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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

AFORISMOS E PENSAMENTOS VÁRIOS



Tenho uma certa desconfiança de que a filosofia grega foi mais um resultado da perda de sentido da religião pagã, em meio ao desenvolvimento econômico e cultural do mundo helênico, do que propriamente uma busca meramente intelectual, a filosofia quando bem operada destina-se a ser uma ferramenta de busca de sentido, mesmo que seja para negar o próprio sentido como fazia o Nietzsche, em suma, o amor à sabedoria decorre de uma busca do sentido inerente ao próprio saber.



***





Liberdade não é uma realidade ontologicamente autônoma, é um direito vinculado a muitos e variados condicionamentos prévios, por isso que sua defesa implica em eterna vigilância



***





A verdade é algo que possui uma essência própria, ou é somente o nome que se dá para uma opinião predominante? 

Um consenso coletivamente partilhado é a fonte da verdade, ou uma única pessoa pode ser o repositório de toda a verdade, não por ela possuir à verdade, mas por ser possuída por esta? 

Um conjunto de interesses parciais e organizados pode estabelecer algum nível de verdade, ou a verdade não está sujeita a nenhuma vontade? 

Podemos considerar que há uma postura mais ou menos conveniente em relação à verdade, ou esta não admite se objeto da vontade alheia? 

Afinal existe alguma verdade que seja validada somente por conveniências políticas, de grupos ou de pessoas, ou a verdade somente possui a conveniência de ser verdadeira para toda a eternidade?

A verdade é um princípio da realidade, ou ela é criada pelas circunstâncias de cada momento?

Só sei que a verdade é verdadeira, porque afirmar que a verdade em essência, ou em acidente, é uma mentira resulta numa petição de princípio, numa aporia lógica, isto é, se for válida a negação da existência da verdade, esta negação será verdadeira.

Como diria o poeta espanhol Antônio Machado (que conheci graças ao Olavo de Carvalho):


"La verdad es lo que es

y sigue siendo verdad,

aunque se piense al revés"



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O AMOR A DEUS É O MODELO DO AMOR FRATERNAL

Uma anotação que deixo a respeito do Diálogo Fedro, é que o amor definido por Sócrates, em seu mais alto nível, é o amor que se deve guardar pela contemplação da verdade, do bem, do justo e do belo no grau da pureza divina, e, que o eventual amor carnal entre os amantes do saber, é uma forma de apequenar e dessacralizar o amor ao saber, cuja origem é divinal, que deve ser cultivado e resguardado entre amigos, em suma, o saber é muito mais profundo quando associado à castidade, por ser um dever sagrado perante Deus.

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A TEORIA MIMÉTICA E O FEDRO DE PLATÃO.

Sócrates discorre a respeito do mito, e de sua natureza questionável do ponto de vista racional, o que dá a entender que naquele tempo histórico contemporâneo ao nosso filósofo, as verdades religiosas tradicionais estavam sendo duramente criticadas, vejamos:

"IV - Sócrates - Se, a exemplo dos sábios, eu não acreditasse, não seria de estranhar. Interpretação sutil da lenda fora dizer que o ímpeto de Bóreas a derrubou dos rochedos próximos, quando ela brincava com Farmaceia, e que as próprias circunstâncias de sua morte deram azo a dizerem que Bóreas a havia raptado." (229d) (p. 36)

Ora, este trecho revela-se perfeito, para análise com a utilização da chave explicativa de René Girard, pois descreve um mito em que há um bode expiatório (Oritia), e um deus (Bóreas) que personifica, neste caso, a multidão, que em sua fúria lança a vítima do rochedo, sem contaminar-se ritualmente com a violência bruta, pois utiliza-se de meios sagrados de imolação, e, por outro lado, a própria explicação dos sábios referidos por Sócrates, são um claro indício de um forte processo de dessacralização da religião ateniense, submetida à crítica racionalista que busca razões humanas para o surgimento das lendas.


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A MITOLOGIA DA ABSOLUTA AUTONOMIA DO EGO

Vivemos uma cultura fundada na mitologia da absoluta autonomia do ego, que resulta na autodestruição egocêntrica, e, na minha opinião descalça e nua, o remédio para esse mal está na busca da verdade religiosa e filosófica, preferencialmente ambas, mas cada uma destas buscas por si mesmas resultam nas únicas terapias eficazes, pois são meios de mirar corretamente no alvo do autoconhecimento que possibilita a autoconsciência, que por fim são os instrumentos para refinar a percepção objetiva do mundo e de sua beleza e bondade, com a reconquista da linguagem que possui a capacidade de comunicar verdades da vida, pois hoje a juventude é um estrangeiro em sua própria consciência.

 

domingo, 15 de janeiro de 2017

Cooperatoris Veritatis: algumas considerações sobre o diálogo platônico Fedro



Seguindo a trilha aberta de Carlos Alberto Nunes, cujos comentários destacam a natureza teatral da obra platônica, e, após a reunião do grupo de estudos relativo ao diálogo platônico Fedro, considero ser útil guardar a memória de alguns pontos objeto de discussão.

Carlos Alberto Nunes (1897-1990)
Ao ser encontrado por Sócrates, fora dos muros de Atenas, às proximidades do Rio Ilisso,  Fedro afirma estar a "passear nas estradas" por recomendação do amigo comum Acumeno por ser uma forma de repouso melhor que descansar "em galerias cobertas" (227a) (p. 33)

Fedro relata a Sócrates que Lísias discursara em torno do amor, e defendera "que é preferível alguém ceder às instâncias de quem não lhe dedica amor, a entregar-se a quem o ama de verdade" (227c) (p. 33-4), ao que Sócrates ironiza que então "o pobre é de preferir ao rico e o velho ao moço, ou falasse das misérias que me são peculiares e à maioria dos homens, teria o mesmo feito um discurso civil e verdadeiramente democrático" (idem).

Diante da afirmação de Fedro, de que não poderia declamar o discurso de Lísias, Sócrates se sai com mais uma tirada irônica, e descreve o método de estudo de Fedro, descrição esta que por si só tem seu valor pedagógico:

II - Sócrates - Fedro! Fedro! Se eu não conhecesse o Fedro é que já me teria esquecido de mim mesmo. Porém nada disso é verdade. Tenho absoluta certeza de que, por tratar-se de um discurso de Lísias, ele não se satisfez com uma audição apenas, mas insistiu junto do autor para que o lesse várias vezes, ao que o outro acedeu de muito bom grado. Mas, nem isso lhe bastou; tomando do livro, mergulhou na lição dos trechos mais interessantes. Nesse estudo passou sentado a manhã toda, até que, vencido da fadiga, saiu a espairecer cá fora, porém já com o discurso de cor, como tenho que de fato aconteceu [...] Só veio passear fora dos muros para declamá-lo, e, ao topar com um tipo doente por discursos, exultou por haver encontrado um parceiro para seus delírios coribânticos e o convidou a acompanhá-lo. Depois, instado por esse amante de discursos par que o lesse, fez-se rogado, como se não tivesse o menor desejo disso" (288b a 288c) (p. 34)

Fedro é apanhado em outra malandragem estudantil, pois quando já iria começar um exercício de declamação do texto memorizado, com base em seus estudos acima descritos, Sócrates percebe que seu companheiro de diálogo escondia o texto escrito do discurso de Lísias, e, certamente, com um meio sorriso no rosto, e um tom de divertida admoestação se dirige ao jovem efebo:

"Sócrates - Pois não, amor; mas, antes disso mostra-me o que trazes na mão esquerda, debaixo do manto. Suspeito que seja o tal discurso. Se for o caso, podes ter a certeza de que, embora eu te dedique muita estima, uma vez que Lísias se acha presente, não deixarei que te exercites à minha custa. Vamos, descobre-o logo." (228e) (p. 35)

Esta colocação de Sócrates, de que "Lísias se acha presente", é muito interessante, como uma antecipação da noção posterior apresentada de que há um risco em potencial, relacionado ao culto do texto, sem levar em conta que as idéias escritas, também, possuem uma vida para além dos livros, o que torna relacionarmos esta passagem com a discussão posterior, neste mesmo diálogo, em que se destaca a natureza "muito perigosa" da palavra escrita:

"LX – Sócrates – Logo, quem presume ter deixado num livro uma arte em caracteres escritos, ou quem a recebe, na suposição de que desses caracteres virá a sair algum conhecimento claro e duradouro, revela muita ingenuidade e o desconhecimento total do oráculo de Amão, dado que imagine ser o discurso escrito mais do que um meio para quem sabe, a fim de lembrar-se do assunto de que trata o documento.
Fedro – É muito certo.
Sócrates – É que a escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto, parecidíssima com a pintura, pois esta, em verdade, apresenta seus produtos como vivos; mas, se alguém lhe formula perguntas, cala-se cheia de dignidade. O mesmo passa com os escritos. És inclinado a pensar que conversas com seres inteligentes; mas se, com o teu desejo de aprender, os interpelares acerca do que eles mesmos dizem, só respondem de um único modo e sempre a mesma coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita, rolam daqui dali os discursos, sem o menor descrime, tanto por entre os conhecedores da matéria como os que nada têm a ver com o assunto de que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não. E no caso de serem agredidos ou menoscabados injustamente, nunca prescindirão da ajuda paterna, pois por si mesmos são tão incapazes de se defenderem como de socorrer alguém." (275c a 275e) (p. 93-4)
Retornemos ao contexto inicial, em que Fedro e Sócrates acabaram de se encontrar, e buscam um local de descanso enquanto passeiam, cenas cujo caráter bucólico é ressaltado pela descrição de cenários idílicos, muito favoráveis à discussão dos conceitos relacionados ao sumo bem.

Após Fedro ser apanhado em suas artimanhas estudantis, e ser forçado a concordar em ler o discurso de Lísias, nossos amigos do saber prosseguem seu caminho em direção à uma localidade encimada por um plátano, uma árvore frondosa, cujas forma característica da folha está desenhada na bandeira do Canadá.

Ao caminhar na direção de seu local primaveril, em que se travará a parte principal do diálogo, Fedro observa que fez bem em sair sem sandálias, que é como Sócrates sempre anda (229a) (p. 35), o que me remete à etimologia da palavra humildade, derivada do latim "humus", e a expressão significa "estar com os pés descalços sobre o chão".

E, a propósito da descrição do local, em que a conversa de desenvolve, destaco alguns elementos descritivos, para depois prosseguir tratando de alguns passagens outras, que me remeteram à teoria mimética de René Girard, mas, enquanto isso, surpreendamos os amigos tratando do local em que o diálogo realmente iniciar-se-á:

Plátanos

Fedro - Estás vendo aquele plátano alto?
Sócrates - Como não?
Fedro - Ali há boa sombra, brisa agradável e relva suficiente para nos sentarmos e até mesmo para deitar, se assim nos aprouver.
Sócrates - Então sigamos. (229b) (p. 35)
[...]
IV - Sócrates [...] E, por falar nisso, companheiro, não é esta a árvore para onde querias conduzir-nos?
Fedro - É essa mesmo.
V - Sócrates - Por Hera! Que belo sítio para descansar! Este Plátano, realmente, é tão copado quanto alto, e aquele pé de agnocasto além de sombra agradabilíssima que sua altura proporciona, embalsama toda a redondeza, por estar em plena florescência. E sob o plátano, também, que fonte encantadora! A água é bastante fria, o que os pés nos confirmam. Deve ser consagrada às Ninfas e a Aquelôo, a julgarmos por estas imagens e figurinhas. Observa também como aqui a brisa é delicada e aprazível; sua melodia clara e estival acompanha o coro das cigarras. Porém, o mais admirável de tudo é a relva, que se eleva gradualmente para formar uma camada espessa. Se nos deitarmos neste ponto, disporemos de travesseiro em tudo cômodo. Revelaste-te excelente guia, amigo Fedro. (230a a 230 c) (p. 36-7)
Agnocasto 

Percebo que um dos mais importantes aspectos relacionados ao exercício de uma boa leitura, por vezes, é o tempo decorrido entre os anos que medeiam as visitas a um texto, pois da primeira vez que li este diálogo, e já fazem quase 20 anos, pouco me importei com aspectos lúdicos ou com o cenário, mas, após reler este trecho, pude perceber que o contexto bucólico descrito, pode ter sido uma rica fonte de referencias literárias aos irlandeses (1), quando salvaram a cultura ocidental, pois foi sob plátanos e outros locais análogos (2), conforme descrito por Platão nesta peça literário-filosófica, que os monastérios irlandeses do século V surgiram, como centros de preservação e divulgação da herança milenar greco-romana e judaico-cristã.

Agora, retomando o fio da meada, faço algumas indicações de elementos relacionados à teoria mimética (3) apanhados no texto, com a finalidade de registro para futuras elucubrações deste escriba, e, quem sabe, inspirar terceiros, a respeito da violência sagrada, presente no texto deste diálogo segundo a chave explicativa da teoria girardiana.

Rio Ilisso
Antes de chegar ao plátano, cujos arredores são poeticamente descritos no diálogo, Fedro comenta que estavam passando pelas margens do Ilisso, local em que Bóreas raptou Oritia, ao que Sócrates indica que o local certo ser um pouco mais adiante (229b) (p. 36-7), e neste ensejo Fedro questiona de forma cética a respeito do mencionado mito: "acreditas nessa história?" (229c) (p. 36).

Sócrates, então, discorre a respeito do mito, e de sua natureza questionável do ponto de vista racional, o que dá a entender que naquele tempo histórico contemporâneo ao nosso filósofo, as verdades religiosas tradicionais estavam sendo duramente criticadas, vejamos:

IV - Sócrates - Se, a exemplo dos sábios, eu não acreditasse, não seria de estranhar. Interpretação sutil da lenda fora dizer que o ímpeto de Bóreas a derrubou dos rochedos próximos, quando ela brincava com Farmaceia, e que as próprias circunstâncias de sua morte deram azo a dizerem que Bóreas a havia raptado. (229d) (p. 36)

Ora, este trecho revela-se perfeito, para análise com a utilização da chave explicativa de René Girard (4), pois descreve um mito em que há um bode expiatório (Oritia), e um deus (Bóreas) que personifica, neste caso, a multidão, que em sua fúria lança a vítima do rochedo, sem contaminar-se ritualmente com a violência bruta, pois utiliza-se de meios sagrados de imolação, e, por outro lado, a própria explicação dos sábios referidos por Sócrates, são um claro indício de um forte processo de dessacralização da religião ateniense, submetida à crítica racionalista que busca razões humanas para o surgimento das lendas.

Como o tempo urge, e o texto tem que ser concluído, indico que no trecho de 231a -234c está contido o discurso integral de Lísias, ao qual Sócrates qualifica de "demoníaco", e refere como ficou contagiado "do mesmo furor báquico" de Fedro enquanto este declamava a leitura de tal discurso (234d) (p. 41), o que me remete à lembrança das descrições sobre o magnetismo da arte no diálogo Íon (5), ou Ião como na tradução de Carlos Alberto Nunes.

Em seguida, há o discurso retórico que Sócrates é levado a fazer, pois Fedro impõe tal dever, inicialmente, por uma coação,  manifestada nestes termos: "Resolve-te, pois, a falar, antes que eu recorra à violência" (236d), e, finalmente, de forma eficaz, mediante a oração ritual em que faz o seguinte juramento:

Fedro - [...] Juro... Por qual divindade hei de jurar? Por qual? Aceitas este Plátano? Pois bem: se não declamares teu discurso diante deste plátano, juro que nunca mais te mostrarei nem indicarei discurso de nenhuma pessoa. (p. 236e) (p. 45)

E, mesmo sem ter tocado no assunto relativo à iniciação de natureza pitagórica cujos indícios surgem ao longo do texto, nem me deter nos aspectos concernentes às classificações sobre as virtudes e vícios do desejo amoroso, presentes no discurso retórico de 237b-241d, em que Sócrates discursa de rosto velado de vergonha (237a)(p. 44), e, muito menos, sem tocar nas profundas digressões sobre os conceitos platônicos que principiam pela descrição dos delírios sagrados da divinação, das musas e do amor, passa pela descrição mitológica do mundo das idéias, e prossegue pela metempsicose, que surgem a partir de 244a (p. 53 e seguintes), quando Sócrates declama:

Sócrates - De vergonha, pois, dessa pessoa e de medo de Eros, pretendo limpar-me com a boa água de um novo discurso de toda a salsugem dos conceitos há pouco enunciados. Aconselho também Lísias a escrever quanto antes que, em iguais circunstâncias, um jovem deve preferir quem o ama, não quem não lhe dedique amor. (243d) (p. 53)

Uma anotação final que deixo, é que o amor definido por Sócrates, no prosseguimento do diálogo, em seu mais alto nível, é o amor que se deve guardar pela contemplação da verdade, do bem, do justo e do belo no grau da pureza divina, e, que o eventual amor carnal entre os amantes do saber, é uma forma de apequenar e dessacralizar o amor ao saber, cuja origem é divinal, que deve ser cultivado e resguardado entre amigos, em suma, o saber é muito mais profundo quando associado à castidade, por ser um dever sagrado perante Deus.


Fonte:


Platão, Diálogos de Platão: Fedro, Cartas e O primeiro Alcebíades, Coleção Amazônia, Série Farias Brito, vol. V, tradução de Carlos Alberto Nunes, UFPA, Belém, 1975





domingo, 19 de junho de 2016

SOBERANIA E MITO DA LEGALIDADE

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Interessa-nos discutir a natureza social (material) do Poder Político e seu desenvolvimento jurídico (formal) no caminho da institucionalização do Estado, razão pela qual trazemos à baila algumas questões candentes levantadas na República de Platão, que suscita questões recorrentes à legitimidade do exercício do Poder.

O Estado surge da manifestação do Poder que transforma uma coletividade em Povo, destacando-se este ser um fenômeno jurídico (MIRANDA, 2000, p. 165).

O Poder Político é o Poder Constituinte que molda o Estado segundo uma idéia, um projeto, um fim de organização, e, que o Estado não existe em si ou por si, efetivando-se em dois aspectos: autoridade e serviço ( Idem , p. 166).

Miranda socorre-se de Gustav Radbruch nos seguintes termos: “é ainda um direito suprapositivo e natural que obriga o Estado a manter-se sujeito às próprias leis. O preceito jurídico que isto determina é o mesmo que serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” ( Idem , p. 169).

Referido Autor destaca que para a sociologia o exercício do poder político pode ser objeto de análise como poder da comunidade estatal , e, como orientador da comunidade sobre a qual se exerce a orientação.

Todavia, em termos jurídicos, tal cisão seria inadmissível, sendo a titularidade do poder da própria comunidade, tendo uma explicação una e trina , una como fonte do poder, e, trina, pois é o Poder que auto-organiza a comunidade , é o substrato do Estado na forma de Pessoa Coletiva e manifesta-se em seus Órgãos e Agentes detentores de parcelas do poder político.

Esclarece que para os efeitos de sua obra é o mesmo falar em Poder Político e em Soberania ( Idem , 173).

Destas colocações deriva nossa grande questão acerca de qual a origem ideológica do fenômeno jurídico que possibilita ao poder unificar o povo; e, ao mesmo tempo, fornecer uma base de valores que obriga a autoridade a servir este mesmo povo; colocada em outros termos: qual a idéia que legitima o poder, e o transforma em objeto de consentimento popular, ao mesmo tempo em que limita o próprio exercício do poder?

Percebemos que as posições adotadas por Miranda ao invés de revelarem uma resposta clara à questão, simplesmente saltam por sobre o problema sem enfrentá-lo, ao definir corte metodológico, consistente na afirmação dogmática da existência de um direito suprapositivo e natural que teria o condão de obrigar o Estado à bem se comportar, mas, ao mesmo tempo, demonstra grande intuição que já principia a resposta que buscamos quando enfatiza ser este o mesmo preceito jurídico que “serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” (MIRANDA, 2000, p. 169).

Consideramos de suma importância contextualizar o nascimento da idéia normativa fundamental do Estado de Direito Democrático que passaremos a denominar de mito da legalidade.

Quais os elementos conformadores do mito em exame?

Qual sua base histórico-social?

Que filosofia o sustenta?

Qual a sua realidade sob uma perspectiva antropológica e qual sua estrutura discursiva que dá a base ritualista do mencionado mito e que o atualiza?

Iniciaremos com o Livro I da República de Platão, na qual Sócrates questiona um próspero ancião de nome Céfalo acerca de “qual foi a maior vantagem que te proporcionou tua fortuna?” (330 d) (PLATÃO, 1976, p. 46), recebendo a resposta de que “a riqueza é de grande vantagem, porém não para todos; apenas para as pessoas equilibradas. Ela é que enseja a possibilidade de deixar a vida sem receio de haver mentido, embora involuntariamente, e de não ter ficado devendo” (331 b) (PLATÃO, 1976, p. 47).

Após, Sócrates questiona Céfalo sobre a inconstância do conceito de justiça, por este consistir apenas em falar a verdade e restituir o recebemos de outrem, quando coloca a seguinte hipótese: “de alguém receber para guardar a arma de um amigo que se encontre são do juízo, e este, depois, com manifesta perturbação de espírito, exigir que lha restitua, todo o mundo concordará que não se deve devolvê-la” (331 c-d) ( Idem , p. 47-8).

No seguimento do diálogo Céfalo é substituído por Polemarco, e, então, surge a célebre citação da máxima de Simônides “dar a cada um o que lhe é devido” (331e) ( Idem , p. 48), descrito como “enigma poético” (332 b) (Idem , p. 49), que vai suscitando diversidade de respostas proferidas por Polemarco, tais quais: “Tudo indica que para ele é justo dar a cada um o que convém” (332 c) ( Idem , p. 49); “Justiça, então, é fazer bem aos amigos e mal aos inimigos?” (332 d); sendo esta última afirmação refutada da seguinte forma: “a justiça é uma espécie de arte de furtar. Naturalmente: para beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos” (334 a) ( Idem , p. 54).

Reforçando sua contestação ao maniqueísmo como fundamento da justiça, Sócrates demonstra o subjetivismo dos conceitos de amigo e inimigo ao questionar Polemarco: “E porventura não se enganam os homens nisso, justamente, parecendo-lhes boa muita gente que não o é, e vice-versa?” (334 c) ( Idem , p. 52), e, após diversas colocações acerca da natureza da ética concernente à pessoa imbuída de justiça, concluí Sócrates que “não é próprio do justo causar dano nem aos amigos nem a quem quer seja, porém do seu contrário, o homem injusto.” (335 d) ( Idem , p. 54).

Neste ponto do diálogo surge o sofista Trasímaco defendendo a tese de que “o justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte” (336 c) ( Idem, p. 56).

Todavia, ao investigar todas as implicações da definição sofística de justiça, Sócrates acaba por inaugurar na filosofia e na ciência política, em nosso entender, a tese de origem popular do poder político quando diz: “é mais do que claro que nenhuma arte ou governo cuida do interesse próprio, porém, conforme há muito demonstramos, providencia e determina o que é de utilidade para o súdito, considerando apenas o interesse dos mais fracos, nunca o dos mais fortes” (346 e) (Idem, p. 69-70).

Assim, podemos identificar a genealogia da afirmação dogmática de Jorge Miranda, no sentido de encarar o Poder Político, manifestado na Soberania, como auto-organizado pela existência de um direito suprapositivo e natural, que como vimos com Platão é um fenômeno de multidão, e, por isso mesmo, tem em seu substrato e fundamento antropológico explicado cientificamente pela teoria do desejo mimético de René Girard.

A teoria do desejo mimético descreve a origem da cultura na superação da violência inerente às relações humanas, mediante a edificação de ritos e mitos criadores de mediação externa, cada vez mais sofisticada, conforme a cultura desenvolve-se, emergindo na construção do mito da legalidade capaz de legitimar o exercício do Poder lho fornecendo uma ritualística jurídica.

A mediação externa mais sofisticada é o rito jurídico, caracterizado por um discurso peculiar, em que o mito da legalidade é personalizado na autoridade que se apresenta como sujeito e objeto da representação mitológica da legalidade, isto é, a autoridade ao prestar seus serviços submete e é submetida pelo discurso alicerçado na força da idéia normativa (Jouvenel, 1978, p. 34-6) de lei, e assim, temos uma base para a descrição da soberania como resultado da racionalização do Poder da multidão de cidadãos mimeticamente vinculados por mitos que estabelecem padrões de mediação externa, que fomentam idéias normativas de justiça consideradas aceitáveis pelo corpo social.

REFERÊNCIAS

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

GIRARD, René. A violência e o sagrado ; trad. Martha Conceição Gambini; revisão técnica de Assis Carvalho. - São Paulo : Editora Universidade Estadual Paulista; 1998.

GIRARD, René;Rocha, João Cezar de Castro; e, Antonello, Pierpaolo. Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.

JOUVENEL, Bertrand de. As origens do estado moderno: uma história das idéias políticas no século XIX. Tradução de Mamede de Souza Freitas. Col. Biblioteca de Cultura Histórica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. t.III. Coimbra: Coimbra, 2000.

PLATÃO, A República. Diálogos, v. VI-VII. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Coleção Amazônia, Série Farias Brito. Belém: UFPA, 1976.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

O Diálogo Íon: a coisa mais bela é ser divino, e não um louvador técnico.





Resultado de imagem para PLATÃO. Íon. Inquérito, 1988
 Sócrates afirma a natureza sagrada da poesia descompromissada do utilitarismo da técnica, compara a arte do rapsodo à habilidade do retórico, louva a natureza divina da arte e demonstra o caráter técnico da ciência como ferramenta de dominação, questiona sobre a prevalência de uma ou de outra, ao fim afirma que é uma escolha ética valorizar o dom artístico.

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O diálogo platônico Íon investiga a arte da rapsódia, inquire sobre esta ser uma dádiva divina, única e inspirada, ou uma técnica discursiva com finalidades meramente sociais.

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Íon é um rapsodo especializado em Homero, mas incapaz de interpretar outros poetas.

Sócrates afirma invejar a técnica de Íon por seu repertório, memória e conhecimento em relação à poesia de Homero, e observa que sua habilidade consiste em

saber de cor seu pensamento, não apenas suas palavras” (530c)


Sócrates elogia como “terrível” (531a) a habilidade de Íon, por seu profundo e especializado conhecimento a respeito de Homero para descrever o sentido técnico de tal domínio do conhecimento especializado:

Mas, então, em suma, digamos, que a mesma pessoa reconhecerá, sempre, muitos falando das mesmas coisas, tanto quem fala bem quanto quem fala mal; ou, se ela não reconhecer aquele que fala mal, é evidente que nem o que fala bem, acerca da mesma coisa, ela reconhecerá” (532a).

A “mesma pessoa será juiz suficiente de todos que falarem das mesmas coisas” (532b) e “os poetas fazem poemas em relação às mesmas coisas”.

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Ora, segundo Sócrates, dado o domínio da arte exercido por Íon este deveria ser um especialista em todos os poetas, e não somente em Homero, o que motiva o rapsodo a questionar:

Mas, então, qual é a causa, Sócrates, de eu, quando alguém discorre acerca de outro poeta, nem prestar atenção, nem ser capaz de contribuir com algo digno de ser dito, mas simplesmente cair no sono, ao passo que, se alguém faz menção a Homero, eu acordo imediatamente e presto atenção e sou desembaraçado para falar?” (532c)

Sócrates, então, saca a hipótese de que Íon é objeto de possessão divina, e se dominasse a técnica e ciência poderia tratar “acerca de todos os outros poetas”, pois uma:

técnica poética leva em consideração o todo” (532c).

Toda técnica é objeto do “mesmo tipo de investigação” (532d), pois a técnica em geral sempre considera o todo (532e).

Íon não possui uma técnica, como conhecimento do todo, pois ele se restringe a Homero, e neste momento é que Sócrates cita a pedra que Eurípedes chamou de magnética” (533d).

Por analogia ao processo imantação a Musa:

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cria entusiasmados, e através desses entusiasmados uma série de outros entusiastas é suspensa” (loc.cit.).

Bons poetas despontam não por sua técnica, mas por serem possuídos pelos deuses, e por isso são criados “belos poemas” (534a), e assim Sócrates declama:

Pois coisa leve é o poeta, e alada e sacra, e incapaz de fazer poemas antes que se tenha tornado entusiasmado e ficado fora de seu juízo e o senso não esteja mais nele. Enquanto mantiver esse bem, o bom senso, todo homem é incapaz de fazer poemas e de cantar oráculos” (534b)

A arte poética é, portanto, uma “concessão divina”, e se os poetas “tivessem, em virtude de uma técnica, a ciência de falar belamente em um gênero, também teriam em todos os outros” (534c), seriam, então, técnicos e dominadores de todos os gêneros literários.

Uma vez dominadores da técnica e da ciência do discurso, os poetas seriam retóricos e sofistas, não mais belos e divinos, pois:

os poetas não são nada além de intérpretes dos deuses” (534e).

Sócrates afirma que o rapsodo no exercício de sua arte se torna fora de seu juízo, como ocorre com Íon ao ficar entusiasmado que ao ser possuído pela Musa:

acredita estar junto das coisas de que tu falas” (534c).

A função do rapsodo é ser o elo entre o poeta e o espectador, no processo magnético de suspensão do juízo e de penetração no entusiasmo e na possessão divina.

Sócrates comenta que Íon, ao ouvir quando alguém canta uma canção de Homero:

"...imediatamente ficas desperto e a tua alma dança e te tornas desembaraçado em relação ao que dizes” (536c).

Sócrates lembra Íon que a poesia também trata de conhecimentos compreendidos dentro do âmbito de técnicas específicas, e afirma que há uma forte tendência à especialização, pois “a cada uma das técnicas foi atribuído pelo deus o poder de conhecer uma certa obra”. Sócrates então questiona sobre a natureza do conhecimento técnico:

as coisas que conhecemos por uma técnica, não conheceremos por outra?” (537c).

as mesmas coisas devem necessariamente ser conhecidas pela mesma técnica, e não as mesmas por outra técnica, mas se é outra, necessariamente também outras serão as coisas conhecidas” (538a).

aquele que não tiver uma técnica não será capaz de avaliar as coisas bem ditas ou feitas em virtude dessa técnica?” (538b).

Íon é estimulado a ler uma passagem de Homero, que descreve a técnica da Muromaquia, ocasião em que este concorda que Sócrates fala a verdade a respeito de ser uma técnica, na qual o adivinho é o melhor juiz, e assim Sócrates se manifesta sobre verdade poética: “E tu também, Íon, tu dizes a verdade ao dizer essas coisas” (538d).

Logo em seguida, Sócrates questiona sobre “a técnica rapsódica” (538e).

Após muitas armadilhas dialéticas, que demonstram que “a técnica rapsódica não conhecerá todas as coisas, nem o rapsodo” (539a), Íon afirma que se trata de uma técnica militar, pois ele saberia “quais coisas convém a um general dizer” (539d).

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Íon acaba por declarar que detém uma técnica rapsódica, que segundo Sócrates poderia habilitá-lo a ser escolhido como general, como já ocorrera dos atenienses em outras ocasiões escolher estrangeiros como Íon para tal nobre função:


Mas tu, simplesmente, como Proteu, te transformas em todo tipo de formas, girando para cima e para baixo, até que, terminando por escapar-me, surges como um general, para que não me exibas como és terrível na sabedoria acerca de Homero. E se então, tu és técnico, como eu acabei de dizer, garantindo se exibir acerca de Homero, tu me enganas completamente, e é injusto; e se não és técnico, mas, por uma concessão divina, possúido por Homero, nada sabendo, tu falas muitas e belas coisas acerca do poeta, como eu afirmei acerca de ti, não és nada injusto. Escolhe então se preferes ser considerado um homem justo ou divino” (542a).


Assim Íon confessa que “é muito mais belo o ser considerado divino” e Sócrates conclui:


Isso, então, a coisa mais bela, te é concedida por nós, Íon: ser divino, e não um louvador técnico de Homero” (542b).
Referência:
PLATÃO. Íon. Introdução, tradução e notas Victor Jabouille. Lisboa: Inquérito, 1988