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quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

RENÉ GIRARD: O RISO E AS LÁGRIMAS

Abaixo transcrevo uma passagem do artigo "Um equilíbrio perigoso", no qual René Girard tece considerações muito interessantes a respeito do papel do riso e do choro como elementos catárticos, tanto na tragédia como na comédia, e, como ambos são fenômenos fisiologicamente semelhantes, e, como, psicologicamente, cumprem o mesmo papel. 

"O esquema fundamental de um presunçoso vítima da sua presunção aparece constantemente. Mas se esta proximidade é real, porque é que os efeitos da tragédia são diferentes dos da comédia? 

Quando se assiste a uma tragédia, ou, mais geralmente, ao que se chama um "melodrama", podemos reagir derramando lágrimas - metafóricas ou mesmo reais. Com a comédia reage-se com o riso. O riso e as lágrimas opõem-se como dois contrários, duas emoções no mais alto grau distintas uma da outra.
 


Os dois são fenômenos físicos; neste plano a comparação é fácil. Revela bem depressa que a oposição entre o riso e as lágrimas é muito exagerada, ou antes, como para tantas oposições culturais, estabelecida a partir de uma base comum, o que se abandona geralmente quando prevalecem as considerações de gênero e de técnica literárias. Quando, fora do estreito contexto literário, se põe a pergunta: "O que é o riso?", é preciso descobrir esta base comum ainda escondida, sob pena de limitar o alcance da resposta.

 


Os fisiologistas dizem que a função normal das lágrimas é lubrificar os olhos. Mas deitam-se lágrimas mais abundantes que habitualmente, sobretudo em duas ocasiões. Em  primeiro lugar, quando acontecimentos considerados como "tristes", quer sejam reais ou representados, provocam este estado emocional de que acabámos de falar; depois, quando entra  para um olho um corpo estranho, um grão de pó, por exemplo, que irrita. Estas lágrimas, de ordem puramente física, têm como evidente função de afastar o intruso, expulsá-lo do órgão que ele insiste querer irritar. (p. 201)

Sabe-se que Aristóteles,  na sua Poética, empregava a palavra catarse para representar o efeito produzido pela tragédia nos espectadores. A palavra significa ao mesmo tempo purificação religiosa e purga médica. Uma medicina catártica purga o corpo de seus maus humores.
 
[...]
 
Quando o corpo humano reage a uma representação trágica com lágrimas, parece comportar-se segundo Aristóteles. Apesar de o olho não ter nenhum grão de pó para eliminar, funciona contudo como se tivesse que expulsar qualquer coisa. Deve existir, em qualquer lado no complexo alma/corpo, uma necessidade de expulsar, uma vez que dispomos desse órgão expulsivo. A objeção que as lágrimas não são feitas para isso é inaceitável. Porque o olho funciona metaforicamente. Face a uma necessidade do corpo, o corpo, muito frequentemente, reage como um todo; mobiliza diversos órgãos que, apesar de completamente inaptos para responderem à função pedida, não deixam de tentar trazer a sua ajuda. E pode acontecer que esta reacção aparentemente excessiva seja reveladora da natureza da necessidade em questão.


William James



Não é minha intenção voltar a William James e à sua teoria fisiológica. Não considero o corpo como origem da emoção mas, mais convencionalmente, como um acompanhamento, quase no sentido musical do termo. Assim como um solista, aqui invisível e inaudível, em todo o caso para nós, se acompanha ao piano, da mesma maneira o sentimento trágico se acompanha com lágrimas. (p. 201-2)
 
[...]
 
Para voltarmos agora ao rito, notar-se-á que as lágrimas fazem parte integrante dele. Trata-se de um detalhe que conta mas que se minimiza ou abandona muitas vezes. Porque queremos à viva força opor o riso e as lágrimas como dois contrários, somos levados a pôr o acento nos únicos aspectos do riso que parecem diferenciá-lo do choro. Mas aqui as considerações teóricas importam muito menos do que aquilo que se poderia chamar a praxis moderna do riso. O homem moderno ri constantemente quando não há razão para isso. O riso é a única forma socialmente aceite de cartase. Por conseguinte, todas as espécies de riso que não têm nada a ver com o riso são confundidas com ele: o riso de cortesia, o riso sofisticado, o riso mudano. Todos estes falsos risos aumentam muitas vezes a tensão que devem aliviar e, naturalmente, não se acompanham com manifestações autênticas e involuntárias como as lágrimas.

 
Fonte: http://www.institutodafelicidade.org.br/?pg=riso


Apesar dos sintomas físicos do riso se imitarem mais facilmente do que os das lágrimas, tornam-se também involuntários e reprimíveis quando se trata do verdadeiro riso. O corpo inteiro é agitado por convulsões; o ar é rapidamente expulso para fora das vias respiratórias graças aos movimentos reflexos análogos à tosse ou ao espirro. Todas estas manifestações têm a mesma função que as lágrimas visto que o corpo age como se tivesse qualquer coisa de concreto a expulsar. A única diferença é que um número maior de órgãos entra em jogo no riso.
 
O que se aproxima mais de um riso puramente natural e físico é sem dúvida a reacção do nosso corpo a uma sensação de cócegas. Analisada só em função da sua intensidade, esta reacção parece fora de proporção com a fraqueza do estímulo mas pode muito bem acontecer que corresponda à verdadeira natureza da ameaça não ainda identificada. Num contexto de hostilidade natural, poderia acontecer que uma ameaça de morte iminente, uma mordedura de cobra, por exemplo, não fosse precedido por nenhum outro aviso a não ser umas ligeiras cócegas. O carácter desconhecido e não precisamente localizado do estímulo, pelo menos no imediato, aumenta a intensidade da reacção.
 
O riso, noutros termos, sobretudo nas formas menos "culturais", parece significar, exactamente como as lágrimas, que devemos livrar-nos de alguma coisa; mas essa qualquer coisa é aqui mais importante e deve ser eliminada mais depressa do que no caso de simples choros. Se o corpo é a orquestra, o solista invisível e inaudível é acompanhado por um número muito maior de instrumentos. (p. 203-4)

Note-se também que a partir de uma certa intensidade as lágrimas se transformam em soluços e acabam por se parecer cada vez mais com o riso. Diz-se de alguém cujo riso é incontrolável, que ri portanto verdadeiramente e não finge, que chora a rir. (p. 204-5)
 
Há por conseguinte entre o riso e as lágrimas uma diferença não de natureza mas de grau, residindo precisamente o verdadeiro paradoxo na maneira como se marca esta diferença. Ao inverso do que dita o senso comum, o elemento de crise é mais agudo no riso que nas lágrimas. O riso parece mais próximo de um paroxismo tendendo a traduzir-se por verdadeiras convulsões, mais próximo de um esforço frenético de rejeição e de expulsão. Mas do que as lágrimas, é assimilável a uma reacção negativa de todo o ser a um perigo que lhe parece intransponível. (p. 205)
 
[...]
 
Ri-se verdadeiramente de qualquer coisa que poderia e, num sentido, deveria acontecer a qualquer pessoa que ri, incluindo nós. Creio que isto mostra claramente a natureza da ameaça, despercebida mas sempre presente, contra a qual o riso não pára de se defender, a do objecto ainda não identificado que precisa de se expulsar. A pessoa que ri está prestes a ser anexada pela estrutura de que a sua vítima já faz parte. Enquanto ri, acolhe e rejeita ao mesmo tempo a percepção desta estrutura na qual o objecto do seu riso já está preso; acolhe-a de boa vontade na medida em que é outro que não ele que é apanhado na armadilha, mas ao mesmo tempo tenta mantê-la à distância. A estrutura, que nunca é individual, tende a fechar-se sobre a pessoa que ri. Compreende-se agora porque é que o riso, mais do que as lágrimas, tem as propriedades de uma crise; a estrutura é muito mais visível no cómico do que no trágico; a autonomia do espectador é nela mais imediatamente e mais gravemente ameaçada. (p. 209)
 
[...]
 
O riso físico, como dissemos, tem como objectivo repelir uma agressão vinda do exterior e de proteger o corpo contra uma eventual intrusão. mas as quase convulsões do riso, se se prolongam, acabam por resultar no desmoronamento desde domínio de si que deveriam preservar. O verdadeiro riso torna-nos fracos e reduz-nos quase a uma semi-impotência. (p. 210)

René Girard, A voz desconhecida do real: uma teoria dos mitos arcaicos e modernos, Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

domingo, 23 de outubro de 2016

A ORIGEM DA LINGUAGEM E A TEORIA MIMÉTICA


Eugen Rosenstock-Huessy e René Girard são desbravadores da origem mimética da linguagem.


Eugen Rosenstock-Huessy deduz a origem ritual da própria linguagem, e René Girard descobre o fundamento antropológico do rito.

Eugen Rosenstock-Huessy descreve a necessidade de um tamanho poder do rito, que este criou o tempo, a ordem, nomeou e vestiu de tradição o homem, e René Girard revela que este poder é fonte de nosso desconforto com a civilização, erigida sobre séculos e séculos de assassinatos rituais, de crimes que permitiram que com o sacrifício de poucos muitos prosperassem, o bode expiatório é o herói, o demônio e o deus da religião arcaica, que foi criada pelo ritual primário dos sacrificadores.

Eugen Rosenstock-Huessy percebe que linguagem e religião são um e mesmo fenômeno, origem criadora do que conhecemos e do que somos, René Girard descreve com a crise mimética, que esta origem está no pecado original do assassinato fundador, e na maturidade de sua obra revela que a verdade evangélica nos libertou da ilusão do poder da morte.

A revelação cristã ao ensinar que a vítima do sacrifício era a única inocente no drama do ritual, a religião antiga dos sacrificadores perdeu assim sua beleza estética sagrada, na qual os mitos e lendas sangrentas foram substituídos pela consciência da própria violência, é o início da condição de possibilidade para o sujeito não ser escravizado pelo mecanismo mimético e ser capaz de perdoar, ao custo de sacrificar a própria hibris, pois revelou-se com Cristo uma hubris que nega a solução sacrificadora.

Eugen Rosenstock-Huessy refere que a linguagem foi criada pela repetição de gritos, grunhidos, urros e choros, e René Girard descreve o processo genético desta transformação, com o modelo da Teoria Mimética, na qual a violência expulsa a violência, uma sagrada outra profana, mecanismo que se consolida por infinitas repetições rituais, que possibilitam a paz necessária para uma comunidade estabelecer um padrão de linguagem verbal, que supere as limitações da linguagem animal.

A origem da linguagem estudada por Eugen Rosenstock-Huessy se encontra com o mimetismo comunicacional, que cria e doma a violência, e nesse processo, a linguagem é criada pelo rito, que cria a religião, que com Cristo recria a linguagem mimética, cuja origem profana e violenta torna-se sagrada e poética não mais com a celebração da morte, mas com a afirmação da vida e da inocência do cordeiro sacrificado.

Werner Nabiça Coêlho - 02/09/2016

domingo, 19 de junho de 2016

SOBERANIA E MITO DA LEGALIDADE

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Interessa-nos discutir a natureza social (material) do Poder Político e seu desenvolvimento jurídico (formal) no caminho da institucionalização do Estado, razão pela qual trazemos à baila algumas questões candentes levantadas na República de Platão, que suscita questões recorrentes à legitimidade do exercício do Poder.

O Estado surge da manifestação do Poder que transforma uma coletividade em Povo, destacando-se este ser um fenômeno jurídico (MIRANDA, 2000, p. 165).

O Poder Político é o Poder Constituinte que molda o Estado segundo uma idéia, um projeto, um fim de organização, e, que o Estado não existe em si ou por si, efetivando-se em dois aspectos: autoridade e serviço ( Idem , p. 166).

Miranda socorre-se de Gustav Radbruch nos seguintes termos: “é ainda um direito suprapositivo e natural que obriga o Estado a manter-se sujeito às próprias leis. O preceito jurídico que isto determina é o mesmo que serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” ( Idem , p. 169).

Referido Autor destaca que para a sociologia o exercício do poder político pode ser objeto de análise como poder da comunidade estatal , e, como orientador da comunidade sobre a qual se exerce a orientação.

Todavia, em termos jurídicos, tal cisão seria inadmissível, sendo a titularidade do poder da própria comunidade, tendo uma explicação una e trina , una como fonte do poder, e, trina, pois é o Poder que auto-organiza a comunidade , é o substrato do Estado na forma de Pessoa Coletiva e manifesta-se em seus Órgãos e Agentes detentores de parcelas do poder político.

Esclarece que para os efeitos de sua obra é o mesmo falar em Poder Político e em Soberania ( Idem , 173).

Destas colocações deriva nossa grande questão acerca de qual a origem ideológica do fenômeno jurídico que possibilita ao poder unificar o povo; e, ao mesmo tempo, fornecer uma base de valores que obriga a autoridade a servir este mesmo povo; colocada em outros termos: qual a idéia que legitima o poder, e o transforma em objeto de consentimento popular, ao mesmo tempo em que limita o próprio exercício do poder?

Percebemos que as posições adotadas por Miranda ao invés de revelarem uma resposta clara à questão, simplesmente saltam por sobre o problema sem enfrentá-lo, ao definir corte metodológico, consistente na afirmação dogmática da existência de um direito suprapositivo e natural que teria o condão de obrigar o Estado à bem se comportar, mas, ao mesmo tempo, demonstra grande intuição que já principia a resposta que buscamos quando enfatiza ser este o mesmo preceito jurídico que “serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” (MIRANDA, 2000, p. 169).

Consideramos de suma importância contextualizar o nascimento da idéia normativa fundamental do Estado de Direito Democrático que passaremos a denominar de mito da legalidade.

Quais os elementos conformadores do mito em exame?

Qual sua base histórico-social?

Que filosofia o sustenta?

Qual a sua realidade sob uma perspectiva antropológica e qual sua estrutura discursiva que dá a base ritualista do mencionado mito e que o atualiza?

Iniciaremos com o Livro I da República de Platão, na qual Sócrates questiona um próspero ancião de nome Céfalo acerca de “qual foi a maior vantagem que te proporcionou tua fortuna?” (330 d) (PLATÃO, 1976, p. 46), recebendo a resposta de que “a riqueza é de grande vantagem, porém não para todos; apenas para as pessoas equilibradas. Ela é que enseja a possibilidade de deixar a vida sem receio de haver mentido, embora involuntariamente, e de não ter ficado devendo” (331 b) (PLATÃO, 1976, p. 47).

Após, Sócrates questiona Céfalo sobre a inconstância do conceito de justiça, por este consistir apenas em falar a verdade e restituir o recebemos de outrem, quando coloca a seguinte hipótese: “de alguém receber para guardar a arma de um amigo que se encontre são do juízo, e este, depois, com manifesta perturbação de espírito, exigir que lha restitua, todo o mundo concordará que não se deve devolvê-la” (331 c-d) ( Idem , p. 47-8).

No seguimento do diálogo Céfalo é substituído por Polemarco, e, então, surge a célebre citação da máxima de Simônides “dar a cada um o que lhe é devido” (331e) ( Idem , p. 48), descrito como “enigma poético” (332 b) (Idem , p. 49), que vai suscitando diversidade de respostas proferidas por Polemarco, tais quais: “Tudo indica que para ele é justo dar a cada um o que convém” (332 c) ( Idem , p. 49); “Justiça, então, é fazer bem aos amigos e mal aos inimigos?” (332 d); sendo esta última afirmação refutada da seguinte forma: “a justiça é uma espécie de arte de furtar. Naturalmente: para beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos” (334 a) ( Idem , p. 54).

Reforçando sua contestação ao maniqueísmo como fundamento da justiça, Sócrates demonstra o subjetivismo dos conceitos de amigo e inimigo ao questionar Polemarco: “E porventura não se enganam os homens nisso, justamente, parecendo-lhes boa muita gente que não o é, e vice-versa?” (334 c) ( Idem , p. 52), e, após diversas colocações acerca da natureza da ética concernente à pessoa imbuída de justiça, concluí Sócrates que “não é próprio do justo causar dano nem aos amigos nem a quem quer seja, porém do seu contrário, o homem injusto.” (335 d) ( Idem , p. 54).

Neste ponto do diálogo surge o sofista Trasímaco defendendo a tese de que “o justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte” (336 c) ( Idem, p. 56).

Todavia, ao investigar todas as implicações da definição sofística de justiça, Sócrates acaba por inaugurar na filosofia e na ciência política, em nosso entender, a tese de origem popular do poder político quando diz: “é mais do que claro que nenhuma arte ou governo cuida do interesse próprio, porém, conforme há muito demonstramos, providencia e determina o que é de utilidade para o súdito, considerando apenas o interesse dos mais fracos, nunca o dos mais fortes” (346 e) (Idem, p. 69-70).

Assim, podemos identificar a genealogia da afirmação dogmática de Jorge Miranda, no sentido de encarar o Poder Político, manifestado na Soberania, como auto-organizado pela existência de um direito suprapositivo e natural, que como vimos com Platão é um fenômeno de multidão, e, por isso mesmo, tem em seu substrato e fundamento antropológico explicado cientificamente pela teoria do desejo mimético de René Girard.

A teoria do desejo mimético descreve a origem da cultura na superação da violência inerente às relações humanas, mediante a edificação de ritos e mitos criadores de mediação externa, cada vez mais sofisticada, conforme a cultura desenvolve-se, emergindo na construção do mito da legalidade capaz de legitimar o exercício do Poder lho fornecendo uma ritualística jurídica.

A mediação externa mais sofisticada é o rito jurídico, caracterizado por um discurso peculiar, em que o mito da legalidade é personalizado na autoridade que se apresenta como sujeito e objeto da representação mitológica da legalidade, isto é, a autoridade ao prestar seus serviços submete e é submetida pelo discurso alicerçado na força da idéia normativa (Jouvenel, 1978, p. 34-6) de lei, e assim, temos uma base para a descrição da soberania como resultado da racionalização do Poder da multidão de cidadãos mimeticamente vinculados por mitos que estabelecem padrões de mediação externa, que fomentam idéias normativas de justiça consideradas aceitáveis pelo corpo social.

REFERÊNCIAS

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

GIRARD, René. A violência e o sagrado ; trad. Martha Conceição Gambini; revisão técnica de Assis Carvalho. - São Paulo : Editora Universidade Estadual Paulista; 1998.

GIRARD, René;Rocha, João Cezar de Castro; e, Antonello, Pierpaolo. Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.

JOUVENEL, Bertrand de. As origens do estado moderno: uma história das idéias políticas no século XIX. Tradução de Mamede de Souza Freitas. Col. Biblioteca de Cultura Histórica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. t.III. Coimbra: Coimbra, 2000.

PLATÃO, A República. Diálogos, v. VI-VII. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Coleção Amazônia, Série Farias Brito. Belém: UFPA, 1976.

sábado, 4 de junho de 2016

Princípios jurídicos e direito natural: Proposta para fornecer um conteúdo ético à norma fundamental pressuposta

Este texto foi publicado no site Jus Navigandi no endereço https://jus.com.br/artigos/4361


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SUMÁRIO: Intróito – 1. Que é o direito? – 2. Um breve histórico do direito ocidental – 3. Fato, valor, norma e o direito natural – 4. Crítica à teoria pura do direito – 5. Sintetizando o que já foi dito – 6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de solução – 7. Direito processual e direito material – 8. Que são princípios? – 9. Normas-princípio e normas-limite – 10. Conclusão – Bibliografia.

Resumo: O direito é um fenômeno social e é objeto de estudo de uma ciência cultural, a ciência do direito, d’entre os muitos métodos científicos possíveis vislumbramos a teoria pura do direito, que consideramos adequada como mero instrumento de análise lógica do direito positivo numa perspectiva auto-referente, entretanto, tal postura é insuficiente, pois a auto-referência do texto legal não é uma garantia de que os direitos humanos serão protegidos segundo os valores e ideais que informam a idéia de justiça. Propomos a solução desta insuficiência ética mediante a adoção novos conceitos a respeito de princípios jurídicos estruturados hierarquicamente: princípios, princípios-norma e princípio-limite; tudo com fundamento num conceito físico-bio-racional de direitos humanos, partindo de uma acepção de senso comum a respeito do direito enquanto fenômeno social.

Palavras-chaves: princípios – teoria pura do direito – direito natural – princípios-norma – princípios-limite – norma fundamental pressuposta.


Intróito.

Falemos sobre o direito, e antes de tudo, aviso que sempre me referirei a direito em letra minúscula, e, para realçar, quando me referir ao direito em suas manifestações – de ciência, norma vigente e válida ou filosofia, etc. – simplesmente, acrescentarei o adjetivo adequado, reservando-me a grafar a letra maiúscula somente quando gramaticalmente necessário.

O estudo do direito enquanto ciência apresenta uma perplexidade que mais dia menos dia afeta o seu pesquisador, e, é justamente o fato de que por mais que a atitude do jurista busque uma postura neutral, entretanto, sempre interferem valores, tais valores recebem o nome de princípios que se sobrepõem inclusive sobre o texto constitucional quando a doutrina revela princípios implícitos, como é o caso da segurança jurídica.

O objeto de estudo do direito é o conjunto de normas que vigem em determinado contexto territorial, histórico e social; por que não considerar tais princípios como normas, ? E, mais, tais normas não se reportariam diretamente a princípios primeiros, tais como a vida, a liberdade e a propriedade?

Portanto, os cognominados princípios seriam princípios-norma que se reportariam aos verdadeiros princípios informadores do direito!
Sob esta perspectiva devemos prosseguir na tentativa de melhor fundamentar tal assertiva.


1. Que é o direito?

Direito em acepção comum nos remete à idéia de posse.
Posse é pretensão fundada num título, formal ou informal, real ou imaginário, ou seja, é o produto de uma manifestação de vontade, livre ou vinculada, sobre algo ou alguém, com a finalidade de usar, gozar, dispor ou consumir (PIPES, 2001: 32) o bem possuído, isto é, a idéia de direito é uma idéia de posse e/ou propriedade.

Ora, só há posse de algo se esta pertencer a alguém, e este só poderá vibrar sua pretensão se a mesma for o objeto de desejo de outrem, daí a natureza heterônoma do direito, sua natureza social, enquanto objeto de desejo mimético (GIRARD, 1990), que necessariamente deve ser condicionado por limites axiológicos e objetivos.

Entretanto, o direito como objeto produzido culturalmente jamais deve ser encarado como um instinto social, pois não existe direito na sociedade das abelhas ou numa alcatéia, o direito, além de social é racional, melhor dizendo: é eminentemente racional, é em verdade a racionalização da vida social possibilitadora da convivência baseada no consentimento e na boa-fé recíproca, esta é minha definição de ética a fundamentar a posse legítima de qualquer direito.


2. Um breve histórico do direito ocidental.

De tanto ler sobre sociedades primitivas e/ou arcaicas (GIRARD), sobre a Civilização Clássica (COULANGES, 2001), sobre as luzes medievais (CHESTERTON, 1957) e as trevas modernas (PIPES, 1997), nada é mais fácil de se perceber que quanto mais primaveril uma sociedade mais se pode afirmar que todas as normas sociais (morais, religiosas, de meras condutas sociais ou simplesmente éticas) são eminentemente jurídicas, e jurídicas por mandamento divino, o próprio direito romano, tão celebrado como o fundamento do direito ocidental nada mais era, quando em vigor, que uma série de formalidades rituais originadas na religião arcaica romana, daí a extrema importância dos ritos e da forma para os habitantes do Lácio.

O cristianismo com seus dogmas da divisão entre o Estado e a Igreja e sua ética de amor e perdão, associados aos sábios ensinamentos helenos que demonstram filosoficamente que o direito positivo está submetido à justiça, e, que esta se fundamenta no direito natural, tais tendências preencheram de razão e sensibilidade o duro e frio pragmatismo jurídico do conquistador romano para a formação do direito ocidental, e, com isso, sedimentar o apogeu do direito ocidental, que fundamenta juridicamente àquele fenômeno econômico e social que convencionalmente chamamos de globalização.

Assim do caldo das três culturas fundadoras do mundo ocidental consumou-se após mais de dois milênios de fluxos e refluxos a atual visão do direito como conjunto de normas jurídicas distintas no universo das normas sociais.

O direito é composto de normas sociais cuja nota distintiva é a sanção eficaz em seu grau máximo, ou seja, é a norma imposta pela força se preciso for, enquanto as demais normas sociais quando possuem sanções o são em grau de menor eficácia, pois não se operacionalizam pela imposição mediante o uso da força legítima, pois então seriam jurídicas.


3. Fato, valor, norma e o direito natural.

Logo, para que haja uma norma jurídica basta que a sociedade atribua valor a determinado objeto e o proteja com mecanismos eficazes passíveis de atingir, potencialmente, o grau máximo de violência legítima contra o transgressor dos limites socialmente impostos.
Miguel Reale (1988: 103) em sua assertiva filosófica identifica três dimensões no direito: fato, valor e norma; elementos estruturados dialeticamente, pois fato sem valor jurídico não é subsumível a uma norma, norma é fruto de fatos valorados, e fato associado à norma onde se ausenta a relevância social da conduta é norma em desuso.

O Direito é, portanto, o fenômeno social apreensível quando pretendemos estudar uma sociedade desde suas estruturas de convivência, é o conjunto das leis phisicas de uma sociedade, pois phisis é o mesmo que natureza, ou seja, em outra terminologia podemos dizer que o Direito é o conjunto das leis naturais que possibilitam a vida social.

As leis da phisica social não são as mesmas leis que regem os fenômenos físico-biológicos, aquelas são leis que existem com e sobre estas, as leis naturais que incidem sobre o homem sofrem limitações do meio físico-biológico, mas, possuem face racional e natureza discursiva, cuja existência é relacionada com o contexto cultural e cronológico de dada sociedade (Em oposição às leis físico-biológicas, que são leis sem história e sem contexto, pois a água sempre terá duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio e o ferro sempre pigmentará o sangue de rubro.).

Antes de prosseguir, devo ressaltar que a consciência de um certo condicionamento histórico relativo aos direitos naturais humanos é um fato da vida que não pode ser ignorado, mas, esta percepção não é uma tomada de postura evolucionista em sua versão aplicada às ciências sociais, ou seja, o historicismo, o que percebo é que o contexto histórico e social são fundamentais para que o direito seja aplicado, em maior ou menor grau, conforme as constantes racionais presentes na phisica social, v. g., o direito à vida é uma constante que em diversos momentos e contextos históricos é altivamente ignorada e em outros, como em nossa atual ordem constitucional é elevada à categoria de cláusula pétrea com a vedação de pena de morte (art. 5º, inciso XLVII, alínea ‘a’, da CF), salvo em circunstância bélicas que implicam na suspensão de tal proibição.

Diante deste quadro, pintado em rápidas pinceladas, em que o direito é encarado como realidade histórica condicionada a leis naturais físico-biológicas e racionais, pergunto: que leis naturais e racionais são essas?

Vejamos, quando acima falei num sentido coloquial da palavra direito, e remeti à idéia de posse, quis frisar uma idéia de senso comum, e, ainda com base nesse mesmo sentido comum pergunto-me: qual o direito, ou posse, que pressupõe todos os direitos e posses, sem a qual não se pode cogitar da posse de qualquer outro direito? Qual o direito que encontra o seu fundamento na realidade natural físico-bio-racional?

A vida é ao mesmo tempo a posse que pressupõe todas as posses e o pressuposto ontológico a qualquer posse, é ao mesmo tempo fundamento material e formal para os demais direitos.

De posse da vida postulamos a liberdade, para usufruir uma e outra necessitamos de ao menos duas posses ou propriedades fundamentais: a primeira é posse da própria vida, a segunda é a da liberdade de dispor com livre arbítrio o próprio destino.

Aqui a vida é tomada naquele sentido impresso por Ortega y Gasset (1962: 184), de que a vida implica e é implicada por um cabedal de circunstâncias lógicas e concretas.
Nesta perspectiva todos os direitos são humanos, pois todos estão subordinados à vida, à liberdade e à propriedade, suprima um e farás ruir os demais.

Diante destas verdadeiras leis naturais (vida, liberdade, propriedade) é que a ordem jurídico-positiva inteirinha deve se ajoelhar e reverenciar a idéia de justiça, a idéia de proporção, pois justiça é proporção direta ou inversa, regressiva ou progressiva, o justo é proporção qualitativa e quantitativa, dependendo de que bem jurídico valorado seja material ou intelectual.


4. Crítica à teoria pura do direito.

Quando encaramos o direito como ciência precisamos fazer um corte metodológico que é puramente formal e abstrato, e, se não tomarmos todas as contramedidas que nos impeçam de considerar o conceito científico mais importante que o objeto de estudo, a abstração pela realidade, poderemos incorrer no equívoco de querer dobrar a realidade viva do direito pela idéia etérea da ciência do direito.

O método juspositivista em si é meritório ao isolar o sistema de direito positivo e analisá-lo em suas interações dinâmica e estática, em possibilitar a análise da ordem vigente e eficaz produzida por autoridade competente e processo adequado, metodologia que possui muito valor analítico, mas, em princípio, nenhum valor ético, seria o equivalente a uma cromatografia que simplesmente separa os elementos constituintes do objeto de pesquisa.

O diabo tentador vive justamente nesta última parte, quando o juspositivista se agarra à idéia de processo adequado para a formação da norma, ou seja, que o direito só é inaugurado por um processo de enunciação normativa apropriada, passa-se a tomar a parte pelo todo, e, conseqüentemente, a noção do direito enquanto processo formal acaba suplantando a sua realidade substancial, que é, em certa medida um processo concreto existencial cuja forma de constituição é tão livre quanto as possibilidades de interação social.

O maior vício intelectual produzido pela visão do direito somente como processo de produção positiva de normas, não obstante as vantagens analíticas evidentes, proporcionadas pela postura científica aí inerente, é que a idéia de norma fundamental pressuposta é só uma outra forma de descrever o imperativo categórico kantiano.;

Kant efetivou uma grande trapalhada conceitual que acabou por criar uma falsa distinção entre fundamentos ideais e pragmáticos da conduta humana (CARVALHO, 1998), findou por definir que devemos obedecer a um dever moral "porque sim", e, assim, quando Kelsen (2000: 221) cria a sua hipótese científica nos impinge esta mesma noção, devemos pressupor uma norma fundamental "porque sim", mas, a boa pedagogia ensina que até para crianças em idade pré-escolar não devemos responder "porque sim", pois não é resposta adequada para matar a sede de conhecimento natural ao ser humano quando infante, que dizer para nós que somos quase "doutores".

Portanto, sem negar nem uma vírgula da doutrina kelseniana naquilo que há de mais fundamental como método hipotético-dedutivo fornecedor de instrumental teórico válido para analisar o direito positivo como sistema auto-referente, critico somente o vazio ético inerente à idéia de norma pressuposta fundamental, nosso Kelsen (2000: 242) tanto criticou a idéia de direito natural como se fosse um ato de fé, que não se apercebeu que toda a sua doutrina nada mais é que... um ato de fé; a fé na norma fundamental pressuposta, num imperativo categórico, num "porque... sim" vazio de conteúdo e passível de ser utilizado para qualquer finalidade.

Por mais que seja referida a necessidade de que haja uma escolha política sobre o valor a ser adotado na escolha da finalidade a ser dada ao direito positivo, a doutrina kelseniana acaba por se recolher numa falsa neutralidade ao ignorar sistematicamente valores e fatos subjacentes às normas, para o juspositivismo exagerado a norma é algo vivo e o valor e o fato jazem no limbo do incognoscível da metafísica.


5. Sintetizando o que já foi dito.

O direito é realidade que se origina na matéria da vida social, é o processo que possibilita a própria convivência; em suas origens englobava todas as normas sociais, atualmente, somente aquelas passíveis de uma valoração tal que implique no extremo do uso da força para sua defesa; é fruto de processo histórico condicionado a leis naturais físico-bio-racionais; o princípio fundamental do direito natural é a vida, seguida da liberdade e da propriedade, toda a ordem jurídica compõe-se de variações sobre estes temas que são a síntese dos direitos fundamentais.

Diante desta realidade material da vida, da liberdade e da propriedade, vislumbramos a substância do direito, enquanto que o direito posto, vigente e eficaz diz respeito à forma de garantir a integridade de tais matérias.

A crítica que se faz ao juspositivismo extremado, que se deixa levar pela idéia de que o direito positivo é o único que importa, não diz respeito ao método e ao objetivo do estudo do direito como ciência, mas, diz respeito ao perigo que há em se tornar o processo de garantia dos direitos fundamentais numa forma de supressão destes mesmos direitos fundamentais mediante uma crescente abstração em que as normas mais disparatadas quanto ao conteúdo são consideradas legítimas somente em virtude do atendimento das formas prescritas no processo de produção normativa.

A tendência de abstração do direito é inerente à postura de kelsen, herdada de Kant, de resolver problemas fundamentais da filosofia jurídica com a tosca idéia de imperativos categóricos que só se fundamentam numa afirmação hipotética destituída de valor ou justificativa maior que a necessidade de conferir um ponto de partida científico ao estudo filosófico ou jurídico, é como transferir para o direito o fiat lux divino presente no Gênesis, mas, nem o direito é religião, nem Kelsen foi profeta, logo, a tentativa de fundar a ciência do direito numa hipótese puramente neutra só serve como ato de fé vazio de conteúdo, apesar de a teoria pura do direito ter seu valor metodológico para o estudo analítico e sistemático pretendido pela ciência do direito em vista do direito positivo como sistema auto-referente, o seu tendão de Aquiles está justamente em sua pretendida neutralidade científica.

O direito é uma ciência que estuda a técnica de determinação deôntica que atua sobre fatos sociais de natureza ôntica e penetrados de valores, portanto, as limitações inerentes à neutralidade científica nas análises de fundo kelseniano, e, mesmo os mais formalistas dos juspositivistas, sempre, têm que se socorrer dos valores e raciocínios da axiologia jurídica... porque sim.


6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de solução.

Deve a postura juspositivista ser dosada pela idéia de direito natural.
Somente o direito natural, especificamente partindo da realidade material e inconteste do direito natural à vida.

O direito natural à vida preenche com sucesso o conteúdo ético faltante à noção de norma fundamental pressuposta, pois somente através da existência material da vida se vive o processo existencial do relacionar-se juridicamente.

O direito em seu sentido mais amplo possível é um reflexo da realidade, pois quando a norma jurídica, consuetudinária ou escrita, regula e tutela vida e os seus bens em seus aspectos estático de ser e dinâmico de dever-ser, situações e relações, então podemos identificar o direito material e seu corolário que é o princípio-norma da verdade material.

Quando o direito tutela as relações jurídicas inerentes ao viver individual e suas interações sociais, definindo os mais diversos procedimentos, as mais diversas garantias aos direitos materialmente considerados, quando surgem instrumentos de proteção, prevenção ou reparação então teremos o direito adjetivo, ou processual, que faz surgir o princípio-norma do devido processo legal, surge o direito enquanto garantias e mecanismos efetivos de operacionalização das suas funções preventiva e repressiva de conflitos sociais.

O ideal está em que verdade material se imponha à verdade formal, pois o direito é um dever-ser sobre o ser, produto e não produtor, quando muito indutor.


7. Direito processual e direito material.

Finalmente, esclarecida minha filosofia jurídica, vamos à doutrina científica, já com base na idéia de direito natural acima expendida, só me resta fazer o bom e velho corte metodológico e encarar o direito processual e o direito material pertencentes ao gênero das normas jurídicas, e, dependendo da perspectiva, as normas processuais podem ser encaradas como normas de conduta ou de estrutura (BOBBIO, 1989: 45).

São normas de conduta na medida em indicam os limites objetivos e subjetivos que devem ser atendidos pelos sujeitos passivo e ativo de dada relação jurídica; de estrutura quando informarem a conduta do agente público incumbido de julgar o mérito de dado processo, judicial ou administrativo.

Norma material é a norma de conduta que versa sobre condutas relativos a determinado bem jurídico, material ou intelectual, objeto de atos e fatos jurídicos, sem que seja necessária a instauração de outra relação jurídica em que um terceiro intervenha para solucionar eventual conflito ou sanar ocasional dúvida.

Uma vez que seja necessária a intervenção de um agente público para a solução de pretensões oriundas de uma relação jurídica material, então teremos normas de natureza processual; normas de conduta para as partes integrantes dos pólos em oposição de interesses, mas que vigerão como normas de estrutura para o julgador que produzirá uma novel norma jurídica constituída numa decisão solucionadora da lide, mediante a edição de uma norma individual e concreta que confirmará, infirmará ou afirmará o direito material de um dos contendores ou de partes dos interesses recíprocos em conflito.

Em suma, num linguajar inspirado em Cossio (apud CARVALHO, 1999: 36), afirmo que o direito material é o conteúdo composto de bens jurídicos, presentes na endonorma, que sofre a proteção do direito processual que é a forma de garantir eficazmente aquele mediante a introdução de uma norma criada processualmente, ou seja, a perinorma, suscetível de execução forçada, isto é, de coatividade.


8. Que são princípios?

Partindo da premissa maior de que princípios uma vez fixados, não podem mais "ser questionados por serem auto-evidentes demais", delimitam "o campo da ciência e as possibilidades do seu desenvolvimento futuro", e, "tudo aquilo que forma o princípio fundante de uma ciência não faz parte dela" e que o "desenvolvimento posterior de uma ciência não mudará esses princípios", e, ainda, que "o princípio jamais pode ser impugnado" (CARVALHO, 2002: 21).

Passando pela premissa menor de que o direito à vida é auto-evidente, que sua fruição (liberdade e propriedade) delimitam o campo de suas possibilidades, que o direito à posse da própria vida está para além de qualquer consideração juspositiva legítima tendo em vista que o princípio vital em si não é legislável, e que a sua impugnação é máximo do arbítrio negador do Direito;

Portanto, concluo que princípio mesmo só o direito à vida, princípios derivados imediatamente são os direitos à liberdade e à propriedade, e derivados mediatamente temos normas-princípio e normas-limite; normas-princípio, indicam limites lógicos ao aplicador do direito; e, normas-limite determinam as fronteiras objetivas que devem ser respeitadas pelo jurista.

Diante desta conceituação até admito a terminologia de Paulo César Conrado (2002: 49 e ss.) de princípios constitucionais e infraconstitucionais, lato sensu (limites objetivos) e estricto sensu (sobreprincípios), genéricos e específicos, mas, com um reparo, todos estes princípios ou são normas de conduta ou normas de estrutura, isto é, ou são limites à conduta dos sujeitos de uma relação jurídica ou são normas destinadas a regrar a conduta de um agente competente para produzir normas jurídicas, abstratas e genéricas ou individuais e concretas. princípios, mesmo, só a fazenda, a liberdade, e, claro, sobretudo a vida.


9. Normas-princípio e normas-limite:

O que Conrado chama de sobreprincípio, eu prefiro nominar de normas-princípio, que são normas extraídas expressa ou implicitamente do sistema positivo, racionalmente reveladas da análise estrutural do mesmo sistema.

Tais normas-princípio podem até ter qualidades solares ou de uma lamparina para iluminar a compreensão dos setores normativos (CONRADO, p. 51), salvo a carga poética ou mesmo de fótons, prefiro dar o parecer de que são essencialmente normas de estrutura cuja destinação está em orientar a aplicação do direito, e, aí sim, podem até iluminar as trevas da dúvida diante de um caso concreto, mas nada mais serão que normas com função de princípios, ou princípios com função de normas, normas-princípios, portanto.

Para mim sobreprincípio, ou princípio primeiro, ou simplesmente princípio é o direito fundamental, cuja origem é natural e apreensível pelo puro e simples bom-senso, ou seja, o princípio que deve informar todo os sistema jurídico é a vida, cujas derivações necessárias são a liberdade e a propriedade.

Para a doutrina tradicional, representada por Conrado, são os princípios em sentido estrito, ou sobreprincípios que teriam prevalência hierárquica sobre os princípios delimitadores de limites objetivos cujo caráter interpretativo possui um caráter axiológico. Ocorre que tais princípios, ou como prefiro: normas-princípio; são, quando muito, princípios secundários ou derivados dos princípios pressupostos da vida, liberdade e propriedade.

Em matéria processual, estas normas-princípio são normas de estrutura orientadoras da conduta do julgador e garantidoras dos direitos materiais das partes envolvidas.

Veja-se a norma-princípio do devido processo legal (dues process of law) que se trata de uma norma orientadora de todo e qualquer processo que tanto pode inquinar de ineficácia uma sentença que interprete inadequadamente os dispositivos que garantem a isonomia entre os postulantes do processo, bem como pode servir para invalidar a própria lei que fira um dos princípios específicos do processo, como lei que eventualmente suprima o contraditório e a ampla defesa para desconsiderar administrativamente os atos jurídicos perfeitos sobre os quais incida uma norma tributária, mesmo que tal desconsideração se dê sob a égide de uma suposta repressão à evasão fiscal.

Havendo, ainda, os princípios-limite que Conrado denomina de princípios em sentido amplo que indicam um limite-objetivo de natureza instrumental e técnica.
;
Patenteia-se, portanto, uma hierarquia tripartite de princípios jurídicos: princípios, normas-princípio e normas-limite que sujeitam a interpretação e aplicação estrutural da norma jurídica de conduta incidente nas relações jurídicas.


10. Conclusão.

A grande conclusão a ser tirada é que o fundamento ético necessário à norma fundamental pressuposta de Kelsen é o direito natural fundamental à vida, cuja base físico-bio-racional preenche todos os requisitos para a definição de um princípio científico, definidor do âmbito de interesse e dos limites do estudo.

E, tendo em vista que pretendemos somente iniciar um debate no fecundo âmbito da teoria geral do direito, com especial enfoque no direito tributário, só nos resta concluir postulando que todo o sobredito é uma tentativa teórica de fundamentar a norma-limite da verdade real ou material que se propõe atuar na determinação de limites à sanha arrecadatória do Estado, pois o direito de tributar é mero direito de confiscar conforme o ordenamento legal uma parcela razoável do patrimônio do particular, pessoa física ou jurídica, para sustentar o aparato de serviços públicos destinados a amparar as garantias e direitos individuais e a Ordem Pública que lhe é vinculada.

Em outros termos, o direito de tributar é uma espécie de confisco consentido, cujos recursos são destinados ao financiamento do Estado, cuja finalidade é disponibilizar garantias legais, materiais e processuais, ao patrimônio jurídico do contribuinte, patrimônio este que principia na posse de sua própria vida e na livre disposição da mesma.

A estrutura teórica acima descrita, também, tem o sentido de explicitar o caráter declaratório de toda e qualquer atuação estatal, e, mais especificamente, quando o Estado efetiva um lançamento tributário jamais constituirá uma relação jurídica, somente a declarará, quando muito irá constituir o fundamento jurídico de um título executivo extra-judicial, haja vista que a obrigação tributária é fruto da incidência abstrata da norma, enquanto o crédito é necessariamente um produto da incidência concreta da norma, realizável mediante ato de declaração, a natureza constitutiva será limitada somente ao crédito, e, sua constituição implicará na interrupção do prazo decadencial, quando o lançamento é realizado tempestivamente, e, no início do prazo prescricional, para a propositura da execução fiscal.

Ao nascermos o Estado somente declara que viemos ao mundo com o atributo da vida, a certidão de nascimento é mera norma individual e concreta que serve de pressuposto a outras normas individuais e concretas, como a carteira de identidade, logo, tal qual no lançamento tributário, a vida, e os fatos econômicos da vida, são mero objeto de declaração, numa de constituição, o que o Estado constitui são somente normas, abstratas e gerais ou individuais e concretas.

Quando o Estado se propõe a manipular os conceitos jurídicos a ponto de ignorar o fundo ontológico do direito, mediante a edição de leis que definem e punem supostos abusos de direito, criando ficções jurídicas em que o contribuinte é punido por atuar regular e licitamente conforme o ordenamento jurídico quando efetiva o seu planejamento fiscal, então, preparemo-nos porque tal Estado se esqueceu das garantias e direitos fundamentais do indivíduo, e, no lugar dos direitos humanos de fundo real e concreto baseado na própria vida, pretende instaurar o totalitarismo da supremacia do interesse público fundado na abstração jurídica e formal de uma norma fundamental pressuposta vazia de conteúdo ético.

A norma fundamental pressuposta, mera hipótese científica, quando tomada não como meio, mais como fim, acaba por ser passível de servir à velha promessa messiânica de instauração do paraíso terrestre, projeto que sempre ao ser executado se converte na própria visão do inferno sobre a Terra.


Bibliografia

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico; introdução Tércio Sampaio Ferraz Júnior; tradução Cláudio de Cicco e Maria Celeste C. J. Santos; revisão técnica João Ferreira – Polis: São Paulo; Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1989.

CARVALHO, Olavo de. História essencial da filosofia – aula 1: história das histórias da filosofia. É Realizações: São Paulo, 2002.

____________________. Kant e o primado do problema crítico. Disponível em: <http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/Kant.htm>. Acesso em: 31/07/1998.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 2.ª ed.. Saraiva: São Paulo, 1999.

CHESTERTON, G. K.. São Tomás de Aquino; trad. e notas Antônio Álvaro Dória; 3. ed.. Livraria Cruz: Braga, Portugal, 1957.

CONRADO, Paulo Cezar. Introdução à teoria geral do processo civil. Max Limonad: São Paulo, 2000.

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Editora Martim Claret: São Paulo, 2001.

GIRARD, René. A violencia e o sagrado; trad. Martha Conceição Gambini ; revisão técnica de Assis Carvalho. Editora Universidade Estadual Paulista: São Paulo, 1998.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; 6. ed.. Martins Fontes: São Paulo, 2000.

ORTEGA Y GASSET, José. Que é filosofia?. 1. ed., Ed. Livro Ibero-Americano, Ltda: Rio de Janeiro, 1961.

Pipes, Richard. História concisa da Revolução Russa; tradução de T. Reis. Record: Rio de Janeiro, 1997.

Pipes, Richard. Propriedade & liberdade; tradução de Luis Guilherme B. Chaves e Carlos Humberto Pimental Duarte da Fonseca. Record: Rio de Janeiro, 2001.
Reale, Miguel. Lições preliminares de direito, 16a ed. Saraiva: São Paulo, 1988.








Informações sobre o texto



Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)


COELHO, Werner Nabiça. Princípios jurídicos e direito natural.. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 88, 29 set. 2003. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4361>. Acesso em: 4 jun. 2016.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

O discurso jurídico é um ritual: teoria mimética e linguagem jurídica, a possibilidade da mediação externa

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Girard define o “mecanismo mimético” de forma ampla no sentido de incluir o “desejo mimético, a rivalidade mimética, a crise mimética e a sua resolução pelo bode expiatório” (s/d , p. 84), pois a “expressão 'desejo mimético' refere-se apenas ao desejo que é sugerido por um modelo” ( Loc. cit.).
O desejo mimético é classificado como um ente “real”, distinto de simples apetites, pois estes envolvem necessidades cujo fundamento é biológico (comida e sexo, v.g.), que não são necessariamente ligados aos desejos miméticos.
Todavia, todo apetite é passível de ser contaminado pelo desejo mimético a partir do momento que exista um modelo, pois “a presença do modelo é o elemento decisivo na definição do desejo mimético” ( Loc. cit. ).
Se o desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais diferença entre instinto, apetite e desejo, por sua vez, em contraste com a fixidez dos apetites ou instintos, verificamos a mobilidade do desejo, e esta mobilidade decorre da imitação, pois, conforme Girard:

Aí reside a grande diferença: todos temos sempre um modelo que imitamos. Só o desejo mimético pode ser livre, ser de fato desejo, pois tem de escolher um modelo. Não compreendemos isso, porque, para tanto, nunca recorremos ao primeiro estágio do desenvolvimento humano. Toda criança tem apetites, instintos e um ambiente cultural no qual aprende imitando. Imitação e aprendizagem são inseparáveis. A rivalidade mimética se evidencia assim que a criança começa a interagir com outras. A criança tem uma relação de mediação externa, isto é, de imitação com os adultos, e uma relação de mediação interna, isto é, de imitação e rivalidade, com seus pares ( Op. cit., p. 85).
O desejo mimético gera duas possibilidades de mediação com o modelo a ser imitado, ou o sujeito se encontra no mesmo mundo que o modelo, ou pertence a outro mundo.
Na hipótese de imitador e modelo não estarem no mesmo nível, numa situação em que o modelo é considerado superior e/ou distante como que numa relação hierárquica, gera-se a mediação externa.
Quando não podemos possuir o objeto pertencente ao modelo ou por ele desejado, com isso, um conflito direto entre o sujeito e o seu modelo está fora de questão, e a mediação externa acaba sendo uma mediação positiva, pois assume valor pedagógico, por impossibilidade de conflito direto com o modelo.
Se no achamos no mesmo mundo que o modelo, não há nenhum distinção hierárquica por exemplo, então o objeto que ele deseja está ao nosso alcance e a rivalidade irrompe.
Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simétrica, pois ambas as partes passam a concorrer pelo mesmo objeto.
À proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo.
Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo e imitador de seu imitador.
Em tal situação os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados e idênticos em seu conflito crescente.
A crise mimética é sempre uma crise de indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de rivais, e, assim:
[...] Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armazenando energia conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as direções, porque, uma vez em marcha, o mecanismo mimético só se torna mais atraente para os observadores: se duas pessoas estão disputando um mesmo objeto, então deve tratar-se de alguma coisa pela qual vale a pena lutar, pensam os observadores, a quem tal objeto fica parecendo mais valioso. O objeto valorizado tende a provocar mais e mais cobiça, e, ao fazê-lo, a sua atratividade mimética somente cresce. Enquanto isso acontece, o objeto também tende a desaparecer, a ser dilacerado e destruído no conflito. Para que a mimesis se torne puramente antagonística, o objeto precisa desaparecer. Quando isso ocorre , temos [...] a emergência da crise mimética, pois quando o objeto desaparece, não há mais mediação entre os rivais: o conflito é iminente. À medida que mimesis se converte em antagonismo, a tendência é que ela se torne acumulativa, passando a envolver vários membros de uma dada comunidade, até que o processo leve à violência contra o único antagonista remanescente – o “bode expiatório”. [...] A importância desse mecanismo reside no fato de direcionar a violência coletiva contra um único membro da comunidade arbitrariamente escolhido. Essa última vítima se converte no inimigo comum da comunidade, que então se reconcilia em virtude da canalização da violência contra a vítima. ( Op. cit., p. 87-8).
A crise sacrificial, e seu desenlace, na criação do bode expiatório, consolida-se em ritos, fenômeno que se encontra enraizado no início de todas as culturas, em sua fase primitiva.
O rito atualiza o sacrifício original do bode expiatório, é a violência sacralizada, transformada em meio de mediação externa a canalizar a violência coletiva, possibilitando a criação da estabilidade social necessária para a evolução social. Girard disserta sobre o rito que:
O rito equivale a uma escola, repetindo indefinidamente o mecanismo do bode expiatório com vítimas substitutas. Por corresponder à resolução de uma crise, o rito intervém sempre nesses momentos críticos e sempre estará presente quando suceder o mesmo tipo de situação. [...] (p. 96)
Há duas maneiras possíveis de ver o rito. A primeira delas, a visão iluminista, segundo a qual a religião é superstição, esvazia o rito de significado. A visão alternativa baseia-se no fato de que o rito pode ser encontrado em toda parte [...] e, da constatação dessa “onipresença”, conclui-se que deve gerar todas as instituições culturais. Pesquisando-se cuidadosamente, verifica-se que todos os grandes espaços públicos são espaços ritualísticos e têm sua origem no rito [...] (p. 97)
Frisamos que segundo o modelo de explicação derivado do mecanismo do bode expiatório , enquanto evento fundador da cultura, precede qualquer espécie de ordem cultural, inclusive, atuando no princípio sob “formas de associação não lingüísticas, intermediárias entre o animal e o humano – se não quisermos dizer próprias do 'homem antes do surgimento da linguagem'” (GIRARD, s/d, p. 124).
Como vimos acima, a teoria mimética reconhece o ritual como a forma primária de resolução de conflitos desde a gênese do acontecer humano, mediante o estabelecimento do discurso social criador de mediação externa pacificadora, em contraste com os conflitos gerados pela mediação interna.
Constatamos que ao ser aplicada teoria mimética no âmbito do Direito, é possível classificar o discurso jurídico como uma forma de mediação externa, que se operacionaliza com base no sofisticado mito da legalidade.
O mito da legalidade de forma pragmática estabelece o império da razão pela adoção de procedimentos criadores de condutas hierarquizantes, cuja finalidade é suspender o conflito mimético mediante a intervenção de uma situação comunicativa peculiar.
Ferraz (1997) compreende por discurso uma “ação lingüística dirigida a outrem, donde o seu caráter de discussão, em que alguém fala, alguém ouve e algo é dito” (p. 57).
Uma situação comunicativa é composta de dois aspectos, externo e interno, este a estrutura do discurso, aquele, o mundo circundante.
A estrutura do discurso cumpre a função de reduzir a complexidade do meio, mas, o discurso jurídico diferencia-se, mediante a existência de uma “peculiar situação comunicativa” (p. 58).
Para Ferraz “a situação comunicativa jurídica se limita internamente também na forma de regras de atribuição e de diferenciação de papéis” (p. 59-60), tal diferenciação motiva a existência de uma estrutura hierárquica no próprio discurso proferido pelas partes presentes na situação comunicativa, na qual há o reconhecimento da faculdade de exigir a informação dentro da situação comunicativa jurídica, o diálogo se estabelece como regra, pois a legalidade é superior às partes em conflito, eis a mediação externa.
Com a exigibilidade formalmente estabelecida como faculdade das partes as “ações lingüísticas deixam de ser mera expressão subjetiva dos comunicadores, ganhando, igualmente, as suas reações uma certa 'coordenação objetiva'” (FERRAZ, p. 60); e, “amplia a situação comunicativa social, acrescendo-a de mais um comunicador: o árbitro, o juiz, o legislador, mais genericamente a norma. A situação comunicativa torna-se assim triádica” (Idem).
O princípio da legalidade implica na criação de uma coordenação objetiva, entre duas expressões subjetivas, com a finalidade de fazer valer a mediação externa garantida pelo comunicador, que se encontra como modelo de conduta e que representa a própria norma dentro da situação comunicativa triádica assim estabelecida.
A exigibilidade gera um momento de liberdade dentro da situação comunicativa lingüística, em que a mentira pode se fazer presente, durante o debate, como expressão da subjetividade das partes, implicando numa instabilidade inerente, que deverá ser corrigida pelo discurso jurídico organizado pela coordenação objetiva de um agente representante da norma, que serve de modelo criador de mediação externa capaz de conferir a objetividade necessária para o estabelecimento da verdade possível, com fundamento em elementos objetivos ou objetivantes.
Revela-se a estrutura de uma relação dialógica jurídicabasicamente como uma discussão-contra” que envolve uma questão típica, o “conflito” e uma função, também, típica, que é “possibilitar uma decisão” (p. 62):

O terceiro comunicador é quem garante a seriedade do conflito, fazendo do discurso um discurso racional, aquele em que as questões (no caso, conflitivas) não são fortuitas, mas se acham determinadas pelo dever de prova: elas ocorrem apenas em relação a uma conexão compreensiva já existente, mas que dada a participação peculiar do ouvinte, não mediatiza uma certeza, ao contrário, abre um leque de possibilidades [...].
Um conflito levado a sério, nesses termos, significa, pois, que nem tudo pode ser conflito [...].
E, além disso, significa sua ocorrência temporal, na medida em que, pela participação do terceiro comunicador, ele é ao mesmo tempo provisoriamente suspenso e mantido, o que dá tempo para que seja discutido: entre orador e ouvinte há, assim, uma distância temporal que lhes permite separar a emissão da ação lingüística da sua recepção, o que envolve o estabelecimento de regras temporais em termos de prazos. (p. 63) (grifos no original)
O Direito ao ser encarado com base no modelo da teoria mimética cumpre seu papel ritualizando o conflito, mediante a inserção de um terceiro comunicador, que pode ser encarado como a própria norma jurídica, que por sua vez suspenderá a rivalidade entre os contendores, criando elementos formais (rituais) possibilitadores de uma mediação externa, com o estabelecimento de prazos e a exigência de argumentações fundamentadas em provas.
Para que a exasperação do conflito seja substituída pelo debate ponderado, superando-se o conflito, pelo estabelecimento de um campo neutro, cria-se a mediação externa mediante a aceitação da superioridade do representante da lei, da superioridade da norma.
Neste sentido: “As normas jurídicas assim terminam conflitos no sentido de elas os institucionalizam” (FERRAZ, p. 65), significa dizermos que o mito da legalidade absorve para si o momento da violência em potencial, e o converte em ritual institucionalizado.
É a mediação externa, possibilitada pela superioridade hierárquica e ritualizada, que convida as partes à reflexão acerca do conflito, com a devida assistência material do representante sacerdotal da norma, que se personifica na figura do juiz, do mediador, do árbitro.
A natureza reflexiva ao discurso jurídico “na medida em que a constituição da alternativa em relação a uma norma pode ser de novo questionada” (FERRAZ, p. 67), em que a norma jurídica mesma surge como “uma ação lingüística racional, no sentido de discurso fundamentante” (p. 68), configurando-se o direito num discurso normativo cuja finalidade é criar a mediação externa capaz de afastar a violência inerente à ação da mediação interna criadora da violência mimética.
O ritual formalizado e estruturado na auto-referência do próprio discurso jurídico, fundado na metalinguagem que atualiza o mito da legalidade, mediante crescente processo de racionalização, teórica e pragmática do discurso, com a finalidade de operar a mediação externa, necessária para controlar, suprimir ou redirecionar a violência social mediante a inserção da objetividade da veracidade probatória em meio ao conflito intersubjetivo, é uma das conquistas mais profundas e importantes da linguagem para possibilitar a comunicação humana, linguagem esta, criadora de uma situação comunicativa triádica  que denominamos de Direito.
REFERÊNCIAS
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
GIRARD, René; ROCHA, João Cezar de Castro; e, ANTONELLO, Pierpaolo. Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.


O MITO DA LEGALIDADE É RAZÃO LIBERTA DO DESEJO!


 

Há quem afirme que a constituição é “a nova morada de Deus(CHAUÍ, apud NADAL, p. 129).

Ao considerarmos a constituição como mito, afirmamos que o próprio princípio da legalidade é um mito, pois simboliza a legalidade em alto grau normativo.

A idéia de constituição torna-se, portanto, um princípio basilar do pensamento jurídico, em seu nível poético, no sentido de fonte criativa de imagens inspiradoras da ação (princípios), ao ser compreendido como norma fundamental, para, em última análise, servir de base de sustentação ao discurso sagrado da legitimidade de uma espécie de religião civil à moda do contrato social iluminista.

A constituição, como símbolo que representa o mito da legalidade, numa perspectiva antropológica girardiana, possui estreita relação com a necessidade humana de prevenção da erupção da violência, e, portanto, é uma condição de possibilidade para a própria existência da vida em sociedade.

A doutrina do Direito Constitucional nos ensina que o Poder Constituinte é fruto de uma Revolução Política, cuja energia seria oriunda do Povo, que tanto pode assumir um caráter de crise violenta e imprevisível, como pode ser pacífica, e criada por meio de uma Assembleia Constituinte, incumbida de fundar uma nova ordem constitucional. 

A linguagem simbólica da ciência política trata o ser humano, vivo, espiritual e carnal, com base em abstrações: "Revolução", "Poder", "Povo" e "Assembleia", que convidam nossa imaginação a vislumbrar panoramas épicos, em que os heróis criam uma sociedade política impessoal e purificada dos males do passado, como se toda mudança política fosse resultado de uma evolução progressiva, para formas mais perfeitas de Estado.

Todavia, por mais mitológica que seja a construção da ideia de lei, tal imagem não é fruto de um processo irracional, pois há uma necessidade humana de estabilidade e segurança, que deve ser atendida, e esta necessidade é suprida pela criação de processos sociais fornecedores de mediação externa nas relações humanas. 

A mediação externa é operada por um terceiro situado simbolicamente acima das partes, superioridade que impõe uma ordem normativa incontestável, esta é a estrutura básica do mito, quando os heróis em conflito são punidos ou agraciados pelos deuses, ordem versus caos, uma vez que a violência é oriunda das mediações internas, em que os contendores estão no mesmo nível de desejo, e são potenciais competidores num processo autodestrutivo de vingança interminável.

Aristóteles renega a irracionalidade da idéia de lei, e, demonstra que o predomínio da emoção será afastado com a aceitação do princípio (mito) da legalidade, nestes termos:


Na verdade, tudo o que a lei parece ser incapaz de resolver, também não pode ser conhecido por um só indivíduo. A lei que formou adequadamente os magistrados, encarrega-os de dividir e resolver “do modo mais eqüitativo possível” as restantes questões. Ademais, concede-lhes o direito de corrigir o que, em resultado da experiência, lhes parece ser melhorável em relação às leis escritas. Assim, exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem; pelo contrário, exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal; o desejo cego é semelhante a um animal e o predomínio da paixão transtorna os que ocupam as magistraturas, mesmo se forem os melhores dos homens. A lei é, pois, a razão liberta do desejo. (ARISTÓTELES, 1998, p. 259) (destaques no original)

A mediação externa significa, pois:

Exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem,

porque, de outra forma, somente restará a danosa mediação interna, para a qual:
exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal,

pois o predomínio do desejo cego implica em conflitos diretos, num processo de mediação interna, que gera um crescendo de atos de violência nas relações interpessoais, até que estoure um crise de vinganças infinitas, a crise mimética.

Quando os participantes de uma relação social são colocados em conflitos de interesses, suas condutas podem ser transtornadas pela paixão.

Para conter o conflito, resultante da mediação interna inerente às partes, que estão emocionalmente envolvidas, deve-se criar uma situação contrabalanceada pela “razão liberta do desejo”, por meio da mediação externa.

A sacralidade da lei é o fundo mitológico-poético sobre a qual se erige a idéia de legalidade, e seus representantes, os agentes da ordem normativa, permite que o virtual conflito da rivalidade mimética encontre um limite objetivo, interposto entre os interesses subjetivos em conflito, mediante a presença um terceiro em posição simbólica superior.

O mito da legalidade, a idéia de que a lei é sagrada, se impõe para ordenar e mediar o fenômeno da universalidade do desejo, e da violência, existentes na presença de mediação interna, inerente aos conflitos de interesses do cotidiano social.

A universalização do mito da constituição, encarado como o símbolo da legalidade em último grau, que serve de princípio ordenador para toda a ordem legal normativa, gera a possibilidade de mediação externa nas relações sociais, estrutura simbólica que torna o exercício das magistraturas um dever sagrado para com a lei, que neste caso é erigida como a representação de Deus, da Razão e do Povo.

Assim sendo, a imaginação humana considera-se liberta da opressão, quando não mais se encontra sob a sujeição do ódio ou do medo, nem a este ou àquele poder pessoal.

O mito da legalidade é, assim, erigido como a base de sustentação da mediação externa, que opera institucionalmente, sobre os conflitos intersubjetivos, pois se estabelece a simbólica da superioridade e racionalidade da lei, e não da vontade pessoal de outrem, o agente da ordem não age em nome próprio, mas em nome da lei.


 

Maximiliano (1961, p. 20) assevera que:
 
O Direito precisa transformar-se em realidade eficiente, no interesse coletivo e também no individual”; sem esquecermos que “[...] toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não se verificarem com esmero, o sentido e alcance das suas prescrições”(MAXIMILIANO, p. 23)

A partir da prévia aceitação do mito da legalidade desenvolve-se os métodos hermenêuticos e interpretativos, pois sem a expressa aceitação deste pressuposto simbólico não é possível desenvolver o discurso poético fundador da ordem legal.


 

A poética do discurso sacraliza a idéia de constituição, que será o fundamento para estabelecer padrões (mediação externa) para os diversos discursos retóricos (mediação interna).

As retóricas, quando alicerçadas na ordem legal, são operadas pelas partes em conflito, passam a ser mediadas pela superioridade da "vontade da lei" ou "vontade dos legisladores", quando as retóricas não apelam para a superioridade lei, descambam para soluções violentas "fora da lei".

Quando o mito da legalidade está sedimentado socialmente, a legitimidade da ordem social daí decorrente é a condição suscetível de racionalizar o debate necessário ao discurso dialético interpessoal.

A aceitação de um referente externo e objetivo, criador de uma mediação externa a ser dirigida pela autoridade competente, eleita pela ordem legal como mediador, permite a criação do momento decisório típico da linguagem jurídica.

Este momento decisório, com base no princípio da legalidade, implica na dialética do devido processo legal, que se conclui na lógica da decisão jurídica.

Em suma, para que os quatro discursos humanos, interligados no fenômeno comunicacional (Olavo de Carvalho, 1996), sejam operados de forma eficiente pelo cidadão, pelo jurista e pelo político, estes devem sempre afirmar e reafirmar sua fé no mito da legalidade, ao aceitar a prevalência simbólica de seu livro sagrado: a constituição.



REFERÊNCIAS



ARISTÓTELES. Política . Edição bilíngüe. Lisboa: Vega, 1998.



CARVALHO, Olavo de, Aristóteles em nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos.Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.



MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito . 7ed., São Paulo: Freitas Bastos, 1961.



NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da constituição. São Paulo: Método, 2006.