioneira, na Idade Moderna, o poder absoluto sem freios e contrapesos durante séculos, pois devemos lembrar que Portugal já estabelecera um Estado Nacional já no século XIV.

E, assim, o ser cordial é um tipo de caráter humano desenvolvido como uma estratégia de sobrevivência, forjado num ambiente hostil e desafiador, na qual as relações de fundo emocional são um tipo de salvaguarda à instabilidade reinante nas instituições, e, mesmo que parte deste estado de coisas seja fruto da própria antropologia da cordialidade, não é sua origem primeira, pois a própria cordialidade é uma forma de racionalidade, em que o indivíduo se arma de inteligência emocional, como uma estratégia social, que evoluiu por séculos e se mostrou eficaz, ao ponto de estabelecer as bases da cultura lusa, e de muitas nacionalidades, entre elas a nossa.

Na expressão de Robert C. Solomon não sabemos "o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa" (Solomon, p. 24), e destas faço minhas as palavras para dizer o mesmo sobre o homem cordial, cujos elementos emoção/razão entretecidos de forma complexa e eficaz não podem se ignorados em sua mútua correlação, pois a emoção:

"É uma forma de interagir com outra pessoa (situação ou tarefa) e um modo de situar-se no mundo" (Solomon, p. 41).

Werner Nabiça Coêlho - 02/09/2016

Excertos:

***

(Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.)

Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo - ela pode exprimir-se em mandamentos em sentenças. (p. 52)

Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse esta fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. (p. 53)

Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualística da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social, é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência - e isso se explica pelo fato da atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no "homem cordial": é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. (p. 53)

Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual reservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. (p. 53)

Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo. (p. 53)

***

(Robert C. Solomon, Fiéis às nossas emoções: o que elas realmente nos dizem; tradução de Miriam Gabaglia de Pontes Medeiros. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.)

...emoções são processos que por sua própria natureza, levam tempo e podem, de fato, continuar ininterruptamente. Não são necessariamente conscientes. (p. 22)

Um grande problema é nossa tendência a pensar em uma emoção como um evento psicológico separado. (p. 22)

Uma emoção é um processo complexo que engloba vários e diferentes aspectos da vida de uma pessoa, incluindo interações e relações com outras pessoas, bem como seu bem-estar físico, ações, gestos, expressões, sentimentos, pensamentos e experiências semelhantes. (p. 22)

...gostaria de iniciar com a opinião - hesitante e irônica que posse ser - de que nós não sabemos o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa. (p. 24)