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domingo, 15 de abril de 2018

SOBRE A INTELIGÊNCIA CORDIAL BRASILEIRA



Origem da linguagem e suas manifestações não-verbal, pré-verbal e verbal:

A origem da linguagem é um problema que remete à própria origem da cultura, pois antes da invenção da palavra escrita, antes da criação da expressão oral, antes da capacidade de comunicação verbal (mito-poética) houve algum nível de comunicação não-verbal (pré-ritual) e pré-verbal (ritual), isto é, sem a articulação de fonemas que representassem conceitos.

O que tornou possível a transição da expressão ainda animal (não-verbal) de gestos, gritos, rosnados, risos e demais expressões sem articulação simbólica (não verbal) fonética e gramatical (verbal), para a comunicação como a conhecemos?

Como o espectro comunicacional não-verbal e pré-verbal possibilitou a criação de uma ordem comunicativa verbal?

Qual tipo de atitude comunicacional humana pré-verbal precedeu imediatamente o processo de criação da própria linguagem verbal?

Qual o papel das emoções nas manifestações comunicativas pré-verbais? Será a emoção o elo perdido que conecta o momento da animalidade pré-verbal e não-verbal à gênese da palavra em sua forma verbalizável?

Haverá uma gramática das emoções que possibilita a existência da gramática das palavras?

Qual o mecanismo primordial que promoveu a transformação de emoções pré-verbais em verbos?



A linguagem da emoção e a teoria mimética:

Proponho-me a discutir a origem da linguagem, partindo da hipótese que suas manifestações pré-verbal e não-verbal surgiram na forma de uma linguagem de emoções, uma estratégia de sobrevivência que se utiliza de comunicação pré-verbal que possibilitou nos primórdios da cultura a convivência social.

Nesta perspectiva, as manifestações sociais das emoções, quando codificadas, são uma estratégia existencial que possibilitam a sustentação da existência do indivíduo, pois os motivos e justificativas para as reações emocionais são diretamente ligados aos comportamentos necessários à sobrevivência, o que revela um potencial racionalismo existencial pré-verbal.

Algo a ser ressaltado no âmbito da teoria mimética é que as emoções são a matéria prima da mimésis e o fator que desencadeia a crise mimética, pois a crise é o resultado do paroxismo da violência da emoções quando ficam fora de controle, e tal processo de descontrole é possível de ser superado pelo mecanismo do bode expiatório, que gera a catarse necessária para possibilitar o estabelecimento dos primeiros ritos sociais sagrados, que promovem o nascimento do primeiro símbolo, na forma da vítima sacrificial, cuja repetição cerimonial engendra o mito.

Assim sendo, a teoria mimética apresenta uma hipóteses na qual o processo social de ritualização permite o ambiente para o nascimento do verbo com a criação de mitos diretamente derivados da linguagem do ritual cuja origem é não-verbal.

O processo que origina a fala parte do fenômeno das emoções constantemente repetidas ritualmente, manifestadas por gritos, rugidos, rosnados, choro, riso e demais manifestações gestuais e sonoras possíveis, que ao serem articuladas repetidas vezes sofrem um constante aperfeiçoamenteo, e estabelecem padrões fonéticos, que se consolidam nas primeiras palavras carregas de significado ritual.

A palavra em sua origem primordial é, seguramente, um subproduto do ritual religioso sacrificial.

É interessante notar que a linguagem surge da crise que sacraliza e ritualiza a violência, que torna possível a constituição de uma ordem civilizacional.

O bode expiatório é ponto de convergência entre a violência e o sagrado, pois a violência banalizada gera a vingança interminável que destrói a comunidade, e a violência sacralizada estabelece os ritos e mitos que verbalizam as emoções socialmente estabelecidas pela repetição benéfica da crise mimética por meio do ritual, como instrumentos de mediação externa pacificadora da mediação interna que se originara da violência intestina potencial, esta última sempre atuante como um fator de entropia no meio social.

A comunicação oral origina-se da sacralização da violência, antes manifestada em emoções não-verbais de gestos e gritos que, num lance de dados do destino, pode ser solucionada pelo sacrifício do bode expiatório, cuja repetição cria a pedagogia do rito que rememora a criação do primeiro símbolo (o sacrificado) e estabelece um padrão de linguagem pré-verbal, na qual os gestos e gritos passam a ser significativos e permitem o aperfeiçoamento da linguagem ao ponto da criação do verbo oralizado.

O sacrifício é o acontecimento social primordial que cria a paz social necessária para a perduração das relações interpessoais nas origens da sociedade humana, e capacita uma associação de seres humanos em sua fase não-verbal com a linguagem das emoções, sua fase pré-verbal com a linguagem do rito, e, por fim, sua fase verbal com a linguagem dos mitos.

Ao desenvolver a pedagogia do sagrado, que limita a violência social, este ensino puramente religioso é compreendido como uma manifestação divina representada no rito, que revive o acontecimento que pacificou a violência, e, com o tempo, após infinita repetições, permite o nascimento da linguagem falada.

A linguagem em sua fase inicial é produto direto da manifestação religiosa que funciona como uma pedagogia das emoções convertendo a energia da violência em padrões rituais que geram a catarse por meio do ritual, a pedagogia do ritual permite a formação de narrativas mitológicas, pois os mitos em sua linguagem poética são a manifestação verbal deste registro do evento primordial.

Tanto faz se os mitos são gregos ou africanos, muito embora sejam encarados de um ponto de vista meramente literário atualmente, em suas origens, os mitos são sedimentações de ritos, nascidos em tempos na qual inexistia a própria linguagem falada.

Os primeiros ritos e sua pedagogia do eterno retorno estabilizaram-se em palavras.



O homem cordial:

Ora, por mais que sejamos induzidos a considerar que a realidade da comunicação nos níveis não-verbal (linguagem das emoções), pré-verbal (linguagem do ritual) e verbal (linguagem mitológica) como etapas atuantes nas origens da linguagem, tal percepção é falaciosa, pois cada pessoa ao nascer reinicia todo este processo de gênese da linguagem, que parte da comunicação emocional típica da primeira infância, com a criação de ritos e mitos da infância, e prossegue com a conformação de palavras vestidas de conceitos e símbolos durante a segunda infância e a adolescência, numa permanente pedagogia de autocontenção da violência instintiva do ser humano em suas relações interpessoais que ocorre durante a adolescência, até a desejável maturidade afetiva e intelectual da idade adulta.

Todavia, quando uma determinada pessoa está submetida a pressões permanentes, tanto em seu meio social e político, quanto nas relações mais próximas, sejam familiares ou de vizinhança, passa a determinar-se em suas atitudes cotidianas buscando sinais de perigo, com base em suas percepções linguística de amplo espectro (não-verbal e pré-verbal), e, assim, cria-se ressalvas comportamentais e pessoais, para se precaver dos perigos mais iminentes aos mais remotos percebidos numa espécie de sociedade em que impera o princípio da desconfiança.

O brasileiro, como digno representante de seus antepassados lusos, é este tipo de cidadão submetido ao absurdo social acima descrito como sociedade da desconfiança, seja oriunda nos mais altos níveis sociais pela permanente atuação de uma cleptocracia irresponsável com o bem comum, seja pela rotina de uma criminalidade que invade todos os aspectos do cotidiano da vida privada de cada cidadão.

Uma estrutura social baseada na desconfiança tende prevenir-se de uma potencial anarquia resultante de tal instabilidade que lhe é inerente, todo cidadão em tais circunstâncias é uma potencial vítima de crises sacrificiais, como ocorre quando se pratica um linchamento, em que a violência é descarregada sobre um culpado eleito por uma massa dominada pelo desejo de vingança, e cuja vítima eventualmente poderia ser inocente em relação à acusação que motiva o ataque contra si.

Neste ponto, é que resgato a noção cultural e antropológica brasileira de "cordialidade", como uma manifestação de inteligência social típica de sujeitos que necessitam sobreviver às adversidades de um ambiente na qual a confiança é o elemento mais desvalorizado.

Por exclusão, o brasileiro acaba por necessitar se refugiar nas relações interpessoais mais íntimas, seja a família, sejam as confrarias representadas por profissões, por associações com finalidades pias, políticas, desportivas ou mesmo por integrar sociedades iniciáticas das mais diversas matizes.

Em certa medida, os espaços públicos no âmbito da cultura brasileira, são zonas de perigo, ou de pura e simples exploração da boa-fé alheia, e, numa circunstância desta natureza, ao brasileiro somente resta desenvolver técnicas de convivência que apelam para elementos não-verbais e pré-verbais de forte caráter comunicativo em sua natureza emocional.

O brasileiro encara cada pessoa à sua frente como um predador em potencial, e há que haver algum elemento de salvaguarda social, que permita à percepção do sujeito a interação com menor o prejuízo potencial possível.

Nesta base é o estudo do nosso fenômeno cultural denominado de "homem cordial" é fundamental, como elemento constituinte da nossa antropologia social.

A valorização adequada dos aspectos positivos e o desenvolvimento dos modos de superação dos aspectos negativos relacionados ao fenômeno do "homem cordial" é uma das mais importantes contribuições da civilização brasileira para a humanidade.

O ponto de vista pessimista em relação à cordialidade brasileira é muito marcante em Sérgio Buarque de Holanda, enquanto que uma visão mais generosa é exposta por Gilberto Freire.

Creio que é muito interessante trabalhar a definição de "homem cordial" como uma forma de ser que não se prende aos elementos formais e lógico-racionais de uma filosofia da linguagem positivista, que somente considera a palavra falada e escrita, mas, sim, que se trata de uma percepção da humanidade que valoriza adequadamente o elemento emocional da comunicação humana.

O modo de ser nacional, com todos os seus defeitos de origem, e suas taras e deformações, é uma contribuição relevante, pois demonstra que um povo inteiro pode desenvolver mecanismos de mediação externa que suplantam conflitos que em outras culturas implicam em desastres, não é à toa que a história brasileira é uma narrativa de comédias no sentido dado por Aristóteles, ou seja, uma tragédia que não aconteceu, pois persiste um instinto de sobrevivência na psicologia das massas brasileiras que permitiu que grandes eventos históricos não sofressem seus últimos desenvolvimentos trágicos, talvez seja por isso que sejamos tão faltos de grandes guerras civis e revoluções sanguinárias, e, por outro lado, somos a nação na qual a legislação concessiva de anistias foi tão abundante aos longo de sua história.

O brasileiro, por ser afogado num ambiente de cotidiano hostil, desenvolveu a habilidade de perceber, em suas relações sociais e institucionais, o espectro emocional da linguagem (não-verbal e pré-verbal) e perceber sua condição de potencial vítima, seja diante de seu próprio governo, ou até mesmo diante do mais humilde de seus vizinhos, numa sociedade em que um povo ordeiro e trabalhador tem que conviver com uma anarquia institucionalizada pelos representantes do Poder governante.

Portanto, há um elemento de "inteligência cordial", definível como estratégia racional e emocional de sobrevivência do brasileiro, por este ter a percepção intuitiva de ser a potencial vítima de sacrificadores igualmente cordiais, e vice versa,

É a sociedade brasileira, praticamente, uma sociedade em guerra fria consigo mesmo, que sobrevive em tênue equilíbrio operacionalizado pelo fenômeno da "cordialidade".

Por fim, complemento que minha hipótese acerca deste tênue equilíbrio social possui entre seus elementos cordiais, que estão em constante troca de posições vítima/sacrificador, só é possível em razão de nosso forte substrato cultural fundado na revelação cristã, que nos permite perceber que a vítima é sempre inocente.

Werner Nabiça Coêlho

FICHAMENTO: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

EM FAMÍLIA
Sérgio Buarque de Hollanda posa com cinco dos sete filhos.


O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. (p. 45)

OBS.: O autor denota uma aversão ao fenômeno familiar classificando-o como uma entidade formada por negativas "vontades particularistas".

Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição . (p. 45)

OBS.: a tese da descontinuidade ecoa o manifesto do partido comunista, tenho que fazer a referência.

A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que teve seus adeptos mais entusiastas durante o século XIX. (p. 45)

OBS.: O autor não lembra que a família é um fenômeno de todas as épocas, não só do tempo historicista.

OBS.: Me ocorre que a perspectiva cartesiana, de dividir o problema em suas partes e tratá-los em compartimentos estanques ocorreu na análise do autor, pois ele considera o Estado um fenômeno racional e abstrato em oposição à família como fenômeno concreto e emocional, não se leva em consideração a integralidade do fenômeno humano na qual a pessoa é a interseção de todos os fenômenos sociais.

A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. (p. 45)

OBS.: Qual essência?

Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. (p. 45)

OBS.: A contrario sensu a pessoa no âmbito familiar não tem nenhum dos predicados acima citados?

OBS.: A família é tratada como um bode expiatório para que haja a sacralização do sacrificador estatal.

...um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo, e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. (p. 45)

OBS.: O triunfo da idéia sobre a matéria, não há melhor descrição do idealismo hegeliano, catar uma referência.

A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência. (p. 45)

OBS.: A família é transcendida pelo Estado? A pessoa no âmbito da família é uma escrava que deve ter sua condição abolida pelo agente estatal? A família é escravidão e o Estado é libertação?

Creonte encarna a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que é a família. (p. 46)

OBS.: A idéia em luta contra a realidade...

O conflito entre Antígona e Creonte é de todas as épocas e preserva-se sua veemência ainda em nossos dias. Em todas as culturas, o processo pelo qual a lei geral suplanta a lei particular faz-se acompanhar de crises mais ou menos graves e prolongadas, que podem afetar profundamente a estrutura da sociedade. O estudo dessas crises constitui um dos temas fundamentais da história social. (p. 46)

OBS.: Pois é! Neste momento que tenho que tratar do fator que é de "todas as épocas" e que ocorre em "todas as culturas", o processo de transição da crise mimética que engendra bodes expiatórios, que criam os elementos dos ritos, que forjam os mitos, que com o avanço civilizacional, e, principalmente, a partir da revelação cristã, criam as condições de possibilidade de ser estruturada uma mediação externa que nega a sacralidade da violência e eleva a vítima da condição de bode expiatório sacrificial para a condição de vítima que deve ser protegida e preservada numa atitude social que nega validade à violência mitológica, mas aceita a utilização de uma violência racionalizada pela regra jurídica.

OBS.: O autor elege a família como bode expiatório, para sacralizar o Estado, então Sérgio Buarque de Holanda cria mitos ao tratar do homem cordial, o mito da cordialidade do brasileiro como obstáculo à construção de um Estado burocrático à moda weberiana, assim sendo, o homem cordial deve ser sacrificado.

...famílias "retardatárias", concentradas em si mesmas e obedientes ao velho ideal que mandava educarem-se os filhos apenas para o círculo doméstico. (p. 47)

OBS.: Ou seja, deve-se abolir a educação familiar...

Segundo alguns pedagogos  e psicólogos de nossos dias, a educação familiar deve ser apenas uma espécie de propedêutica da vida na sociedade, fora da família. (p. 47)

OBS.: O autor cita a nova pedagogia que nascia no início do século XX, que se propunha promover a abolição da velha ordem familiar.

...a separar o indivíduo da comunidade doméstica, a libertá-lo, por assim dizer, das "virtudes" familiares. (p. 48)

...a ideia de família - e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal - tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições à formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais. (p. 48)

 A crise de adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é, assim, especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtudes antifamiliares por excelência, como o são, sem dúvida, aquelas que repousam no espírito de iniciativa pessoal e na concorrência entre os cidadãos. (p. 48-9)

OBS.: Quais são estes princípios? São liberais? Ou haverá outros princípios antifamiliares envolvidos?

E não haveria grande exagero em dizer-se que, se os estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurídicos, fundados desde 1827 em São Paulo e Olinda, contribuíram largamente para a formação de homens públicos capazes, devemo-lo às possibilidades que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes arrancados aos seus meios provinciais e rurais de "viver por si", libertando-se progressivamente dos velhos laços caseiros, quase tanto como aos conhecimentos que ministravam as faculdades. (p. 49)

OBS.: Processo iniciático?

Nem sempre, é certo, as novas experiências bastavam para apagar neles o vinco doméstico, a mentalidade criada ao contato de um meio patriarcal, tão oposto às exigências de uma sociedade de homens livres e de inclinação cada vez mais igualitária. (p. 49-50)

 ...os âmbitos familiares excessivamente estreitos e exigentes...verdadeiras escolas de inadaptados e até psicopatas. (p. 50)

OBS.: Para o autor a família é a escola do crime.

No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização - que não resulta unicamente do crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação, atraindo vastas áreas para a esfera de influência das cidades - ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje. (p. 51)

...distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. (p. 51)

Para o funcionário "patrimonial", a própria gestão política apresenta-se como um assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede com o verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias. (p. 51)

Falta a tudo a ordenação impessoal que caracterizava a vida no Estado burocrático. (p. 51)

...o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. (p. 52)

...a esfera, por excelência, dos chamados "contratos primários", dos laços de sangue e de coração - está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas. (p. 52)

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o "homem cordial". (p. 52)

NOTA DE FIM Nº 06, p. 101-2: A expressão é do escritor Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicação Monterey. Não pareceria necessário reiterar o que já está implícito no texto, isto é, que a palavra "cordial" há de ser tomada, neste caso, em seu sentido exato e estritamente etimológico, se não tivesse sido interpretada em obra recente de autoria do sr. Cassiano Ricardo onde se fala no homem cordial dos aperitivos e das "cordiais saudações", "que são fechos de cartas tanto amáveis como agressivas", e se antepõe à cordialidade assim entendida o "capital sentimento" dos brasileiros, que será a bondade e até mesmo certa "técnica da bondade", "uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora". (p. 101)
Feito este esclarecimento e para melhor frisar a diferença, em verdade fundamental, entre as ideias sustentadas na referida obra e as sugestões que propõe o presente trabalho, cabe dizer que, pela expressão "cordialidade", se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas a que parece inclinar-se o sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falar em "bondade" ou em "homem bom". Cumpre ainda ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimento positivos de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos "grupos primários", cuja unidade, segundo observa o próprio eleborador do conceito, "não é somente de harmonia e amor". A amizade, desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimento privados ou íntimos, passa a ser, quando muito, belevolência, posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão do conceito. Assim como a inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade.[...] (p. 102)

Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo - ela pode exprimir-se em mandamentos  em sentenças. (p. 52)

Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse esta fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial  xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. (p. 53)

OBS.: O povo japonês é um exemplo perfeito de mediação externa a partir do sagrado, porque ritualista.

Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualística da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social, é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência - e isso se explica pelo fato da atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no "homem cordial": é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. (p. 53)

OBS.: O povo brasileiro é um exemplo de delicado equilíbrio de mediação interna que é precariamente suspenso pela mediação externa gerada pela hipocrisia individual da cordialidade.

Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual reservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. (p. 53)

Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supreracia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo. (p. 53)

No "homem cordial", a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. (p. 53)

...reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica... (p. 53)

Ela é antes um viver nos outros. (p. 53)

Nada mais significativo dessa aversão ao ritualismo social, que exige, por vezes, uma personalidade fortemente homogênea e equilibrada em todas as suas partes, do que a dificuldade em que se sentem, geralmente, os brasileiros, de uma referência prolongada ante um superior. (p. 54)

Nosso temperamento admite fórmulas de referência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar. (p. 54)

OBS.: Intimidade = cordialidade.

A manifestação normal do respeito em outros povos tem aqui sua réplica, em regra geral, no desejo de estabelecer intimidade. (p. 54)


E isso é tanto mais específico quanto se sabe do apego frequente dos portugueses, tão próximos de nós em tantos aspectos, aos títulos e sinais de reverência. (p. 54)
À mesma ordem de manifestações pertence certamente a tendência para a omissão do nome de família no tratamento social. (p. 54)


O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira... (p. 55)


...foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, "democrático", um culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso. (p. 55)


A exaltação dos valores cordiais e das formas concretas e sensíveis da religião, que no catolicismo tridentino parecem representar uma exigência do esforço de reconquista espiritual e da propaganda da fé perante a ofensiva da Reforma, encontraram entre nós um terreno de eleição e acomodaram-se bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento social. (p. 58)


Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta "terra remissa algo melancólica", que de falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo o ritualismo não nos é necessário. (p. 58-9)

OBS.: O ritual do ponto de visto do formalismo religioso e social é fraco em nossa cultura cordial, todavia, não pode existir sociedade sem algum nível de ritualística, então, o homem cordial pulveriza em nível intimista o ritual para suprimir o momentum da violência mimética, todavia, o aspecto cordial do comportamento brasileiro tem sido impactado pela descoberta do ritual da legalidade nos últimos tempos, então, não é a família que impossibilita a racionalidade de imperar na burocracia estatal, pois o ritual de cordialidade e intimidade criada pela família é a base para se construir a aceitação da autoridade da lei, pois a família, por mais emotivas que sejam suas relações, também, impõe um nível de autocontrole e racionalidade sentimento (CITAR AQUELE AUTOR QUE DESCREVE A RACIONALIDADE DO SENTIMENTO COMO ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA SOCIAL E EVOLUTIVA)

A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. (p. 59)

OBS.: Ou seja, a personalidade do brasileiro é rebelde à dominação social! O que é um ponto negativo para a proposta socialista burocrática e racional defendida pelo autor.

Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de ideias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades. (p. 59)

OBS.: Neste momento temos uma descrição do comportamento mimético do brasileiro.

Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

domingo, 23 de outubro de 2016

- SÉRIE O HOMEM CORDIAL - EMOÇÕES SÃO RAZÕES


Afinal o que leva a nacionalidade brasileira a produzir homens cordiais, numa sociedade em que são tecidas teias de relacionamentos por meio de emoções, em detrimento do cálculo racional puro e simples?

Sérgio Buarque de Holanda faz duras críticas ao nosso cordialismo, por considerá-lo a origem de nosso atraso, nosso sentimentalismo seria o fator que não permitiria que o Estado assuma seu papel transcendental em relação à família, com o estabelecimento de uma burocracia racionalista e impessoal, na qual o bem público seria antagônico aos interesses familiares.

Entre os efeitos desejados pelo célebre sociólogo de Raízes do Brasil, com a superação de nossa prevalência emotiva, seria o fim da entidade familiar patriarcal, considerada por Sérgio Buarque de Holanda como um verdadeiro óbice ao progresso, por ser uma base social primitiva a impedir o pleno desenvolvimento da civilização moderna brasileira, sob o Trópico de Câncer.

É irônico que Sérgio Buarque de Holanda lance mão do exemplo da cultura ritualística japonesa para contrapor ao nosso informalismo cordial.

O povo japonês é amante do rito.

Pode-se dizer numa perspectiva mimética (René Girard) que a cultura japonesa é um exemplo perfeito de mediação externa a partir do sagrado ritualista, que preserva o modelo arcaico xintoísta amalgamado com inúmeras influências externas que foram absorvidas e harmonizadas para o contexto japonês.

O povo brasileiro, por outro lado, é um exemplo de delicado equilíbrio de mediação interna, na qual o informalismo predomina nas relações sociais, precariamente suspensa pela mediação externa possibilitada pela cultura de origem lusa fundamentalmente impregnada de valores cristãos.

O nosso informalismo gera um elevado nível de hipocrisia social vigente, traduzida em sentimentalismos e desejo de intimidade para com o próximo, este elemento de emotividade é um hábito arraigado em todos os aspectos da vida social, como uma constante empatia fruto da valorização de elementos morais fortemente cristãos, oriundos de nossa formação cultural atávica lusa e cruzada.

O elemento de cordialidade é uma dimensão essencial do cidadão luso-brasileiro, cuja existência tem sido testada por séculos de adversidades sócio-políticas, resultantes de um processo de formação populacional resultante de sucessivos processos de conquistas, de submissão forçada de uma diversidade de povos e de dominação de territórios imensos, que foram milagrosamente consolidados por um poderoso, e corrupto, Estado Moderno, que exerceu de forma pioneira, na Idade Moderna, o poder absoluto sem freios e contrapesos durante séculos, pois devemos lembrar que Portugal já estabelecera um Estado Nacional já no século XIV.

E, assim, o ser cordial é um tipo de caráter humano desenvolvido como uma estratégia de sobrevivência, forjado num ambiente hostil e desafiador, na qual as relações de fundo emocional são um tipo de salvaguarda à instabilidade reinante nas instituições, e, mesmo que parte deste estado de coisas seja fruto da própria antropologia da cordialidade, não é sua origem primeira, pois a própria cordialidade é uma forma de racionalidade, em que o indivíduo se arma de inteligência emocional, como uma estratégia social, que evoluiu por séculos e se mostrou eficaz, ao ponto de estabelecer as bases da cultura lusa, e de muitas nacionalidades, entre elas a nossa.

Na expressão de Robert C. Solomon não sabemos "o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa" (Solomon, p. 24), e destas faço minhas as palavras para dizer o mesmo sobre o homem cordial, cujos elementos emoção/razão entretecidos de forma complexa e eficaz não podem se ignorados em sua mútua correlação, pois a emoção:

"É uma forma de interagir com outra pessoa (situação ou tarefa) e um modo de situar-se no mundo" (Solomon, p. 41).

Werner Nabiça Coêlho - 02/09/2016

Excertos:

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(Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.)

Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo - ela pode exprimir-se em mandamentos em sentenças. (p. 52)

Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse esta fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. (p. 53)

Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualística da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social, é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência - e isso se explica pelo fato da atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no "homem cordial": é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. (p. 53)

Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual reservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. (p. 53)

Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo. (p. 53)

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(Robert C. Solomon, Fiéis às nossas emoções: o que elas realmente nos dizem; tradução de Miriam Gabaglia de Pontes Medeiros. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.)

...emoções são processos que por sua própria natureza, levam tempo e podem, de fato, continuar ininterruptamente. Não são necessariamente conscientes. (p. 22)

Um grande problema é nossa tendência a pensar em uma emoção como um evento psicológico separado. (p. 22)

Uma emoção é um processo complexo que engloba vários e diferentes aspectos da vida de uma pessoa, incluindo interações e relações com outras pessoas, bem como seu bem-estar físico, ações, gestos, expressões, sentimentos, pensamentos e experiências semelhantes. (p. 22)

...gostaria de iniciar com a opinião - hesitante e irônica que posse ser - de que nós não sabemos o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa. (p. 24)

domingo, 7 de agosto de 2016

É BOM CITAR: ANTÍGONA E SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA



O conflito entre Antígona e Creonte é de todas as épocas


e preserva-se sua veemência ainda em nossos dias.

Em todas as culturas,

o processo pelo qual a lei geral

suplanta a lei particular

faz-se acompanhar de crises

mais ou menos graves e prolongadas,

que podem afetar profundamente a estrutura da sociedade.

O estudo dessas crises

constitui um dos temas fundamentais da história social.
(Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012, p. 46)

domingo, 19 de junho de 2016

- SÉRIE O HOMEM CORDIAL - O JEITO DE SER NACIONAL TEM SEU VALOR! SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E MARXISMO CULTURAL



Ao revisitar a obra de Sérgio Buarque de Holanda percebi um não sei quê de marxismo cultural.



O tão celebrado sociólogo promove uma apologia ostensiva do socialismo, sob terminologia weberiana de Estado burocrático, e descreve a família brasileira como um grande mal e origem de nosso atraso.


Já numa perspectiva à moda da visão filosófica de Mário Ferreira dos Santos de que, em toda teoria ou conhecimento humano, há algum grau de positividade concreta, no sentido de algo válido e real para o bem comum.

Então, proponho uma busca da positividade inerente ao jeito de ser nacional, uma inquirição acerca da evidente vigência de um modo de ser dos brasileiros, herdado dos lusos, inerente ao seu caráter emotivo, e, por isso, denominado de "cordial", como uma forma eficaz manifestação de inteligência emocional, que se manifesta numa linguagem não verbal.

Todavia, observo que parto do pressuposto de que isto é uma técnica de sobrevivência secular, pragmática e intuitiva, desenvolvida em razão da hostilidade sem igual de nosso estamento burocrático, fato verificável desde nossas origens lusas.

- SÉRIE O HOMEM CORDIAL - O JEITO DE SER NACIONAL TEM SEU VALOR! O QUE É O "HOMEM CORDIAL"?




A expressão "homem cordial" é do escritor Ribeiro Couto, em carta dirigida a Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicação Monterey.

Cumpre ainda ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimento positivos de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado.

(Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012, p. 102)