Abaixo transcrevo uma passagem do artigo "Um equilíbrio perigoso", no qual René Girard tece considerações muito interessantes a respeito do papel do riso e do choro como elementos catárticos, tanto na tragédia como na comédia, e, como ambos são fenômenos fisiologicamente semelhantes, e, como, psicologicamente, cumprem o mesmo papel.
"O esquema fundamental de um presunçoso vítima da sua presunção aparece constantemente. Mas se esta proximidade é real, porque é que os efeitos da tragédia são diferentes dos da comédia?
Quando se assiste a uma tragédia, ou, mais geralmente, ao que se chama um "melodrama", podemos reagir derramando lágrimas - metafóricas ou mesmo reais. Com a comédia reage-se com o riso. O riso e as lágrimas opõem-se como dois contrários, duas emoções no mais alto grau distintas uma da outra.
Os dois são fenômenos físicos; neste plano a comparação é fácil. Revela bem depressa que a oposição entre o riso e as lágrimas é muito exagerada, ou antes, como para tantas oposições culturais, estabelecida a partir de uma base comum, o que se abandona geralmente quando prevalecem as considerações de gênero e de técnica literárias. Quando, fora do estreito contexto literário, se põe a pergunta: "O que é o riso?", é preciso descobrir esta base comum ainda escondida, sob pena de limitar o alcance da resposta.
Os fisiologistas dizem que a função normal das lágrimas é lubrificar os olhos. Mas deitam-se lágrimas mais abundantes que habitualmente, sobretudo em duas ocasiões. Em primeiro lugar, quando acontecimentos considerados como "tristes", quer sejam reais ou representados, provocam este estado emocional de que acabámos de falar; depois, quando entra para um olho um corpo estranho, um grão de pó, por exemplo, que irrita. Estas lágrimas, de ordem puramente física, têm como evidente função de afastar o intruso, expulsá-lo do órgão que ele insiste querer irritar. (p. 201)
Sabe-se que Aristóteles, na sua Poética, empregava a palavra catarse para representar o efeito produzido pela tragédia nos espectadores. A palavra significa ao mesmo tempo purificação religiosa e purga médica. Uma medicina catártica purga o corpo de seus maus humores.
[...]
Quando o corpo humano reage a uma representação trágica com lágrimas, parece comportar-se segundo Aristóteles. Apesar de o olho não ter nenhum grão de pó para eliminar, funciona contudo como se tivesse que expulsar qualquer coisa. Deve existir, em qualquer lado no complexo alma/corpo, uma necessidade de expulsar, uma vez que dispomos desse órgão expulsivo. A objeção que as lágrimas não são feitas para isso é inaceitável. Porque o olho funciona metaforicamente. Face a uma necessidade do corpo, o corpo, muito frequentemente, reage como um todo; mobiliza diversos órgãos que, apesar de completamente inaptos para responderem à função pedida, não deixam de tentar trazer a sua ajuda. E pode acontecer que esta reacção aparentemente excessiva seja reveladora da natureza da necessidade em questão.
William James
Não é minha intenção voltar a William James e à sua teoria fisiológica. Não considero o corpo como origem da emoção mas, mais convencionalmente, como um acompanhamento, quase no sentido musical do termo. Assim como um solista, aqui invisível e inaudível, em todo o caso para nós, se acompanha ao piano, da mesma maneira o sentimento trágico se acompanha com lágrimas. (p. 201-2)
[...]
Para voltarmos agora ao rito, notar-se-á que as lágrimas fazem parte integrante dele. Trata-se de um detalhe que conta mas que se minimiza ou abandona muitas vezes. Porque queremos à viva força opor o riso e as lágrimas como dois contrários, somos levados a pôr o acento nos únicos aspectos do riso que parecem diferenciá-lo do choro. Mas aqui as considerações teóricas importam muito menos do que aquilo que se poderia chamar a praxis moderna do riso. O homem moderno ri constantemente quando não há razão para isso. O riso é a única forma socialmente aceite de cartase. Por conseguinte, todas as espécies de riso que não têm nada a ver com o riso são confundidas com ele: o riso de cortesia, o riso sofisticado, o riso mudano. Todos estes falsos risos aumentam muitas vezes a tensão que devem aliviar e, naturalmente, não se acompanham com manifestações autênticas e involuntárias como as lágrimas.
Apesar dos sintomas físicos do riso se imitarem mais facilmente do que os das lágrimas, tornam-se também involuntários e reprimíveis quando se trata do verdadeiro riso. O corpo inteiro é agitado por convulsões; o ar é rapidamente expulso para fora das vias respiratórias graças aos movimentos reflexos análogos à tosse ou ao espirro. Todas estas manifestações têm a mesma função que as lágrimas visto que o corpo age como se tivesse qualquer coisa de concreto a expulsar. A única diferença é que um número maior de órgãos entra em jogo no riso.
O que se aproxima mais de um riso puramente natural e físico é sem dúvida a reacção do nosso corpo a uma sensação de cócegas. Analisada só em função da sua intensidade, esta reacção parece fora de proporção com a fraqueza do estímulo mas pode muito bem acontecer que corresponda à verdadeira natureza da ameaça não ainda identificada. Num contexto de hostilidade natural, poderia acontecer que uma ameaça de morte iminente, uma mordedura de cobra, por exemplo, não fosse precedido por nenhum outro aviso a não ser umas ligeiras cócegas. O carácter desconhecido e não precisamente localizado do estímulo, pelo menos no imediato, aumenta a intensidade da reacção.
O riso, noutros termos, sobretudo nas formas menos "culturais", parece significar, exactamente como as lágrimas, que devemos livrar-nos de alguma coisa; mas essa qualquer coisa é aqui mais importante e deve ser eliminada mais depressa do que no caso de simples choros. Se o corpo é a orquestra, o solista invisível e inaudível é acompanhado por um número muito maior de instrumentos. (p. 203-4)
Note-se também que a partir de uma certa intensidade as lágrimas se transformam em soluços e acabam por se parecer cada vez mais com o riso. Diz-se de alguém cujo riso é incontrolável, que ri portanto verdadeiramente e não finge, que chora a rir. (p. 204-5)
Há por conseguinte entre o riso e as lágrimas uma diferença não de natureza mas de grau, residindo precisamente o verdadeiro paradoxo na maneira como se marca esta diferença. Ao inverso do que dita o senso comum, o elemento de crise é mais agudo no riso que nas lágrimas. O riso parece mais próximo de um paroxismo tendendo a traduzir-se por verdadeiras convulsões, mais próximo de um esforço frenético de rejeição e de expulsão. Mas do que as lágrimas, é assimilável a uma reacção negativa de todo o ser a um perigo que lhe parece intransponível. (p. 205)
[...]
Ri-se verdadeiramente de qualquer coisa que poderia e, num sentido, deveria acontecer a qualquer pessoa que ri, incluindo nós. Creio que isto mostra claramente a natureza da ameaça, despercebida mas sempre presente, contra a qual o riso não pára de se defender, a do objecto ainda não identificado que precisa de se expulsar. A pessoa que ri está prestes a ser anexada pela estrutura de que a sua vítima já faz parte. Enquanto ri, acolhe e rejeita ao mesmo tempo a percepção desta estrutura na qual o objecto do seu riso já está preso; acolhe-a de boa vontade na medida em que é outro que não ele que é apanhado na armadilha, mas ao mesmo tempo tenta mantê-la à distância. A estrutura, que nunca é individual, tende a fechar-se sobre a pessoa que ri. Compreende-se agora porque é que o riso, mais do que as lágrimas, tem as propriedades de uma crise; a estrutura é muito mais visível no cómico do que no trágico; a autonomia do espectador é nela mais imediatamente e mais gravemente ameaçada. (p. 209)
[...]
O riso físico, como dissemos, tem como objectivo repelir uma agressão vinda do exterior e de proteger o corpo contra uma eventual intrusão. mas as quase convulsões do riso, se se prolongam, acabam por resultar no desmoronamento desde domínio de si que deveriam preservar. O verdadeiro riso torna-nos fracos e reduz-nos quase a uma semi-impotência. (p. 210)
René Girard, A voz desconhecida do real: uma teoria dos mitos arcaicos e modernos, Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
Eugen Rosenstock-Huessy e René Girard são desbravadores da origem mimética da linguagem.
Eugen Rosenstock-Huessy deduz a origem ritual da própria linguagem, e René Girard descobre o fundamento antropológico do rito.
Eugen Rosenstock-Huessy descreve a necessidade de um tamanho poder do
rito, que este criou o tempo, a ordem, nomeou e vestiu de tradição o
homem, e René Girard revela que este poder é fonte de nosso desconforto
com a civilização, erigida sobre séculos e séculos de assassinatos
rituais, de crimes que permitiram que com o sacrifício de poucos muitos
prosperassem, o bode expiatório é o herói, o demônio e o deus da
religião arcaica, que foi criada pelo ritual primário dos
sacrificadores.
Eugen Rosenstock-Huessy percebe que linguagem e
religião são um e mesmo fenômeno, origem criadora do que conhecemos e do
que somos, René Girard descreve com a crise mimética, que esta origem
está no pecado original do assassinato fundador, e na maturidade de sua
obra revela que a verdade evangélica nos libertou da ilusão do poder da
morte.
A revelação cristã ao ensinar que a vítima do sacrifício
era a única inocente no drama do ritual, a religião antiga dos
sacrificadores perdeu assim sua beleza estética sagrada, na qual os
mitos e lendas sangrentas foram substituídos pela consciência da própria
violência, é o início da condição de possibilidade para o sujeito não
ser escravizado pelo mecanismo mimético e ser capaz de perdoar, ao custo
de sacrificar a própria hibris, pois revelou-se com Cristo uma hubris que nega a solução sacrificadora.
Eugen
Rosenstock-Huessy refere que a linguagem foi criada pela repetição de
gritos, grunhidos, urros e choros, e René Girard descreve o processo
genético desta transformação, com o modelo da Teoria Mimética, na qual a
violência expulsa a violência, uma sagrada outra profana, mecanismo que
se consolida por infinitas repetições rituais, que possibilitam a paz
necessária para uma comunidade estabelecer um padrão de linguagem
verbal, que supere as limitações da linguagem animal.
A origem da
linguagem estudada por Eugen Rosenstock-Huessy se encontra com o
mimetismo comunicacional, que cria e doma a violência, e nesse processo,
a linguagem é criada pelo rito, que cria a religião, que com Cristo
recria a linguagem mimética, cuja origem profana e violenta torna-se
sagrada e poética não mais com a celebração da morte, mas com a
afirmação da vida e da inocência do cordeiro sacrificado.
Interessa-nos discutir a natureza social (material) do Poder Político e seu desenvolvimento jurídico (formal) no caminho da institucionalização do Estado, razão pela qual trazemos à baila algumas questões candentes levantadas na República de Platão, que suscita questões recorrentes à legitimidade do exercício do Poder.
O Estado surge da manifestação do Poder que transforma uma coletividade em Povo, destacando-se este ser um fenômeno jurídico (MIRANDA, 2000, p. 165).
O Poder Político é o Poder Constituinte que molda o Estado segundo uma idéia, um projeto, um fim de organização, e, que o Estado não existe em si ou por si, efetivando-se em dois aspectos: autoridade e serviço ( Idem , p. 166).
Miranda socorre-se de Gustav Radbruch nos seguintes termos: “é ainda um direito suprapositivo e natural que obriga o Estado a manter-se sujeito às próprias leis. O preceito jurídico que isto determina é o mesmo que serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” ( Idem , p. 169).
Referido Autor destaca que para a sociologia o exercício do poder político pode ser objeto de análise como poder da comunidade estatal , e, como orientador da comunidade sobre a qual se exerce a orientação.
Todavia, em termos jurídicos, tal cisão seria inadmissível, sendo a titularidade do poder da própria comunidade, tendo uma explicação una e trina , una como fonte do poder, e, trina, pois é o Poder que auto-organiza a comunidade , é o substrato do Estado na forma de Pessoa Coletiva e manifesta-se em seus Órgãos e Agentes detentores de parcelas do poder político.
Esclarece que para os efeitos de sua obra é o mesmo falar em Poder Político e em Soberania ( Idem , 173).
Destas colocações deriva nossa grande questão acerca de qual a origem ideológica do fenômeno jurídico que possibilita ao poder unificar o povo; e, ao mesmo tempo, fornecer uma base de valores que obriga a autoridade a servir este mesmo povo; colocada em outros termos: qual a idéia que legitima o poder, e o transforma em objeto de consentimento popular, ao mesmo tempo em que limita o próprio exercício do poder?
Percebemos que as posições adotadas por Miranda ao invés de revelarem uma resposta clara à questão, simplesmente saltam por sobre o problema sem enfrentá-lo, ao definir corte metodológico, consistente na afirmação dogmática da existência de um direito suprapositivo e natural que teria o condão de obrigar o Estado à bem se comportar, mas, ao mesmo tempo, demonstra grande intuição que já principia a resposta que buscamos quando enfatiza ser este o mesmo preceito jurídico que “serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” (MIRANDA, 2000, p. 169).
Consideramos de suma importância contextualizar o nascimento da idéia normativa fundamental do Estado de Direito Democrático que passaremos a denominar de mito da legalidade.
Quais os elementos conformadores do mito em exame?
Qual sua base histórico-social?
Que filosofia o sustenta?
Qual a sua realidade sob uma perspectiva antropológica e qual sua estrutura discursiva que dá a base ritualista do mencionado mito e que o atualiza?
Iniciaremos com o Livro I da República de Platão, na qual Sócrates questiona um próspero ancião de nome Céfalo acerca de “qual foi a maior vantagem que te proporcionou tua fortuna?” (330 d) (PLATÃO, 1976, p. 46), recebendo a resposta de que “a riqueza é de grande vantagem, porém não para todos; apenas para as pessoas equilibradas. Ela é que enseja a possibilidade de deixar a vida sem receio de haver mentido, embora involuntariamente, e de não ter ficado devendo” (331 b) (PLATÃO, 1976, p. 47).
Após, Sócrates questiona Céfalo sobre a inconstância do conceito de justiça, por este consistir apenas em falar a verdade e restituir o recebemos de outrem, quando coloca a seguinte hipótese: “de alguém receber para guardar a arma de um amigo que se encontre são do juízo, e este, depois, com manifesta perturbação de espírito, exigir que lha restitua, todo o mundo concordará que não se deve devolvê-la” (331 c-d) ( Idem , p. 47-8).
No seguimento do diálogo Céfalo é substituído por Polemarco, e, então, surge a célebre citação da máxima de Simônides “dar a cada um o que lhe é devido” (331e) ( Idem , p. 48), descrito como “enigma poético” (332 b) (Idem , p. 49), que vai suscitando diversidade de respostas proferidas por Polemarco, tais quais: “Tudo indica que para ele é justo dar a cada um o que convém” (332 c) ( Idem , p. 49); “Justiça, então, é fazer bem aos amigos e mal aos inimigos?” (332 d); sendo esta última afirmação refutada da seguinte forma: “a justiça é uma espécie de arte de furtar. Naturalmente: para beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos” (334 a) ( Idem , p. 54).
Reforçando sua contestação ao maniqueísmo como fundamento da justiça, Sócrates demonstra o subjetivismo dos conceitos de amigo e inimigo ao questionar Polemarco: “E porventura não se enganam os homens nisso, justamente, parecendo-lhes boa muita gente que não o é, e vice-versa?” (334 c) ( Idem , p. 52), e, após diversas colocações acerca da natureza da ética concernente à pessoa imbuída de justiça, concluí Sócrates que “não é próprio do justo causar dano nem aos amigos nem a quem quer seja, porém do seu contrário, o homem injusto.” (335 d) ( Idem , p. 54).
Neste ponto do diálogo surge o sofista Trasímaco defendendo a tese de que “o justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte” (336 c) ( Idem, p. 56).
Todavia, ao investigar todas as implicações da definição sofística de justiça, Sócrates acaba por inaugurar na filosofia e na ciência política, em nosso entender, a tese de origem popular do poder político quando diz: “é mais do que claro que nenhuma arte ou governo cuida do interesse próprio, porém, conforme há muito demonstramos, providencia e determina o que é de utilidade para o súdito, considerando apenas o interesse dos mais fracos, nunca o dos mais fortes” (346 e) (Idem, p. 69-70).
Assim, podemos identificar a genealogia da afirmação dogmática de Jorge Miranda, no sentido de encarar o Poder Político, manifestado na Soberania, como auto-organizado pela existência de um direito suprapositivo e natural, que como vimos com Platão é um fenômeno de multidão, e, por isso mesmo, tem em seu substrato e fundamento antropológico explicado cientificamente pela teoria do desejo mimético de René Girard.
A teoria do desejo mimético descreve a origem da cultura na superação da violência inerente às relações humanas, mediante a edificação de ritos e mitos criadores de mediação externa, cada vez mais sofisticada, conforme a cultura desenvolve-se, emergindo na construção do mito da legalidade capaz de legitimar o exercício do Poder lho fornecendo uma ritualística jurídica.
A mediação externa mais sofisticada é o rito jurídico, caracterizado por um discurso peculiar, em que o mito da legalidade é personalizado na autoridade que se apresenta como sujeito e objeto da representação mitológica da legalidade, isto é, a autoridade ao prestar seus serviços submete e é submetida pelo discurso alicerçado na força da idéia normativa (Jouvenel, 1978, p. 34-6) de lei, e assim, temos uma base para a descrição da soberania como resultado da racionalização do Poder da multidão de cidadãos mimeticamente vinculados por mitos que estabelecem padrões de mediação externa, que fomentam idéias normativas de justiça consideradas aceitáveis pelo corpo social.
REFERÊNCIAS
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
GIRARD, René. A violência e o sagrado ; trad. Martha Conceição Gambini; revisão técnica de Assis Carvalho. - São Paulo : Editora Universidade Estadual Paulista; 1998.
GIRARD, René;Rocha, João Cezar de Castro; e, Antonello, Pierpaolo. Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.
JOUVENEL, Bertrand de. As origens do estado moderno: uma história das idéias políticas no século XIX. Tradução de Mamede de Souza Freitas. Col. Biblioteca de Cultura Histórica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. t.III. Coimbra: Coimbra, 2000.
PLATÃO, A República. Diálogos, v. VI-VII. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Coleção Amazônia, Série Farias Brito. Belém: UFPA, 1976.
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SUMÁRIO: Intróito – 1. Que é o direito? – 2. Um
breve histórico do direito ocidental – 3. Fato, valor, norma e o direito
natural – 4. Crítica à teoria pura do direito – 5. Sintetizando o que já
foi dito – 6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de solução
– 7. Direito processual e direito material – 8. Que são princípios? – 9.
Normas-princípio e normas-limite – 10. Conclusão – Bibliografia.
Resumo: O direito é um fenômeno social e é objeto de
estudo de uma ciência cultural, a ciência do direito, d’entre os muitos
métodos científicos possíveis vislumbramos a teoria pura do direito,
que consideramos adequada como mero instrumento de análise lógica do direito
positivo numa perspectiva auto-referente, entretanto, tal postura é
insuficiente, pois a auto-referência do texto legal não é uma garantia de que
os direitos humanos serão protegidos segundo os valores e ideais que informam a
idéia de justiça. Propomos a solução desta insuficiência ética mediante a
adoção novos conceitos a respeito de princípios jurídicos estruturados
hierarquicamente: princípios, princípios-norma e princípio-limite; tudo com
fundamento num conceito físico-bio-racional de direitos humanos, partindo de
uma acepção de senso comum a respeito do direito enquanto fenômeno social.
Palavras-chaves: princípios – teoria pura do direito
– direito natural – princípios-norma – princípios-limite – norma
fundamental pressuposta.
Intróito.
Falemos sobre o direito, e antes de tudo, aviso que sempre me
referirei a direito em letra minúscula, e, para realçar, quando me referir ao
direito em suas manifestações – de ciência, norma vigente e válida ou
filosofia, etc. – simplesmente, acrescentarei o adjetivo adequado,
reservando-me a grafar a letra maiúscula somente quando gramaticalmente
necessário.
O estudo do direito enquanto ciência apresenta uma
perplexidade que mais dia menos dia afeta o seu pesquisador, e, é justamente o
fato de que por mais que a atitude do jurista busque uma postura neutral,
entretanto, sempre interferem valores, tais valores recebem o nome de
princípios que se sobrepõem inclusive sobre o texto constitucional quando a
doutrina revela princípios implícitos, como é o caso da segurança jurídica.
O objeto de estudo do direito é o conjunto de normas que
vigem em determinado contexto territorial, histórico e social; por que não
considerar tais princípios como normas, ? E, mais, tais normas não se
reportariam diretamente a princípios primeiros, tais como a vida, a liberdade e
a propriedade?
Portanto, os cognominados princípios seriam
princípios-norma que se reportariam aos verdadeiros princípios informadores do
direito! Sob esta perspectiva devemos prosseguir na tentativa de
melhor fundamentar tal assertiva.
1. Que é o direito?
Direito em acepção comum nos remete à idéia de posse. Posse é pretensão fundada num título, formal ou informal,
real ou imaginário, ou seja, é o produto de uma manifestação de vontade,
livre ou vinculada, sobre algo ou alguém, com a finalidade de usar, gozar,
dispor ou consumir (PIPES, 2001: 32) o bem possuído, isto é, a idéia de
direito é uma idéia de posse e/ou propriedade.
Ora, só há posse de algo se esta pertencer a alguém, e
este só poderá vibrar sua pretensão se a mesma for o objeto de desejo de
outrem, daí a natureza heterônoma do direito, sua natureza social, enquanto
objeto de desejo mimético (GIRARD, 1990), que necessariamente deve ser
condicionado por limites axiológicos e objetivos.
Entretanto, o direito como objeto produzido culturalmente
jamais deve ser encarado como um instinto social, pois não existe direito na
sociedade das abelhas ou numa alcatéia, o direito, além de social é racional,
melhor dizendo: é eminentemente racional, é em verdade a
racionalização da vida social possibilitadora da convivência baseada no
consentimento e na boa-fé recíproca, esta é minha definição de ética a
fundamentar a posse legítima de qualquer direito.
2. Um breve histórico do direito ocidental.
De tanto ler sobre sociedades primitivas e/ou arcaicas
(GIRARD), sobre a Civilização Clássica (COULANGES, 2001), sobre as luzes
medievais (CHESTERTON, 1957) e as trevas modernas (PIPES, 1997), nada é mais
fácil de se perceber que quanto mais primaveril uma sociedade mais se pode
afirmar que todas as normas sociais (morais, religiosas, de meras condutas
sociais ou simplesmente éticas) são eminentemente jurídicas, e jurídicas por
mandamento divino, o próprio direito romano, tão celebrado como o fundamento
do direito ocidental nada mais era, quando em vigor, que uma série de
formalidades rituais originadas na religião arcaica romana, daí a extrema
importância dos ritos e da forma para os habitantes do Lácio.
O cristianismo com seus dogmas da divisão entre o Estado e a
Igreja e sua ética de amor e perdão, associados aos sábios ensinamentos
helenos que demonstram filosoficamente que o direito positivo está submetido à
justiça, e, que esta se fundamenta no direito natural, tais tendências
preencheram de razão e sensibilidade o duro e frio pragmatismo jurídico do
conquistador romano para a formação do direito ocidental, e, com isso,
sedimentar o apogeu do direito ocidental, que fundamenta juridicamente àquele
fenômeno econômico e social que convencionalmente chamamos de globalização.
Assim do caldo das três culturas fundadoras do mundo
ocidental consumou-se após mais de dois milênios de fluxos e refluxos a atual
visão do direito como conjunto de normas jurídicas distintas no universo das
normas sociais.
O direito é composto de normas sociais cuja nota distintiva
é a sanção eficaz em seu grau máximo, ou seja, é a norma imposta pela
força se preciso for, enquanto as demais normas sociais quando possuem
sanções o são em grau de menor eficácia, pois não se operacionalizam pela
imposição mediante o uso da força legítima, pois então seriam jurídicas.
3. Fato, valor, norma e o direito natural.
Logo, para que haja uma norma jurídica basta que a sociedade
atribua valor a determinado objeto e o proteja com mecanismos eficazes
passíveis de atingir, potencialmente, o grau máximo de violência legítima
contra o transgressor dos limites socialmente impostos. Miguel Reale (1988: 103) em sua assertiva filosófica
identifica três dimensões no direito: fato, valor e norma; elementos
estruturados dialeticamente, pois fato sem valor jurídico não é subsumível a
uma norma, norma é fruto de fatos valorados, e fato associado à norma onde se
ausenta a relevância social da conduta é norma em desuso.
O Direito é, portanto, o fenômeno social apreensível
quando pretendemos estudar uma sociedade desde suas estruturas de convivência,
é o conjunto das leis phisicas de uma sociedade, pois phisis é o
mesmo que natureza, ou seja, em outra terminologia podemos dizer que o
Direito é o conjunto das leis naturais que possibilitam a vida social.
As leis da phisica social não são as mesmas leis que
regem os fenômenos físico-biológicos, aquelas são leis que existem com e
sobre estas, as leis naturais que incidem sobre o homem sofrem limitações do
meio físico-biológico, mas, possuem face racional e natureza discursiva, cuja
existência é relacionada com o contexto cultural e cronológico de dada
sociedade (Em oposição às leis físico-biológicas, que são leis sem
história e sem contexto, pois a água sempre terá duas moléculas de
hidrogênio e uma de oxigênio e o ferro sempre pigmentará o sangue de rubro.).
Antes de prosseguir, devo ressaltar que a consciência de um
certo condicionamento histórico relativo aos direitos naturais humanos
é um fato da vida que não pode ser ignorado, mas, esta percepção não é uma
tomada de postura evolucionista em sua versão aplicada às ciências sociais,
ou seja, o historicismo, o que percebo é que o contexto histórico e social
são fundamentais para que o direito seja aplicado, em maior ou menor grau,
conforme as constantes racionais presentes na phisica social, v. g.,
o direito à vida é uma constante que em diversos momentos e contextos
históricos é altivamente ignorada e em outros, como em nossa atual ordem
constitucional é elevada à categoria de cláusula pétrea com a vedação de
pena de morte (art. 5º, inciso XLVII, alínea ‘a’, da CF), salvo
em circunstância bélicas que implicam na suspensão de tal proibição.
Diante deste quadro, pintado em rápidas pinceladas, em que o
direito é encarado como realidade histórica condicionada a leis naturais
físico-biológicas e racionais, pergunto: que leis naturais e racionais são
essas?
Vejamos, quando acima falei num sentido coloquial da palavra
direito, e remeti à idéia de posse, quis frisar uma idéia de senso comum, e,
ainda com base nesse mesmo sentido comum pergunto-me: qual o direito, ou
posse, que pressupõe todos os direitos e posses, sem a qual não se pode
cogitar da posse de qualquer outro direito? Qual o direito que encontra o seu
fundamento na realidade natural físico-bio-racional?
A vida é ao mesmo tempo a posse que pressupõe todas as
posses e o pressuposto ontológico a qualquer posse, é ao mesmo tempo
fundamento material e formal para os demais direitos.
De posse da vida postulamos a liberdade, para usufruir uma e
outra necessitamos de ao menos duas posses ou propriedades fundamentais: a
primeira é posse da própria vida, a segunda é a da liberdade de dispor com
livre arbítrio o próprio destino.
Aqui a vida é tomada naquele sentido impresso por Ortega y
Gasset (1962: 184), de que a vida implica e é implicada por um cabedal de
circunstâncias lógicas e concretas. Nesta perspectiva todos os direitos são humanos, pois todos
estão subordinados à vida, à liberdade e à propriedade, suprima um e farás
ruir os demais.
Diante destas verdadeiras leis naturais (vida, liberdade,
propriedade) é que a ordem jurídico-positiva inteirinha deve se ajoelhar e
reverenciar a idéia de justiça, a idéia de proporção, pois justiça é
proporção direta ou inversa, regressiva ou progressiva, o justo é proporção
qualitativa e quantitativa, dependendo de que bem jurídico valorado seja
material ou intelectual.
4. Crítica à teoria pura do direito.
Quando encaramos o direito como ciência precisamos fazer um
corte metodológico que é puramente formal e abstrato, e, se não tomarmos
todas as contramedidas que nos impeçam de considerar o conceito científico
mais importante que o objeto de estudo, a abstração pela realidade, poderemos
incorrer no equívoco de querer dobrar a realidade viva do direito pela idéia
etérea da ciência do direito.
O método juspositivista em si é meritório ao isolar o
sistema de direito positivo e analisá-lo em suas interações dinâmica e
estática, em possibilitar a análise da ordem vigente e eficaz produzida por
autoridade competente e processo adequado, metodologia que possui muito valor
analítico, mas, em princípio, nenhum valor ético, seria o equivalente a uma
cromatografia que simplesmente separa os elementos constituintes do objeto de
pesquisa.
O diabo tentador vive justamente nesta última parte,
quando o juspositivista se agarra à idéia de processo adequado para a
formação da norma, ou seja, que o direito só é inaugurado por um processo de
enunciação normativa apropriada, passa-se a tomar a parte pelo todo, e,
conseqüentemente, a noção do direito enquanto processo formal acaba
suplantando a sua realidade substancial, que é, em certa medida um processo
concreto existencial cuja forma de constituição é tão livre quanto as
possibilidades de interação social.
O maior vício intelectual produzido pela visão do direito
somente como processo de produção positiva de normas, não obstante as
vantagens analíticas evidentes, proporcionadas pela postura científica aí
inerente, é que a idéia de norma fundamental pressuposta é só uma outra
forma de descrever o imperativo categórico kantiano.;
Kant efetivou uma grande trapalhada conceitual que acabou por
criar uma falsa distinção entre fundamentos ideais e pragmáticos da conduta
humana (CARVALHO, 1998), findou por definir que devemos obedecer a um dever
moral "porque sim", e, assim, quando Kelsen (2000: 221) cria a sua
hipótese científica nos impinge esta mesma noção, devemos pressupor uma
norma fundamental "porque sim", mas, a boa pedagogia ensina que até
para crianças em idade pré-escolar não devemos responder "porque
sim", pois não é resposta adequada para matar a sede de conhecimento
natural ao ser humano quando infante, que dizer para nós que somos quase "doutores".
Portanto, sem negar nem uma vírgula da doutrina kelseniana
naquilo que há de mais fundamental como método hipotético-dedutivo fornecedor
de instrumental teórico válido para analisar o direito positivo como sistema
auto-referente, critico somente o vazio ético inerente à idéia de norma
pressuposta fundamental, nosso Kelsen (2000: 242) tanto criticou a idéia de
direito natural como se fosse um ato de fé, que não se apercebeu que toda a
sua doutrina nada mais é que... um ato de fé; a fé na norma fundamental
pressuposta, num imperativo categórico, num "porque... sim" vazio de
conteúdo e passível de ser utilizado para qualquer finalidade.
Por mais que seja referida a necessidade de que haja uma
escolha política sobre o valor a ser adotado na escolha da finalidade a ser
dada ao direito positivo, a doutrina kelseniana acaba por se recolher numa falsa
neutralidade ao ignorar sistematicamente valores e fatos subjacentes às normas,
para o juspositivismo exagerado a norma é algo vivo e o valor e o fato jazem no
limbo do incognoscível da metafísica.
5. Sintetizando o que já foi dito.
O direito é realidade que se origina na matéria da vida
social, é o processo que possibilita a própria convivência; em suas origens
englobava todas as normas sociais, atualmente, somente aquelas passíveis de uma
valoração tal que implique no extremo do uso da força para sua defesa; é
fruto de processo histórico condicionado a leis naturais físico-bio-racionais;
o princípio fundamental do direito natural é a vida, seguida da liberdade e da
propriedade, toda a ordem jurídica compõe-se de variações sobre estes temas
que são a síntese dos direitos fundamentais.
Diante desta realidade material da vida, da liberdade e da
propriedade, vislumbramos a substância do direito, enquanto que o direito
posto, vigente e eficaz diz respeito à forma de garantir a integridade de tais
matérias.
A crítica que se faz ao juspositivismo extremado, que se
deixa levar pela idéia de que o direito positivo é o único que importa, não
diz respeito ao método e ao objetivo do estudo do direito como ciência, mas,
diz respeito ao perigo que há em se tornar o processo de garantia dos direitos
fundamentais numa forma de supressão destes mesmos direitos fundamentais
mediante uma crescente abstração em que as normas mais disparatadas quanto ao
conteúdo são consideradas legítimas somente em virtude do atendimento das
formas prescritas no processo de produção normativa.
A tendência de abstração do direito é inerente à postura
de kelsen, herdada de Kant, de resolver problemas fundamentais da filosofia
jurídica com a tosca idéia de imperativos categóricos que só se fundamentam
numa afirmação hipotética destituída de valor ou justificativa maior que a
necessidade de conferir um ponto de partida científico ao estudo filosófico ou
jurídico, é como transferir para o direito o fiat lux divino presente
no Gênesis, mas, nem o direito é religião, nem Kelsen foi profeta, logo, a
tentativa de fundar a ciência do direito numa hipótese puramente neutra só
serve como ato de fé vazio de conteúdo, apesar de a teoria pura do direito
ter seu valor metodológico para o estudo analítico e sistemático pretendido
pela ciência do direito em vista do direito positivo como sistema
auto-referente, o seu tendão de Aquiles está justamente em sua
pretendida neutralidade científica.
O direito é uma ciência que estuda a técnica de
determinação deôntica que atua sobre fatos sociais de natureza ôntica e
penetrados de valores, portanto, as limitações inerentes à neutralidade
científica nas análises de fundo kelseniano, e, mesmo os mais formalistas dos
juspositivistas, sempre, têm que se socorrer dos valores e raciocínios da
axiologia jurídica... porque sim.
6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de
solução.
Deve a postura juspositivista ser dosada pela idéia de
direito natural. Somente o direito natural, especificamente partindo da
realidade material e inconteste do direito natural à vida.
O direito natural à vida preenche com sucesso o
conteúdo ético faltante à noção de norma fundamental pressuposta, pois
somente através da existência material da vida se vive o processo existencial
do relacionar-se juridicamente.
O direito em seu sentido mais amplo possível é um reflexo
da realidade, pois quando a norma jurídica, consuetudinária ou escrita, regula
e tutela vida e os seus bens em seus aspectos estático de ser e
dinâmico de dever-ser, situações e relações, então podemos
identificar o direito material e seu corolário que é o princípio-norma da
verdade material.
Quando o direito tutela as relações jurídicas inerentes ao
viver individual e suas interações sociais, definindo os mais diversos
procedimentos, as mais diversas garantias aos direitos materialmente
considerados, quando surgem instrumentos de proteção, prevenção ou
reparação então teremos o direito adjetivo, ou processual, que faz surgir o princípio-norma
do devido processo legal, surge o direito enquanto garantias e mecanismos
efetivos de operacionalização das suas funções preventiva e repressiva de
conflitos sociais.
O ideal está em que verdade material se imponha à verdade
formal, pois o direito é um dever-ser sobre o ser, produto e não produtor,
quando muito indutor.
7. Direito processual e direito material.
Finalmente, esclarecida minha filosofia jurídica, vamos à
doutrina científica, já com base na idéia de direito natural acima expendida,
só me resta fazer o bom e velho corte metodológico e encarar o direito
processual e o direito material pertencentes ao gênero das normas jurídicas,
e, dependendo da perspectiva, as normas processuais podem ser encaradas como
normas de conduta ou de estrutura (BOBBIO, 1989: 45).
São normas de conduta na medida em indicam os limites
objetivos e subjetivos que devem ser atendidos pelos sujeitos passivo e ativo de
dada relação jurídica; de estrutura quando informarem a conduta do agente
público incumbido de julgar o mérito de dado processo, judicial ou
administrativo.
Norma material é a norma de conduta que versa sobre condutas
relativos a determinado bem jurídico, material ou intelectual, objeto de atos e
fatos jurídicos, sem que seja necessária a instauração de outra relação
jurídica em que um terceiro intervenha para solucionar eventual conflito ou
sanar ocasional dúvida.
Uma vez que seja necessária a intervenção de um agente
público para a solução de pretensões oriundas de uma relação jurídica
material, então teremos normas de natureza processual; normas de conduta para
as partes integrantes dos pólos em oposição de interesses, mas que vigerão
como normas de estrutura para o julgador que produzirá uma novel norma
jurídica constituída numa decisão solucionadora da lide, mediante a edição
de uma norma individual e concreta que confirmará, infirmará ou afirmará o
direito material de um dos contendores ou de partes dos interesses recíprocos
em conflito.
Em suma, num linguajar inspirado em Cossio (apud
CARVALHO, 1999: 36), afirmo que o direito material é o conteúdo composto de
bens jurídicos, presentes na endonorma, que sofre a proteção do direito
processual que é a forma de garantir eficazmente aquele mediante a introdução
de uma norma criada processualmente, ou seja, a perinorma, suscetível de
execução forçada, isto é, de coatividade.
8. Que são princípios?
Partindo da premissa maior de que princípios uma vez
fixados, não podem mais "ser questionados por serem auto-evidentes
demais", delimitam "o campo da ciência e as possibilidades do seu
desenvolvimento futuro", e, "tudo aquilo que forma o princípio
fundante de uma ciência não faz parte dela" e que o "desenvolvimento
posterior de uma ciência não mudará esses princípios", e, ainda, que
"o princípio jamais pode ser impugnado" (CARVALHO, 2002: 21).
Passando pela premissa menor de que o direito à vida
é auto-evidente, que sua fruição (liberdade e propriedade) delimitam o campo
de suas possibilidades, que o direito à posse da própria vida está para além
de qualquer consideração juspositiva legítima tendo em vista que o princípio
vital em si não é legislável, e que a sua impugnação é máximo do
arbítrio negador do Direito;
Portanto, concluo que princípio mesmo só o
direito à vida, princípios derivados imediatamente são os direitos à
liberdade e à propriedade, e derivados mediatamente temos normas-princípio
e normas-limite; normas-princípio, indicam limites lógicos
ao aplicador do direito; e, normas-limite determinam as fronteiras
objetivas que devem ser respeitadas pelo jurista.
Diante desta conceituação até admito a terminologia de
Paulo César Conrado (2002: 49 e ss.) de princípios constitucionais e
infraconstitucionais, lato sensu (limites objetivos) e estricto sensu (sobreprincípios),
genéricos e específicos, mas, com um reparo, todos estes princípios ou são
normas de conduta ou normas de estrutura, isto é, ou são limites à conduta
dos sujeitos de uma relação jurídica ou são normas destinadas a regrar a
conduta de um agente competente para produzir normas jurídicas, abstratas e
genéricas ou individuais e concretas. princípios, mesmo, só a fazenda, a
liberdade, e, claro, sobretudo a vida.
9. Normas-princípio e normas-limite:
O que Conrado chama de sobreprincípio, eu prefiro
nominar de normas-princípio, que são normas extraídas expressa ou
implicitamente do sistema positivo, racionalmente reveladas da análise
estrutural do mesmo sistema.
Tais normas-princípio podem até ter qualidades solares ou
de uma lamparina para iluminar a compreensão dos setores normativos (CONRADO,
p. 51), salvo a carga poética ou mesmo de fótons, prefiro dar o parecer de que
são essencialmente normas de estrutura cuja destinação está em orientar a
aplicação do direito, e, aí sim, podem até iluminar as trevas da dúvida
diante de um caso concreto, mas nada mais serão que normas com função
de princípios, ou princípios com função de normas,
normas-princípios, portanto.
Para mim sobreprincípio, ou princípio primeiro, ou
simplesmente princípio é o direito fundamental, cuja origem é natural
e apreensível pelo puro e simples bom-senso, ou seja, o princípio que deve
informar todo os sistema jurídico é a vida, cujas derivações necessárias
são a liberdade e a propriedade.
Para a doutrina tradicional, representada por Conrado, são
os princípios em sentido estrito, ou sobreprincípios que teriam prevalência
hierárquica sobre os princípios delimitadores de limites objetivos cujo
caráter interpretativo possui um caráter axiológico. Ocorre que tais
princípios, ou como prefiro: normas-princípio; são, quando muito, princípios
secundários ou derivados dos princípios pressupostos da vida, liberdade e
propriedade.
Em matéria processual, estas normas-princípio são normas
de estrutura orientadoras da conduta do julgador e garantidoras dos direitos
materiais das partes envolvidas.
Veja-se a norma-princípio do devido processo legal (dues
process of law) que se trata de uma norma orientadora de todo e qualquer
processo que tanto pode inquinar de ineficácia uma sentença que interprete
inadequadamente os dispositivos que garantem a isonomia entre os postulantes do
processo, bem como pode servir para invalidar a própria lei que fira um dos
princípios específicos do processo, como lei que eventualmente suprima o
contraditório e a ampla defesa para desconsiderar administrativamente os atos
jurídicos perfeitos sobre os quais incida uma norma tributária, mesmo que tal
desconsideração se dê sob a égide de uma suposta repressão à evasão
fiscal.
Havendo, ainda, os princípios-limite que Conrado denomina de
princípios em sentido amplo que indicam um limite-objetivo de natureza
instrumental e técnica. ; Patenteia-se, portanto, uma hierarquia tripartite de
princípios jurídicos: princípios, normas-princípio e normas-limite que
sujeitam a interpretação e aplicação estrutural da norma jurídica de
conduta incidente nas relações jurídicas.
10. Conclusão.
A grande conclusão a ser tirada é que o fundamento ético
necessário à norma fundamental pressuposta de Kelsen é o direito
natural fundamental à vida, cuja base físico-bio-racional preenche todos
os requisitos para a definição de um princípio científico, definidor do
âmbito de interesse e dos limites do estudo.
E, tendo em vista que pretendemos somente iniciar um debate
no fecundo âmbito da teoria geral do direito, com especial enfoque no direito
tributário, só nos resta concluir postulando que todo o sobredito é uma
tentativa teórica de fundamentar a norma-limite da verdade real ou material que
se propõe atuar na determinação de limites à sanha arrecadatória do Estado,
pois o direito de tributar é mero direito de confiscar conforme o ordenamento
legal uma parcela razoável do patrimônio do particular, pessoa física ou
jurídica, para sustentar o aparato de serviços públicos destinados a amparar
as garantias e direitos individuais e a Ordem Pública que lhe é vinculada.
Em outros termos, o direito de tributar é uma espécie de
confisco consentido, cujos recursos são destinados ao financiamento do Estado,
cuja finalidade é disponibilizar garantias legais, materiais e processuais, ao
patrimônio jurídico do contribuinte, patrimônio este que principia na posse
de sua própria vida e na livre disposição da mesma.
A estrutura teórica acima descrita, também, tem o sentido
de explicitar o caráter declaratório de toda e qualquer atuação estatal, e,
mais especificamente, quando o Estado efetiva um lançamento tributário jamais
constituirá uma relação jurídica, somente a declarará, quando muito irá
constituir o fundamento jurídico de um título executivo extra-judicial, haja
vista que a obrigação tributária é fruto da incidência abstrata da norma,
enquanto o crédito é necessariamente um produto da incidência concreta da
norma, realizável mediante ato de declaração, a natureza constitutiva será
limitada somente ao crédito, e, sua constituição implicará na interrupção
do prazo decadencial, quando o lançamento é realizado tempestivamente, e, no
início do prazo prescricional, para a propositura da execução fiscal.
Ao nascermos o Estado somente declara que viemos ao mundo com
o atributo da vida, a certidão de nascimento é mera norma individual e
concreta que serve de pressuposto a outras normas individuais e concretas, como
a carteira de identidade, logo, tal qual no lançamento tributário, a vida, e
os fatos econômicos da vida, são mero objeto de declaração, numa de
constituição, o que o Estado constitui são somente normas, abstratas e gerais
ou individuais e concretas.
Quando o Estado se propõe a manipular os conceitos
jurídicos a ponto de ignorar o fundo ontológico do direito, mediante a
edição de leis que definem e punem supostos abusos de direito, criando
ficções jurídicas em que o contribuinte é punido por atuar regular e
licitamente conforme o ordenamento jurídico quando efetiva o seu planejamento
fiscal, então, preparemo-nos porque tal Estado se esqueceu das garantias e
direitos fundamentais do indivíduo, e, no lugar dos direitos humanos de fundo
real e concreto baseado na própria vida, pretende instaurar o totalitarismo
da supremacia do interesse público fundado na abstração jurídica e
formal de uma norma fundamental pressuposta vazia de conteúdo ético.
A norma fundamental pressuposta, mera hipótese
científica, quando tomada não como meio, mais como fim, acaba por ser
passível de servir à velha promessa messiânica de instauração do paraíso
terrestre, projeto que sempre ao ser executado se converte na própria visão do
inferno sobre a Terra.
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico;
introdução Tércio Sampaio Ferraz Júnior; tradução Cláudio de Cicco e
Maria Celeste C. J. Santos; revisão técnica João Ferreira – Polis: São
Paulo; Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1989.
CARVALHO, Olavo de. História essencial da filosofia –
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____________________. Kant e o primado do problema
crítico. Disponível em: <http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/Kant.htm>.
Acesso em: 31/07/1998.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário:
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CHESTERTON, G. K.. São Tomás de Aquino; trad. e
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CONRADO, Paulo Cezar. Introdução à teoria geral do
processo civil. Max Limonad: São Paulo, 2000.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Editora Martim
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GIRARD, René. A violencia e o sagrado; trad. Martha
Conceição Gambini ; revisão técnica de Assis Carvalho. Editora Universidade
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; 6. ed.. Martins
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ORTEGA Y GASSET, José. Que é filosofia?. 1. ed., Ed.
Livro Ibero-Americano, Ltda: Rio de Janeiro, 1961.
Pipes, Richard. História concisa da Revolução Russa;
tradução de T. Reis. Record: Rio de Janeiro, 1997.
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Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)
COELHO, Werner Nabiça. Princípios jurídicos e direito natural.. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 88, 29 set. 2003.
Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4361>. Acesso em: 4 jun. 2016.
Girard
define o “mecanismo mimético” de forma ampla no sentido
de incluir o “desejo mimético, a rivalidade mimética, a crise
mimética e a sua resolução pelo bode expiatório” (s/d ,
p. 84), pois a “expressão 'desejo mimético' refere-se
apenas ao desejo que é sugerido por um modelo” ( Loc.
cit.).
O desejo
mimético é classificado como um ente “real”, distinto de
simples apetites, pois estes envolvem necessidades cujo fundamento é
biológico (comida e sexo, v.g.), que não são
necessariamente ligados aos desejos miméticos.
Todavia,
todo apetite é passível de ser contaminado pelo desejo mimético a
partir do momento que exista um modelo, pois “a presença do
modelo é o elemento decisivo na definição do desejo mimético”
( Loc. cit. ).
Se o
desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais
diferença entre instinto, apetite e desejo, por sua vez, em
contraste com a fixidez dos apetites ou instintos, verificamos a
mobilidade do desejo, e esta mobilidade decorre da imitação, pois,
conforme Girard:
Aí
reside a grande diferença: todos temos sempre um modelo que
imitamos. Só o desejo mimético pode ser livre, ser de fato desejo,
pois tem de escolher um modelo. Não compreendemos isso, porque, para
tanto, nunca recorremos ao primeiro estágio do desenvolvimento
humano. Toda criança tem apetites, instintos e um ambiente cultural
no qual aprende imitando. Imitação e aprendizagem são
inseparáveis. A rivalidade mimética se evidencia assim que a
criança começa a interagir com outras. A criança tem uma relação
de mediação externa, isto é, de imitação com os adultos, e uma
relação de mediação interna, isto é, de imitação e rivalidade,
com seus pares ( Op. cit., p. 85).
O desejo
mimético gera duas possibilidades de mediação com o modelo a ser
imitado, ou o sujeito se encontra no mesmo mundo que o modelo, ou
pertence a outro mundo.
Na
hipótese de imitador e modelo não estarem no mesmo nível, numa
situação em que o modelo é considerado superior e/ou distante como
que numa relação hierárquica, gera-se a mediação externa.
Quando não
podemos possuir o objeto pertencente ao modelo ou por ele desejado,
com isso, um conflito direto entre o sujeito e o seu modelo está
fora de questão, e a mediação externa acaba sendo uma mediação
positiva, pois assume valor pedagógico, por impossibilidade de
conflito direto com o modelo.
Se no
achamos no mesmo mundo que o modelo, não há nenhum distinção
hierárquica por exemplo, então o objeto que ele deseja está ao
nosso alcance e a rivalidade irrompe.
Em
decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a
mediação interna tende a tornar-se mais simétrica, pois
ambas as partes passam a concorrer pelo mesmo objeto.
À
proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu
modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo.
Assim, o
imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo e imitador de
seu imitador.
Em tal
situação os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados e
idênticos em seu conflito crescente.
A crise
mimética é sempre uma crise de indiferenciação que irrompe quando
os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de rivais, e,
assim:
[...]
Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armazenando energia
conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as
direções, porque, uma vez em marcha, o mecanismo mimético só se
torna mais atraente para os observadores: se duas pessoas estão
disputando um mesmo objeto, então deve tratar-se de alguma coisa
pela qual vale a pena lutar, pensam os observadores, a quem tal
objeto fica parecendo mais valioso. O objeto valorizado tende a
provocar mais e mais cobiça, e, ao fazê-lo, a sua atratividade
mimética somente cresce. Enquanto isso acontece, o objeto também
tende a desaparecer, a ser dilacerado e destruído no conflito. Para
que a mimesis se torne puramente antagonística, o objeto precisa
desaparecer. Quando isso ocorre , temos [...] a emergência da crise
mimética, pois quando o objeto desaparece, não há mais mediação
entre os rivais: o conflito é iminente. À medida que mimesis se
converte em antagonismo, a tendência é que ela se torne
acumulativa, passando a envolver vários membros de uma dada
comunidade, até que o processo leve à violência contra o único
antagonista remanescente – o “bode expiatório”. [...] A
importância desse mecanismo reside no fato de direcionar a violência
coletiva contra um único membro da comunidade arbitrariamente
escolhido. Essa última vítima se converte no inimigo comum da
comunidade, que então se reconcilia em virtude da canalização da
violência contra a vítima. ( Op. cit., p. 87-8).
A crise
sacrificial, e seu desenlace, na criação do bode expiatório,
consolida-se em ritos, fenômeno que se encontra enraizado no início
de todas as culturas, em sua fase primitiva.
O rito
atualiza o sacrifício original do bode expiatório, é a violência
sacralizada, transformada em meio de mediação externa a canalizar a
violência coletiva, possibilitando a criação da estabilidade
social necessária para a evolução social. Girard disserta sobre o
rito que:
O rito
equivale a uma escola, repetindo indefinidamente o mecanismo do bode
expiatório com vítimas substitutas. Por corresponder à resolução
de uma crise, o rito intervém sempre nesses momentos críticos e
sempre estará presente quando suceder o mesmo tipo de situação.
[...] (p. 96)
Há
duas maneiras possíveis de ver o rito. A primeira delas, a visão
iluminista, segundo a qual a religião é superstição, esvazia o
rito de significado. A visão alternativa baseia-se no fato de que o
rito pode ser encontrado em toda parte [...] e, da constatação
dessa “onipresença”, conclui-se que deve gerar todas as
instituições culturais. Pesquisando-se cuidadosamente, verifica-se
que todos os grandes espaços públicos são espaços ritualísticos
e têm sua origem no rito [...] (p. 97)
Frisamos
que segundo o modelo de explicação derivado do mecanismo do bode
expiatório , enquanto evento fundador da cultura, precede qualquer
espécie de ordem cultural, inclusive, atuando no princípio sob
“formas de associação não lingüísticas, intermediárias entre
o animal e o humano – se não quisermos dizer próprias do 'homem
antes do surgimento da linguagem'” (GIRARD, s/d, p. 124).
Como vimos
acima, a teoria mimética reconhece o ritual como a forma primária
de resolução de conflitos desde a gênese do acontecer humano,
mediante o estabelecimento do discurso social criador de mediação
externa pacificadora, em contraste com os conflitos gerados pela
mediação interna.
Constatamos
que ao ser aplicada teoria mimética no âmbito do Direito, é
possível classificar o discurso jurídico como uma forma de mediação
externa, que se operacionaliza com base no sofisticado mito da
legalidade.
O mito da
legalidade de forma pragmática estabelece o império da razão pela
adoção de procedimentos criadores de condutas hierarquizantes, cuja
finalidade é suspender o conflito mimético mediante a intervenção
de uma situação comunicativa peculiar.
Ferraz
(1997) compreende por discurso uma “ação lingüística
dirigida a outrem, donde o seu caráter de discussão, em que alguém
fala, alguém ouve e algo é dito” (p. 57).
Uma
situação comunicativa é composta de dois aspectos, externo
e interno, este a estrutura do discurso, aquele, o mundo
circundante.
A
estrutura do discurso cumpre a função de reduzir a complexidade do
meio, mas, o discurso jurídico diferencia-se, mediante a existência
de uma “peculiar situação comunicativa” (p. 58).
Para
Ferraz “a situação comunicativa jurídica se limita
internamente também na forma de regras de atribuição e de
diferenciação de papéis” (p. 59-60), tal diferenciação
motiva a existência de uma estrutura hierárquica no próprio
discurso proferido pelas partes presentes na situação comunicativa,
na qual há o reconhecimento da faculdade de exigir a
informação dentro da situação comunicativa jurídica, o diálogo
se estabelece como regra, pois a legalidade é superior às partes em
conflito, eis a mediação externa.
Com a
exigibilidade formalmente estabelecida como faculdade das
partes as “ações lingüísticas deixam de ser mera expressão
subjetiva dos comunicadores, ganhando, igualmente, as suas reações
uma certa 'coordenação objetiva'” (FERRAZ, p. 60); e, “amplia
a situação comunicativa social, acrescendo-a de mais um
comunicador: o árbitro, o juiz, o legislador, mais genericamente a
norma. A situação comunicativa torna-se assim triádica”
(Idem).
O
princípio da legalidade implica na criação de uma coordenação
objetiva, entre duas expressões subjetivas, com a
finalidade de fazer valer a mediação externa garantida pelo
comunicador, que se encontra como modelo de conduta e que
representa a própria norma dentro da situação
comunicativa triádica assim estabelecida.
A
exigibilidade gera um momento de liberdade dentro da situação
comunicativa lingüística, em que a mentira pode se fazer presente,
durante o debate, como expressão da subjetividade das partes,
implicando numa instabilidade inerente, que deverá ser corrigida
pelo discurso jurídico organizado pela coordenação objetiva
de um agente representante da norma, que serve de modelo
criador de mediação externa capaz de conferir a objetividade
necessária para o estabelecimento da verdade possível, com
fundamento em elementos objetivos ou objetivantes.
Revela-se
a estrutura de uma relação dialógica jurídica “basicamente
como uma discussão-contra” que envolve uma questão típica, o
“conflito” e uma função, também, típica, que é
“possibilitar uma decisão” (p. 62):
O
terceiro comunicador é quem garante a seriedadedo
conflito, fazendo do discurso um discurso racional, aquele em que as
questões (no caso, conflitivas) não são fortuitas, mas se acham
determinadas pelo dever de prova: elas ocorrem apenas em relação a
uma conexão compreensiva já existente, mas que dada a participação
peculiar do ouvinte, não mediatiza uma certeza, ao contrário, abre
um leque de possibilidades [...].
Um
conflito levado a sério, nesses termos, significa, pois, que nem
tudo pode ser conflito [...].
E, além
disso, significa sua ocorrência temporal, na medida em que, pela
participação do terceiro comunicador, ele é ao mesmo tempo
provisoriamente suspenso e mantido, o que dá tempopara que seja discutido: entre orador e
ouvinte há, assim, uma distância temporal que lhes permite separar
a emissão da ação lingüística da sua recepção, o que envolve o
estabelecimento de regras temporais em termos de prazos.
(p. 63) (grifos no original)
O Direito
ao ser encarado com base no modelo da teoria mimética cumpre seu
papel ritualizando o conflito, mediante a inserção de um terceiro
comunicador, que pode ser encarado como a própria norma jurídica,
que por sua vez suspenderá a rivalidade entre os contendores,
criando elementos formais (rituais) possibilitadores de uma mediação
externa, com o estabelecimento de prazos e a exigência de
argumentações fundamentadas em provas.
Para que a
exasperação do conflito seja substituída pelo debate ponderado,
superando-se o conflito, pelo estabelecimento de um campo neutro,
cria-se a mediação externa mediante a aceitação da superioridade
do representante da lei, da superioridade da norma.
Neste
sentido: “As normas jurídicas assim terminam conflitos no
sentido de elas os institucionalizam” (FERRAZ, p. 65),
significa dizermos que o mito da legalidade absorve para si o momento
da violência em potencial, e o converte em ritual
institucionalizado.
É a
mediação externa, possibilitada pela superioridade hierárquica e
ritualizada, que convida as partes à reflexão acerca do conflito,
com a devida assistência material do representante sacerdotal da
norma, que se personifica na figura do juiz, do mediador, do
árbitro.
A natureza
reflexiva ao discurso jurídico “na medida em que a
constituição da alternativa em relação a uma norma pode ser de
novo questionada” (FERRAZ, p. 67), em que a norma jurídica
mesma surge como “uma ação lingüística racional, no sentido
de discurso fundamentante” (p. 68), configurando-se o direito
num discurso normativo cuja finalidade é criar a mediação
externa capaz de afastar a violência inerente à ação da mediação
interna criadora da violência mimética.
O ritual
formalizado e estruturado na auto-referência do próprio discurso
jurídico, fundado na metalinguagem que atualiza o mito da
legalidade, mediante crescente processo de racionalização, teórica
e pragmática do discurso, com a finalidade de operar a mediação
externa, necessária para controlar, suprimir ou redirecionar a
violência social mediante a inserção da objetividade da veracidade
probatória em meio ao conflito intersubjetivo, é uma das conquistas
mais profundas e importantes da linguagem para possibilitar a
comunicação humana, linguagem esta, criadora de uma situação
comunicativa triádica que denominamos de Direito.
REFERÊNCIAS
FERRAZ JR., Tercio Sampaio.
Direito, retórica e comunicação: subsídios
para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva,
1997.
GIRARD, René; ROCHA, João
Cezar de Castro; e, ANTONELLO, Pierpaolo. Um longo argumento do
princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e
Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.
Há
quem afirme que a constituição é “a nova morada de Deus”
(CHAUÍ, apud NADAL, p. 129).
Ao
considerarmos a constituição como mito, afirmamos que o próprio
princípio da legalidade é um mito, pois simboliza a legalidade em
alto grau normativo.
A
idéia de constituição torna-se, portanto, um princípio basilar do
pensamento jurídico, em seu nível poético, no sentido de fonte criativa de imagens
inspiradoras da ação (princípios), ao ser compreendido como norma fundamental, para, em última análise, servir de base de sustentação ao discurso
sagrado da legitimidade de uma espécie de religião civil à moda do
contrato social iluminista.
A
constituição, como símbolo que representa o mito da legalidade,
numa perspectiva antropológica girardiana, possui estreita relação
com a necessidade humana de prevenção da erupção da violência,
e, portanto, é uma condição de possibilidade para a própria
existência da vida em sociedade.
A
doutrina do Direito Constitucional nos ensina que o Poder Constituinte éfruto de uma Revolução Política, cuja energia seria
oriunda do Povo, que tanto pode assumir um caráter de crise
violenta e imprevisível, como pode ser pacífica, e criada por meio de uma Assembleia Constituinte, incumbida de fundar uma nova ordem constitucional.
A linguagem simbólica da ciência política trata o ser humano, vivo,
espiritual e carnal, com base em abstrações: "Revolução",
"Poder", "Povo" e "Assembleia", que
convidam nossa imaginação a vislumbrar panoramas épicos, em que os heróis criam uma sociedade política impessoal e
purificada dos males do passado, como se toda mudança política fosse resultado de uma evolução progressiva, paraformas mais perfeitas de Estado.
Todavia,
por mais mitológica que seja a construção da ideia de lei, tal
imagem não é fruto de um processo irracional, pois há uma
necessidade humana de estabilidade e segurança, que deve ser
atendida, e esta necessidade é suprida pela criação de processos
sociais fornecedores de mediação externa nas relações humanas.
A mediação externa é operada por um terceiro situado simbolicamente acima das partes, superioridade que impõe uma
ordem normativa incontestável, esta é a estrutura básica do mito, quando os heróis em conflito são punidos ou agraciados pelos deuses,
ordem versus caos, uma vez que a violência é oriunda das mediações
internas, em que os contendores estão no mesmo nível de desejo, e são
potenciais competidores num processo autodestrutivo de vingança interminável.
Aristóteles renega a irracionalidade da idéia
de lei, e, demonstra que o predomínio da
emoção será afastado com a aceitação do princípio (mito) da
legalidade, nestes termos:
Na
verdade, tudo o que a lei parece ser incapaz de resolver, também não
pode ser conhecido por um só indivíduo. A lei que formou
adequadamente os magistrados, encarrega-os de dividir e resolver “do
modo mais eqüitativo possível” as restantes questões. Ademais,
concede-lhes o direito de corrigir o que, em resultado da
experiência, lhes parece ser melhorável em relação às leis
escritas. Assim, exigir que a lei tenha autoridade não é mais que
exigir que Deus e a razão predominem; pelo contrário, exigir o
predomínio dos homens é adicionar um elemento animal; o desejo cego
é semelhante a um animal e o predomínio da paixão transtorna os
que ocupam as magistraturas, mesmo se forem os melhores dos homens. A
lei é, pois, a razão liberta do desejo.(ARISTÓTELES, 1998, p.
259) (destaques no original)
A mediação
externa significa, pois:
“Exigir
que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão
predominem”,
porque, de outra
forma, somente restará a danosa mediação interna, para a qual:
“exigir
o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal”,
pois o predomínio
do desejo cego implica em conflitos diretos, num processo de mediação interna, que gera um crescendode atos de violência nas relações interpessoais, até que estoure um crise de vinganças infinitas, a crise mimética.
Quando
os participantes de uma relação social são colocados em conflitos
de interesses, suas condutas podem ser transtornadas pela paixão.
Para conter o conflito, resultante da mediação interna inerente às partes, que estão emocionalmente envolvidas, deve-se
criar uma situação contrabalanceada pela “razão liberta do
desejo”, por meio da mediação externa.
A sacralidade da lei é o fundo mitológico-poético sobre a qual se erige a idéia de
legalidade, e seus representantes, os agentes da ordem normativa,permite que ovirtual
conflito da rivalidade mimética encontre um limite objetivo, interposto entre os interesses subjetivos em conflito, mediante a presença um terceiro em posição simbólica superior.
O
mito da legalidade, a idéia de que a lei é sagrada, se impõe para ordenar e mediar o fenômeno da universalidade do desejo, e da violência, existentes
na presença de mediação interna, inerente aos conflitos de
interesses do cotidiano social.
A
universalização do mito da constituição, encarado como o símbolo
da legalidade em último grau, que serve de princípio ordenador para toda a
ordem legal normativa, gera a possibilidade de mediação externa nas relações sociais, estrutura simbólica que torna o
exercício das magistraturas um dever sagrado para com a lei, que
neste caso é erigida como a representação de Deus, da Razão e do
Povo.
Assim sendo, a
imaginação humana considera-se liberta da opressão, quando não
mais se encontra sob a sujeição do ódio ou do medo, nem a este ou àquele poder pessoal.
O mito da legalidade é, assim,
erigidocomo a base de sustentação da mediação externa, que opera institucionalmente, sobreos conflitos intersubjetivos, pois se estabelece a simbólica da
superioridade e racionalidade da lei, e não da vontade pessoal de outrem, o agente da ordem não age em nome próprio, mas em nome da lei.
Maximiliano
(1961, p. 20) assevera que:
“O
Direito precisa transformar-se em realidade eficiente, no interesse
coletivo e também no individual”; sem esquecermos que “[...]
toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na
forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não se
verificarem com esmero, o sentido e alcance das suas prescrições”(MAXIMILIANO, p. 23)
A partir da prévia aceitação do mito
da legalidade desenvolve-se os métodos hermenêuticos e
interpretativos, pois sem a expressa aceitação deste pressuposto simbólico não
é possível desenvolver o discurso poético fundador da ordem legal.
A poética do discursosacraliza a idéia de
constituição, que será o fundamento para estabelecer padrões (mediação externa) para os diversos discursos
retóricos (mediação interna).
As
retóricas, quando alicerçadas na ordem legal, são operadas pelas
partes em conflito, passam a ser mediadas pela
superioridade da "vontade da lei" ou "vontade
dos legisladores", quando as retóricas não apelam para a superioridade lei, descambam para soluções violentas "fora da lei".
Quando
o mito da legalidade está sedimentado socialmente, a legitimidade da
ordem social daí decorrente é a condição suscetível de
racionalizar o debate necessário ao discurso dialético
interpessoal.
A
aceitação de um referente externo e objetivo, criador de uma
mediação externa a ser dirigida pela autoridade competente, eleita
pela ordem legal como mediador, permite a criação do momento decisório
típico da linguagem jurídica.
Este momento decisório, com base no princípio da legalidade, implica na dialética do devido processo legal, que se conclui na lógica da decisão jurídica.
Em
suma, para que os quatro discursos humanos, interligados no fenômeno
comunicacional (Olavo de Carvalho, 1996), sejam operados de forma
eficiente pelo cidadão, pelo jurista e pelo político, estes devem
sempre afirmar e reafirmar sua fé no mito da legalidade, ao aceitar a prevalência simbólica de seu livro sagrado: a constituição.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES.
Política . Edição bilíngüe. Lisboa: Vega, 1998.
CARVALHO,
Olavo de, Aristóteles em nova perspectiva: introdução à teoria
dos quatro discursos.Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
MAXIMILIANO,
Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito . 7ed., São Paulo:
Freitas Bastos, 1961.
NADAL,
Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador
da constituição. São Paulo: Método, 2006.