Mostrando postagens com marcador Paulo de Barros Carvalho. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Paulo de Barros Carvalho. Mostrar todas as postagens

sábado, 21 de abril de 2018

IPTU, zona urbana e alíquotas perante o sistema federativo e a emenda constitucional N. 29/2000


Werner Nabiça Coelho*


Sumário: 1. Introdução – 1.1. A Norma Jurídica – Considerações Iniciais – 1.2. A Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT) – Breve Exposição – 1.3. RMIT e Regra-Matriz de deveres instrumentais – 2. O Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e a compostura de seus critérios espacial e quantitativo – 2.1. Zona Urbana ou Zona Rural? Um problema que se resolve com base no Princípio Federativo! – 2.1.1. Hierarquia das Leis Ordinárias entre os entes federativos – 2.1.2. Zona Urbana – Autonomia Municipal e Repartição Constitucional de Competências – 2.1.3. Critério Jurídico-constitucional para definir Zona Urbana – 2.1.4. Critérios Jurídico-Administrativo e Jurídico-Tributário são critérios subsidiários – 2.1.4.1. Terra de Marinha, foro, laudêmio, taxa de ocupação e IPTU – haverá bitributação? – 2.2. Alíquotas – Fiscalidade Versus Extrafiscalidade – 2.2.1. Limites do Poder de Tributar mediante Alíquotas Progressivas e Seletivas – 3. Conclusões finais – 3.1. Critério Espacial do IPTU – 3.2. Critério Quantitativo do IPTU – BIBLIOGRAFIA.

Resumo: O IPTU, em seus aspectos espacial e quantitativo, com especial enfoque na definição legal da zona urbana e no regime de alíquotas vigentes, estimula uma série de considerações jurídicas relevantes para a delimitação da sua incidência territorial e para a correta avaliação da obrigação e do crédito resultantes; pois o IPTU tem seu âmbito de incidência vinculado à exclusiva competência municipal de legislar sobre a delimitação de sua zona urbana; e, de outra parte, emerge no sistema jurídico-tributário pátrio, após a Emenda Constitucional 29/2000, um regime sui generis em que há verdadeira miríade de hipóteses de incidência de alíquotas progressivas, fiscais, extrafiscais e seletivas, passíveis de serem aplicadas sobre a base calculada, o que consideramos inconstitucional perante o princípio da capacidade contributiva, pois enseja verdadeiro efeito confiscatório sobre o direito de propriedade do contribuinte.

Palavras-Chave: IPTU – REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA – CRITÉRIO ESPACIAL – ZONA URBANA – COMPETÊNCIA MUNICIPAL – CRITÉRIO QUANTITATIVO – ALÍQUOTA – PROGRESSIVA – EXTRAFISCAL – SELETIVA – INCONSTITUCIONALIDADE.

* Advogado e professor, especialista em direito tributário (UNAMA/IBET)


1. Introdução.
           
 1.1. A Norma Jurídica – Considerações Iniciais.

            A norma jurídica (1), enquanto lei escrita, é a linguagem (2) social que se impõe mediante documentos formais com os atributos da eficácia e validade jurídicas frutos de um processo legislativo adequado praticado por autoridade competente, sendo que a linguagem da norma pode se revelar de vários enunciados jurídicos, de um ou de apenas parte do mesmo, cabe ao intérprete fazer o esforço intelectivo de interpretar o sentido do texto legal para chegar à sua real finalidade e poder explicar as suas conseqüências; é essencialmente uma espécie de norma de conduta social cuja diferença específica está na garantia concreta conferida pela coatividade estatal (3); portanto, a norma jurídica é o conteúdo semântico que se extrai do conteúdo sintático da expressão normativa fixada em suportes físicos, mediante o esforço interpretativo do operador visando sua aplicação eficaz no mundo dos fenômenos culturais.

            1.2. A Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT) – Breve Exposição.

            A regra-matriz de incidência tributária (4) é a norma jurídica tributária em sentido estrito, tal como vem definido no art. 3º do CTN, pois o seu núcleo é essencialmente a definição de uma norma geral e abstrata e genérica que define as notas do tipo tributário, definindo seus critérios (1) material, (2) temporal, (3) espacial, (4) subjetivo e (5) quantitativo, de forma a compor a regra de conduta tributária a ser inserida no ordenamento e a ser aplicada no dia-a-dia definindo a conduta tributária a ser observada pelo Fisco e pelo contribuinte, informando-lhe em razão (1) do quê, (2) quando (3) e onde um dado (4) sujeito passivo, ou seu substituto, deve prestar para determinado sujeito ativo (5) determinada quantia apurada, mediante delimitação de uma base de cálculo e respectiva alíquota, o "quantum" da obrigação de natureza tributária. É a norma de conduta que informa os limites materiais de incidência do fenômeno tributário, como realização do princípio da reserva legal.

            A regra-matriz de incidência tributária compõe-se de 05 (cinco) critérios decomponíveis em oito (08) enunciados normativos, que definem:

            (1) o critério material, composto da descrição da conduta reveladora de capacidade econômica tipificada como objeto da tributação, compõe-se do verbo de ação, ou de estado, e de seu complemento;

            (1.1) o critério pessoal, corresponde ao sujeito elíptico vinculado ao verbo denotador da conduta tipificada, este critério esclarece quem é o contribuinte, e a partir desta definição possibilita aferir se as hipóteses de substituição tributária, responsabilidade tributária e/ou equiparação guardam algum vínculo com o ator social que pratica a cena tributada;

            (2) o critério temporal, que condiciona o lapso temporal em que se dá o fato jurídico tributário para o efeito de incidência da norma, é o que a doutrina descreve como tempo no fato, ou seja, o momento em que o evento social surge e faz nascer a obrigação tributária, que será sempre anterior ao tempo do fato, ou seja, do lançamento propriamente dito, seja de ofício ou não, o tempo do fato corresponde ao momento em que se produz a norma individual e concreta que cria o crédito certo, líquido e exigível da Fazenda contra o Sujeito Passivo, o critério temporal, portanto, define a competência da norma material tributária no que diz respeito ao tempo no fato, e, de outra parte define a competência da norma meramente instrumental ou processual tributária a quando do tempo do fato, da produção do lançamento;

            (3) o critério espacial, condicionador espacial da incidência tributária, cuja função é a de definir a competência territorial do ente tributante, neste critério o espaço do fato e o espaço no fato necessariamente coincidem, pois enquanto o correr do tempo se dá de forma discreta, a localização no espaço ocorre de forma contínua, a incidência se dá em determinado território de uma vez por todas, cabendo ao ato de lançamento somente registrar este dado diretamente relacionado com a competência constitucionalmente prevista e indelegável de cada Pessoa Jurídica de Direito Público Interno do Estado do Brasil – Até aqui se descreveu o operador deôntico neutro que define a hipótese tributária em sua etapa descritiva de um fato jurídico economicamente relevante para fundamentar a obtenção de receitas públicas. Em vista da linguagem lógica de natureza deôntica dar-se-á atuação do conectivo deôntico neutro que vincula o dever-ser do antecedente normativo com o dever-ser do conseqüente normativo; uma vez realizada a conexão em que dado o antecedente deve-ser o conseqüente, ou seja verificada a subsunção do fato jurídico tributário ao operador deôntico neutro será ativado o operador deôntico modalizadoem obrigatório (O), permitido (P) ou vedado (V), sendo que, dada a natureza impositiva da relação jurídica tributária, moralizar-se-á em regra a operação do modal obrigatório;

            (4) o critério subjetivo, compõe-se da definição dos sujeitos participantes da relação jurídica;

            (4.1.) Sujeito Passivo, que não se confunde com o critério pessoal (v. 1.1) haja vista que o contribuinte, caso seja da conveniência da arrecadação, e em acordo com os ditames legais, poderá ser substituído como Sujeito Passivo da Relação Jurídica, seja por responsáveis, substitutos ou terceiros equiparados, desde que estes sujeitos tenham alguma relação com o critério material, ou seja, sejam direta ou indiretamente relacionados como fato jurídico tributário antevisto na hipótese jurídica;

            (4.2) Sujeito Ativo, será a Pessoa Jurídica de Direito Público Interno a quem competir a capacidade de arrecadar determinado tributo, sendo que esta capacidade pode ser objeto de delegação para outra entidade, quando se verificará o fenômeno jurídico da parafiscalidade;

            (5) critério quantitativo, que se subdivide em Base de Cálculo e Alíquota;

            (5.1.) base de cálculo, é a previsão normativa que delimita a dimensão econômica do evento tributável, como diria a boa doutrina é na quantificação realizada pela Base de Cálculo que se irá confirmar, infirmar ou afirmar o fato jurídico tributário previsto no antecedente (5), pois a base de cálculo ao indicar as fronteiras econômicas do evento social, objeto do tributo irá demonstrar se o tributo incide efetivamente sobre o aspecto do patrimônio eleito pela norma, se o tributo afeta fato diverso, ou até aclarando o que eventualmente estivesse obscuro no critério material. A Base de Cálculo ao ser descrita no lançamento tributário assumirá o status de base calculada, de valor pecuniário de referência para a aplicação do desconto realizado pela alíquota;

            (5.2.) alíquota, enquanto a Base de Cálculo delimita o terreno econômico que importa ao tributo, a alíquota indica qual o quinhão que interessa ao Grande Sócio Fiscal que é o Estado, se há momento em que sabemos o que é viver em sociedade, então, é justamente neste, quando a alíquota realiza este singelo desconto sobre o patrimônio do particular, enquanto a Base de Cálculo é o aspecto estático do critério quantitativo, a alíquota é o que há de mais dinâmico, pois é conforme o seu manuseio que em nosso direito definir-se-á se determinado tributo será seletivo, progressivo, fiscal ou extrafiscal, por outro lado, nos parece indiferente se a alíquota aplicável é a percentual ou uma quantia fixa a título de tributo, é claro, desde que esta seja destinada a atuar como tributo de natureza extrafiscal ou até seletiva, enquanto que os tributos de natureza fiscal calham bem com a alíquota percentual fixa, pois para estes últimos vigoram com toda a sua força o princípio da igualdade cujo corolário tributário é o princípio da capacidade contributiva, enquanto que para os impostos extrafiscais, por serem fundados na soberania, via de regra, são-lhes conferidos um âmbito de manobra em que a supremacia do interesse público sobre o privado minora a relevância da igualdade e da capacidade econômica quando estas criam entraves aos interesses maiores da sociedade.

            1.3. RMIT e Regra-Matriz de deveres instrumentais.

            Tanto a regra-matriz de incidência tributária como as regras-matrizes dos deveres instrumentais são normas da mesma generalidade jurídica enquanto normas de conduta, entretanto, existe uma diferença específica que distingue a regra-matriz de incidência tributária das demais, é que cabe a ela, e somente a ela, definir a norma de conduta jurídico-tributária por excelência, em função do princípio da tipologia tributária, ou seja, o tributo, tal qual o tipo penal, ao necessitar obedecer ao princípio da reserva legal, torna-se um ente jurídico de natureza lógica especialíssimo, portanto, a regra-matriz de incidência tributária é a norma jurídica tributária em sentido estrito, sendo as demais normas jurídicas determinadoras de condutas chamadas acessórias, cuja finalidade é a de instrumentalizar o como prestar ou não a obrigação, pode-se afirmar que são simples normas tributárias em sentido amplo, por participarem do fenômeno tributário como um todo onde cumprem o papel de meros deveres instrumentais, que concorrem para efetiva e concreta aplicação da regra-matriz de incidência tributária.


2. O Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e a compostura de seus critérios espacial e quantitativo.

            O IPTU apresenta certas peculiaridades no que diz respeito aos seus critérios espacial quantitativo que implicam conseqüências jurídicas importantes na determinação da competência tributária do ente tributante, critérios estes que podem implicar em hipóteses confiscatórias dada a nova e complexa sistemática inaugurada pela EC29/2000 no que diz respeito à determinação das alíquotas aplicáveis a esta espécie tributária.

            Considerando-se pacífica a questão no que tange aos critérios: material (possuir propriedade imóvel), temporal (incidência do tributo em 1o de Janeiro de cada ano), subjetivo (Relação Jurídica que liga o direito subjetivo do Município ao dever do contribuinte), e, parcialmente, ao quantitativo (Base de cálculo sendo o valor venal do imóvel), devemos nos concentrar na tessitura jurídica necessária para se chegar aos enunciados normativos que comporão o critério espacial e o critério quantitativo em seu aspecto de alíquota.

            2.1. Zona Urbana ou Zona Rural? Um problema que se resolve com base no Princípio Federativo!

            2.1.1. Hierarquia das Leis Ordinárias entre os entes federativos.

            Devemos, antes de tudo, realçar o fato jurídico constitucional de que o Município em nada se rebaixa, juridicamente, ao Estado-membro, e Distrito Federal, e à União, quando enfocado sob o aspecto de pessoa jurídica de direito público interno, sendo a lei ordinária municipal da mesma hierarquia que a legislação ordinária dos demais entes federativos, quando a expressamente a Constituição ao revés não determinar.

            2.1.2. Zona Urbana – Autonomia Municipal e Repartição Constitucional de Competências.

            Dada a regra constitucional da autonomia municipal (caput, art. 1o c/c caput, do art. 18, ambos da CF), bem como a sua competência para promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, inciso VIII, da CF), e, que tal desiderato se dará mediante uma ação administrativa que vise política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei (art. 182, da CF), e, por fim, que a Lei Federal n.o 10.257, de 10 de Julho de 2001 (Estatuto da Cidade) delimitou à União o poder de legislar sobre normas gerais de direito urbanístico e instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano (art. 3o, I e IV), bem como outras medidas de interesse urbanístico em nível nacional e regional, sempre com o auxílio dos demais entes da Federação, haja vista que ao Município sempre caberá precipuamente a competência de legislar sobre assuntos de interesse local (CF, art. 30, inciso I).

            2.1.3. Critério Jurídico-constitucional para definir Zona Urbana.

            Ora, de todo o exposto no parágrafo precedente podemos enunciar o primeiro critério para delimitar o espaço de incidência do IPTU, qual seja, ao Município cabe competência constitucional para definir a zona urbana, este é o critério jurídico-constitucional previsto na Carta Magna, isto é, somente lei municipal tem competência para definir a zona urbana.

            2.1.4. Critérios Jurídico-Administrativo e Jurídico-Tributário são critérios subsidiários.

            Uma vez que haja lei municipal instituidora da zona urbana, passaremos a ter o parâmetro jurídico-constitucional para o critério geográfico, que definirá circunscrições territoriais de natureza jurídico-administrativa, repartição territorial esta que deverá sofrer a incidência do critério das benfeitorias previstas no CTN, que denominaremos de critério jurídico-tributário.

            O critério das benfeitorias ou dos equipamentos, que é um critério de natureza jurídico-tributária, configuram-se tais critérios em normas de estrutura (6) que informam o legislador municipal na confecção da norma de conduta instituidora do tributo de sua competência, de um lado será a existência de lei municipal de zoneamento urbano, após a verificação da presença ou não de determinadas benfeitorias que será a diferença específica entre a zona urbana por natureza (CTN, art. 32, parágrafo 1o) e a zona urbana por equiparação (CTN, art. 32, parágrafo 2o) (7).

            Para efeitos tributários observar-se-á a presença ou não de equipamentos mínimos para a configuração de um território urbano já consolidado ou em vias de constituição, tudo conforme letra expressa em lei municipal definidora da zona urbana. Assim sendo, tudo o que não estiver contido nos limites traçados acima estará na zona rural.

            Observe-se que o critério das benfeitorias previsto no CTN não esgota a matéria, podendo o legislador municipal elencar outras espécies de benfeitorias que caracterizarão a zona urbana por natureza, ou seja, a norma municipal pode agir supletivamente quanto ao critério das benfeitorias, o que não pode ocorrer jamais é que no ato do lançamento, momento de criação da norma individual e concreta, serem considerados critérios definidores da existência de um ou mais equipamentos urbanos que não estejam previamente definidos em lei municipal, norma geral e abstrata à qual atividade tributária está estritamente vinculada.

            Em síntese, zona urbana é a circunscrição territorial, contínua ou descontínua, definida em lei municipal que enquadrará determinado território como urbano por natureza ou por equiparação, e, o que estiver fora desta situação geográfica será considerado zona rural.

            Esta definição atende ao princípio da autonomia municipal (caput, art. 1o c/c caput, do art. 18, ambos da CF) e à repartição das competências constitucionais tanto administrativas (art. 30, inciso VIII e art. 182, da CF) quanto tributárias (art. 145 e ss., da CF).

            Portanto, uma vez definida zona urbana o que restar serão rústicas plagas onde incidirão as regras atinentes ao ITR (Imposto Territorial Rural).

            Podemos esquematizar a seqüência de raciocínios da seguinte forma:

            CONFIGURAÇÃO DO CRITÉRIO ESPACIAL DO IPTU:

            CONSTITUIÇAO FEDERAL
            - CRITÉRIO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL (CF, ARTS. 1O C/C 18 C/C 30, I E VIII C/C 182)

            LEI MUNICIPAL
            -CRITÉRIO JURÍDICO-ADMINISTRATIVO OU GEOGRÁFICO (DIVISAS CIRCUNSCRICIONAIS) C/C CRITÉRIO JURÍDICO-TRIBUTÁRIO OU DAS BENFEITORIAS OU DOS EQUIPAMENTOS URBANOS QUE DEFINEM A ZONA URBANA POR NATUREZA E A ZONA URBANA POR EQUIPARAÇÃO(CTN, ART. 32, §§ 1º E 2º).

            Ora, uma vez que somente lei municipal pode definir a zona urbana, temos que a regra do CTN é norma de estrutura da compostura da própria lei municipal instituidora da zona urbana, ou seja, já na confecção da norma municipal se deverá atender aos critérios antevistos no CTN, mas, nada impedirá que o ordenamento municipal acrescente outros requisitos configuradores da zona urbana, o que a lei municipal não pode e não deve fazer é criar zonas urbanas fictícias ou improváveis, pois mesmo as zonas urbanas por equiparação são zonas urbanas em potencial, prováveis e iminentes, que têm determinado prazo para consolidação no panorama urbanístico, todavia, não devemos esquecer que apesar de raríssimos os casos, há já hoje em determinadas regiões do Brasil algumas zonas urbanas que se espraiam por quase que a totalidade do território municipal, o que no médio prazo poderá ocasionar a total exclusão da incidência do ITR destas localidades.

            2.1.4.1. Terra de Marinha, foro, laudêmio, taxa de ocupação e IPTU – haverá bitributação?

            Caro(a) leitor(a), Vossa Senhoria poderia inquirir: se a zona urbana somente é definida pela norma municipal, então, os terrenos de marinha definidos como bens da União no art. 20 da Carta Maior, estariam suscetíveis à incidência da lei municipal definidora de área urbana, e, portanto, sujeitos à incidência de IPTU?

            Depende, não esqueçamos que há imunidade recíproca entre os entes federativos, mas testemunha a nosso favor o fato de que os terrenos de marinha, cujo domínio é da União, mas que estejam na posse de terceiros são tributados normalmente pelo IPTU, neste sentido há possibilidade de um imóvel cujo domínio seja da União ou do Estado-Membro, mas que esteja na posse de particular, dentro da área urbana, estar sujeito ao tributo municipal, pois o que se imuniza é a pessoa jurídica de direito público interno e não o imóvel como coisa-em-si.

            Rosita de Sousa Santos (8), explica que a gênese da "Terra de Marinha é fruto de decisão de atos da administração visando à reserva de um espaço físico para desenvolvimento de uma política econômica", e, para melhor explicitar a natureza jurídica do instituto da enfiteuse à qual os terrenos de marinha estão sujeitos a autora nos remete ao ensinamento de Pontes de Miranda que de sua cátedra nos diz "O direito de enfiteuse é direito e não coisa, bem corpóreo (9)", e, ainda noticia que:

            [...] terra de marinha, [...], fronteira atlântica que é, jamais foi objeto da concessão de domínio pleno a quem quer que seja, o mesmo acontecendo com a terra de fronteiras interiores, que sempre foi, também, resguardada. Relembremos a histórica sentença do Supremo Tribunal Federal, em 1905 – terra de marinha não é próprio nacional. Terra de marinha é bem nacional (10).(destaque no original)

            Caracterizando-se o contrato de enfiteuse pelo ônus que se grava sobre a propriedade em que ao proprietário sempre preservará o domínio, cabendo-lhe o direito de eventualmente reunir o direito de disposição uso e gozo, preservando sempre a substância do direito, enquanto que ao foreiro somente serão conferidos os direitos inerentes à posse, uso e gozo imediatamente perceptíveis, não se lhe transmitindo, jamais, a própria coisa, somente direitos, diante desta realidade Rosita comenta que:

            A lição da doutrina do Direito Civil não se modifica quando o contrato de aforamento se realiza entre a União – pessoa de Direito Público, e o particular – Pessoa de Direito Privado. Essa lição, no entanto, em tal caso tem que ampliar para contemplar o fato especial de que as terras da União são patrimônio coletivo, e representam interesses da Nação e dos nacionais. Quando o aforamento recai, especificamente, sobre as terras de marinha as responsabilidades mais se alargam, as obrigações tornam-se mais rígidas, e os deveres mais urgentes (11).

            A ordem legal inaugurada pelo Novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), entre mil e uma coisas, em seu artigo 2038 definiu que:

            Fica proibida a constituição de enfiteuse e subenfiteuse, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1o de janeiro de 1916, e leis posteriores.

            Diante de tal disposição legal será que ainda existe enfiteuse no direito brasileiro? Sim, basta-nos dar um breve salto até o parágrafo 2o do mesmo artigo 2038, do referido Diploma para nos abismarmos com o seguinte: "A enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial (12)".

            Para melhor exposição do que seja a terra de marinha conforme o sistema legal vigente devemos referir a Carta Magna em seu artigo 20, inciso VII, que diz:

            Art. 20. São bens da União:
            [...]
            VII – os terrenos de marinha e seus acrescidos;

            Após o quê, convém-nos citar os seguintes diplomas legais pertinentes ao tema:

            Novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002):

            Art. 99. São bens públicos:
            [...]
            III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.

            Código de Águas (DECRETO No 24.643, DE 10 DE JULHO DE 1934):

            Art. 11. São públicos dominicais, se não estiverem destinados ao uso comum, ou por algum título legítimo não pertencerem ao domínio particular;
            1º, os terrenos de marinha;

            Decreto-Lei n. 9.760, de 05 de setembro de 1946 (LEI DO SERVIÇO DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO - LSPU):

            Art. 2.o São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:
            a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;
            b) os que contornam as ilhas situadas em zonas onde se faça sentir a influência das marés.
            Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo, a influência das marés é caracterizada pela oscilação de 5 (cinco) centímetros pelo menos do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.
            Art. 3.o São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha.
            [...]
            Art. 64 Os bens imóveis da União não utilizados em serviço público poderão, qualquer que seja a sua natureza, ser alugados, aforados ou cedidos.
            [...]
            §2o O aforamento se dará quando coexistirem a conveniência de radicar-se o indivíduo ao solo e a de manter-se o vínculo da propriedade pública.
            [...]
            Art. 101. Os terrenos aforados pela União ficam sujeitos ao foro de 0,6% (seis décimos de por cento) do valor do respectivo domínio pleno.
            §1o O pagamento do foro deverá ser efetuado adiantadamente durante o primeiro trimestre de cada ano sob pena de multa de 20% (vinte por cento).
            §2o O não pagamento do foro durante 3 (três) anos consecutivos importará na caducidade do aforamento.
            Art. 102 Será nula de pleno direito a transmissão entre vivos de domínio útil de terreno da União, sem prévio assentimento do SPU.
            §1o Nas transmissões onerosas, a União terá direito à opção e, quando não o exercer cobrará laudêmio de 5% (cinco por cento) sobre o valor do domínio pleno do terreno e benfeitorias.

            Fica claro, pelo cotejo entre a norma constitucional, a lei civil e a lei especial que se referem ao instituto dos terrenos de marinha, que a enfiteuse somente sobrevive em nosso sistema (caput do art. 2038 c/c parágrafo 2o do mesmo artigo, da NCC) quando incidir sobre os bens imóveis públicos dominicais (art. 99, III, do NCC c/c art. 11, item 1o do Código de Águas) e nacionais pertencentes à União (art. 20, VII, da CF) existentes até 33 metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha da preamar-médio de 1831 (13) (art. 2o, da LSPU), ou acrescentados, natural ou artificialmente para o lado aquático a partir das mesmas terras de marinha (art. 3o, da LSPU), que poderão ser aforadas quando não utilizados em serviço público e quando coexistirem a conveniência de radicar-se o indivíduo ao solo e a de manter-se o vínculo da propriedade pública (art. 64, caput e parágrafo 2o, da LSPU), sujeitando-se o foreiro ao pagamento de foro no valor de 0,6% (seis décimos de por cento) do valor do respectivo domínio pleno, e, quando se efetuar transmissão onerosa em que o senhorio (União) não exerça o direito de preferência dever-se-á pagar uma compensação, o laudêmio, no valor de 5% (cinco por cento) sobre o domínio pleno e benfeitorias (art. 102, parágrafo 1o, da LSPU).

            Como se pode observar nem o laudêmio nem o foro são caracterizáveis como tributos, pois não surgem de forma impositiva nem estão ligados a uma atividade pública plenamente vinculada, pois de um lado o aforamento não deixa de ser uma espécie de contrato que depende da livre manifestação da vontade do postulante do título de aforamento interessado em ingressar no uso e gozo de determinado patrimônio da União, as terras de marinha, e de outra parte na correspondente anuência da Administração, que através do Serviço do Patrimônio da União, vinculado ao Ministério da Fazenda, atuará segundo a oportunidade e a conveniência no momento em que exarar, ou não, o ato administrativo concessivo de foro, emprazamento ou enfiteuse.

            Mas, quem lida em seu cotidiano civil ou profissional com terrenos de marinha sabe que a União cobra uma taxa de ocupação relacionada com estes mesmos terrenos de marinha, então, como ficamos, há bitributação ou não relacionada ao IPTU?

            Quando nos dirigimos ao Decreto n. 14.595, de 31 de dezembro de 1920, que instituiu a taxa de ocupação de terrenos de marinha, e seu respectivo regulamento, verificamos que se trata efetivamente de uma taxa que visa onerar a utilização irregular dos terrenos de marinha, pois "Todos os terrenos de marinha e seus acrescidos ocupados, sem que os ocupantes possuam títulos de aforamento, arrendamento ou venda, firmados pelo Governo da União, ficam sujeitos à taxa de ocupação" (art. 1o, do Regulamento que acompanha o Decreto n. 14.595, de 31 de dezembro de 1920). Logo, por se tratar de taxa pela utilização efetiva de serviço público específico e divisível (art. 145, II, da CF) referente à utilização do patrimônio público para fins particulares, tal utilização, quando não estiver devidamente regularizada deverá sofrer a incidência da referida taxa, cumulativamente com o IPTU, pois a hipótese de incidência de ambos é distinta, bem como sua natureza jurídica, um é taxa outro é imposto, aquele é da competência do ente federal o outro do ente municipal, a taxa de uso refere-se ao uso e gozo de patrimônio alheio sem a devida regularização, coibindo-se assim enriquecimento ilícito de terceiros em relação à utilização irregular de patrimônio público, o imposto mencionado incide sobre a pura e simples posse e/ou propriedade de bem imóvel. Neste sentido, vigia em relação à enfiteuse, presente no Código Civil revogado, em seu art. 682 determinação de caráter propedêutico: "É obrigado o enfiteuta a satisfazer os impostos e os ônus reais que gravarem o imóvel (14)".

            Neste sentido a doutrina é unânime em compreender que a interpretação sistemática exige se conclua pela utilização do termo propriedade no sentido comum e não no seu significado jurídico, portanto, o IPTU grava a propriedade em suas configurações de domínio útil – ou seja, direito à posse dos direitos de usar e gozar característicos do enfiteuta, permanecendo a propriedade no patrimônio do senhorio, titular do domínio direto, in casu a própria União – e a simples posse, neste sentido Aires F. Barreto (15) com suporte na melhor Doutrina.

            Corroborando o sobredito toda a legislação referente ao IPTU segue nesta senda, e, como exemplo, destacamos o Código Tributário do Município de Belém (LEI Nº 7056, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1977, Publicada no DOM nº 3732, de 30.12.1977) que em seu art. 4o determina:

            Art. 4º O Imposto Predial e Territorial Urbano tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de todo e qualquer bem imóvel, por natureza ou por acessão física, tal como definido na lei civil, situado no território do Município e que, independentemente de sua localização, não se destine à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal ou agro-industrial. (destacamos)

            2.2. Alíquotas – Fiscalidade Versus Extrafiscalidade

            No seguimento do presente estudo devemos agora tocar o nervo mais sensível do IPTU, isto é, o seu critério quantitativo no âmbito da alíquota, pois é mediante a adoção de uma complexa rede de alíquotas, progressivas e/ou seletivas, fiscais e/ou extrafiscais, que se desenha uma verdadeira maldade do fisco para com o contribuinte.

            Podermos definir que Alíquota (16) é o critério de medida que aplicada à base calculada dimensiona o quantum monetário da obrigação tributária, podendo ser de natureza fixa ou percentual.

            Alíquota Fixa será quando relacionar determinada prestação diretamente a uma quantidade referida na base de cálculo sem perquirir sobre o valor do bem, produto ou serviço, o tributo será cobrado em relação à quantidade de determinado produto e não sobre o seu valor (17).

            Será alíquota percentual quando se referir à fração matemática do valor econômico de determinado bem, direito ou serviço, tais percentuais poderão ser das seguintes espécies:

            a)Alíquotas percentuais graduadas, alíquotas fixas de natureza percentual que produzirão efeito arrecadatório de forma diretamente proporcional à base de cálculo, gradua-se o valor do tributo sobre base calculada apurada com a aplicação de um único percentual fixado em lei;

            b)Alíquotas percentuais progressivas ou regressivas de natureza fiscal ou arrecadatória, produzem conseqüências arrecadatórias de forma direta ou inversamente, proporcionais à base de cálculo, gradua-se o valor do tributo segundo alíquotas variáveis em relação ao valor apurado na base calculada, podendo ensejar progressividade ou regressividade de alíquota, tem função meramente arrecadatória;

            c)Alíquotas percentuais progressivas ou regressivas de natureza extrafiscal ou política, hipóteses em que se enquadram as alíquotas com função punitiva e/ou seletiva, que variam segundo critérios relacionados com políticas públicas, assumindo a função de meios extrafiscais de intervenção no domínio econômico e/ou social, não possui fins essencialmente arrecadatórios como as anteriores espécies de alíquotas.

            Outrora, o IPTU possuía alíquota de natureza percentual e graduada incidente sobre o valor venal do imóvel, estabelecendo com isso uma relação jurídica compenetrada de justiça fiscal por se tratar de parcela patrimonial de natureza econômica estática, ou seja, cujo valor sofre poucas alterações no decorrer do tempo, e, quando tal alteração ocorre o próprio quantum da valorização ou desvalorização imobiliária estará revelando indícios suficientes da verdadeira capacidade contributiva do sujeito passivo, haja vista que o valor venal por si só gradua natural e proporcionalmente o valor da obrigação fiscal devida pelo contribuinte.

            No panorama constitucional anterior à EC 29/2000 havia somente uma hipótese de tributação extrafiscal permitindo a aplicação de uma alíquota progressiva em razão do tempo (art. 182 da CF); hodiernamente, após a Emenda Constitucional 29/2000, o panorama tornou-se esdrúxulo para, o cada vez mais pobre, cidadão brasileiro, e, em particular os que ainda se atrevem incluir um imóvel em seu patrimônio.

            Na atual sistemática fomos agraciados com duas progressividades e duas seletividades. Temos progressividade fiscal nos termos do art. 156, §1o, I da CF, e, progressividade extrafiscal, (art. 182 da CF), e passamos a ter seletividade em função do uso e da localização (156, §1o, II, da CF).

            Em suma, não é impossível de se imaginar que com a nova estrutura normativa constitucionalmente inserida, de hora em diante se instaure a concomitância de todas estas alíquotas na aplicação da norma tributária municipal, pois vejamos: a seletividade do uso e da localização não colide com a extrafiscalidade em virtude do valor venal, e esta, por disposição constitucional não causa prejuízo à extrafiscalidade em razão do desatendimento da função social da propriedade da prevista no art. 182.

            2.2.1. Limites do Poder de Tributar mediante Alíquotas Progressivas e Seletivas

            Qual será o limite para a aplicação desta miríade de alíquotas?

            Creio que formalmente nenhum, não há definição expressa de um limite, salvo aquele que vem definido no Estatuto da Cidade, art. 7o, §1o, que define alíquota máxima de 15% para a hipótese do art. 182 da CF.

            Ora, provavelmente, se o legislador elegeu uma alíquota máxima para o imóvel que descumpre a função social – hipótese em que temos a presença de alíquota percentual progressiva extrafiscal de finalidade punitiva –, então, é de bom alvitre interpretar que o sistema tributário nacional não admitirá que a extrafiscalidade seletiva e a progressividade fiscal ultrapassem o teto de 15%; melhor dizendo, que o teto das demais alíquotas há de ficar necessariamente aquém do limite previsto no Estatuto da Cidade, para que na eventualidade de aplicação desta qualificadora tributária, a regra que onera a propriedade descumpridora da função social não se torne ineficaz em sua finalidade de coibição da conduta que não realiza a função social da propriedade, afinal, se bons proprietárias forem fiscalmente equiparáveis aos maus proprietários então haveremos de ter um nivelamento por baixo desestimulador do uso socialmente correto da propriedade.

            Enfim, não devemos esquecer que se há uma progressividade fiscal em razão do valor do imóvel, e que esta progressividade está a se fundamentar no art. 145, §1o, da CF, então, sob o mesmo fundamento, fica implícita a necessidade de alíquotas regressivas ou até de isenção quando verificada a falta ou insuficiência de tal capacidade. O princípio da progressividade consiste na possibilidade de majoração da obrigação tributária mediante uma escala crescente no valor percentual da alíquota do tributo, de acordo com critérios econômicos ou sociais, conforme a maior capacidade econômica aparentede dado contribuinte ou conforme a correta ou inadequada utilização do espaço urbano.


3. Conclusões finais.

            3.1. Critério Espacial do IPTU.

            Núcleo urbano não deve ser tomado como sinônimo de zona urbana, mas para que haja a cobrança do IPTU deverá o Município, no exercício fiscal anterior zonear, delimitar as áreas abrangidas pelos imóveis existentes em seu território, para, com isso, instituir a obrigação de forma regular.

            Igualmente, diante do que ficou sobredito, nenhuma lei, federal ou estadual, ordinária ou complementar poderá definir zona urbana para efeitos de tributação do IPTU, pois tal atitude ferirá a autonomia municipal, uma vez que foi conferido constitucionalmente aquele cabedal de prerrogativas constitucionais ao Município, como ficou patente não seria sob o fundamento do art. 146, I, da CF, que seria possível editar lei complementar que contrariasse a própria constituição em tantos outros dispositivos, como acima referidos, a título de pacificar conflitos de competência, quem possui tal competência é o próprio ordenamento municipal, sendo que o CTN e demais legislação complementar possuem função meramente residual.

            3.2. Critério Quantitativo do IPTU.

            O instituto da progressividade parte de uma presunção legal, presunção de natureza relativa, haja vista que o mesmo princípio de progressividade contida no art. 145, parágrafo 1o da Carta Magna tem sua base no dado da realidade econômica efetiva vivida pelo contribuinte, logo, uma vez feita a prova de que a progressividade excede a capacidade econômica do contribuinte, a aplicação de tal regime de progressividades, fiscais, extrafiscais e seletivas, acabam por ferir o direito do mesmo, criando a necessidade de se minorar a seu impacto patrimonial.

            Numa perspectiva positivista e formalista poderíamos sustentar a constitucionalidade de tais critérios quantitativos no que diz respeito às alíquotas do IPTU, pois existe emenda constitucional e até prova em contrário é o que vale no sistema positivo; ora, tal prova deve ser feita com base na tese que procure demonstrar a ofensa ao princípio da vedação de bitributação haja vista que as hipóteses de progressividade fiscal, extrafiscal e seletiva do IPTU incidiriam sobre a base de cálculo dos demais tributos incidentes sobre a propriedade imóvel, mas, mais não me estenderei por haver explanado sobre tal assunto em artigo anterior, e, neste ensejo, socorro-me de algumas palavras do mesmo:

        Concluímos, finalmente, que a aplicação progressiva do IPTU significa uma forma de bitributação velada e espúria, pois equipara o valor venal do imóvel à renda e ao preço, como se eventual valorização nominal representasse renda nova ou transmissão em potencial de titularidade, quando, na verdade, é mero valor presumido, passível de dimensionamento para baixo no momento da transação de compra e venda de imóveis, e, por outro lado fere o direito de propriedade, pois o transforma em peso economicamente proibitivo, configurando confisco, além, é claro, de ferir o direito à igualdade, pois o valor do imóvel não é medida confiável para aferimento da capacidade contributiva ensejadora de progressividade, a progressividade requer riqueza nova realizada ou por realizar, atual ou iminente, portanto; ou seja, riqueza pecuniária e não meramente contábil.

            E, como última observação, não devemos esquecer que a capacidade econômica do contribuinte só poderá ser graduada em função do caráter pessoal quando for possível, e, como se observou no presente estudo, em relação à propriedade imóvel isto é impossível, em virtude da própria sistemática adotada pela Assembléia Nacional Constituinte ao desdobrar a tributação sobre o direito de propriedade entre esferas de competências secantes, fronteiriças, adjacentes de tal forma que a expansão de uma provocará bitributação em relação às demais. (18)(grifos no original)

            Por outro lado, creio que houve excesso na criação de alíquotas seletivas, portanto, minha opinião é a de que só deveriam prevalecer as progressividades do art. 182 e do art. 156, parágrafo 1o, I, ambos da CF, pois ambos partem de critérios plausíveis, seja em razão do valor do imóvel, seja em razão do descumprimento da função social da propriedade, por outro lado, o subjetivismo e a discricionariedade presentes na idéia de alíquotas seletivas do IPTU implicam numa quebra da segurança jurídica e, potencialmente, do direito de propriedade do cidadão.

            A instituição de IPTU cumulativamente progressivo, fiscal e extrafiscal, e, concomitantemente seletivo em razão do lugar e do uso é formalmente constitucional, pois está previsto no art. 156, parágrafo 1o, II da CF, mas, materialmente, são feridos princípios maiores como a igualdade e a propriedade privada, pois a seletividade é uma hipótese de extrafiscalidade que se presta a políticas de desenvolvimento econômico e de política industrial, já no âmbito municipal é uma porta aberta para a possibilidade de uma "especulação imobiliária por meio tributário" ao talante do Município que pode se justificar por meio de qualquer razão extrafiscal imaginável. Mas como tudo é relativo nesta vida, até a seletividade poderia ser utilizada como instrumento de desenvolvimento econômico, digamos, se empresas se instalaram em determinado distrito terão alíquotas reduzidas em 90%, quem sabe? Mas creio ser muito difícil.

            Para finalizar consideramos a presente orgia de espécies de alíquotas como um fenômeno plenamente inconstitucional, porque a propriedade imóvel é parte do aspecto estático do patrimônio, não suscetível de revelar a real capacidade econômica atual do contribuinte, é valor imobilizado que uma vez investido torna-se uma base patrimonial cujo valor tende a ser constante, podendo eventualmente sofrer valorizações ou desvalorizações em virtude de fatos alheios à vontade do contribuinte, e, só esta valorização, por si só, já bastaria para tornar o valor do IPTU proibitivo a ponto de fazer com que o contribuinte se desfizesse do seu patrimônio, por ficar o mesmo além de sua capacidade econômica efetiva.

            Que dizer do contribuinte que além de vir a sua obrigação subir com a valorização natural do imóvel, ainda ter que arcar com a sobrevalorização de sua obrigação em virtude da simples valorização virtual do bem, como se tal riqueza nova fosse, de imediato, resgatável na forma de dividendos, na verdade, com tal progressividade fiscal o contribuinte fica pobre duas vezes mais rápido, pois uma coisa é o patrimônio liquido crescer nominalmente, outra é este patrimônio ser convertido em caixa, é como se o Município não estivesse tributando a propriedade, mas, sim, a sua futura transmissão, ou futura renda.

            Pior ainda é a história das alíquotas seletivas em função do lugar e do uso, de um lado é dar uma terceira chibatada em quem tem um imóvel valorizado, pois via de regra o local mais valorizado é o que sofrerá a incidência seletiva, e de outra parte, com absoluta certeza será a atividade produtiva, comercial ou industrial que será agraciada com a seletividade do uso (leia-se: alíquotas maiores), para não dizer de outras hipóteses possíveis que surgirem na imaginação estatal.

            Em síntese, a progressividade fiscal e as seletividades ferem a igualdade e a capacidade contributiva, pois criam discriminações odiosas em função do exercício do direito de propriedade, é quase como se a propriedade fosse um crime ou uma contravenção, no mínimo um ilícito civil, a serem desestimuladas, atrevo-me a lançar a campanha "propriedade faz mal para a saúde financeira: gera imposto".


NOTAS

            01. Não devemos esquecer que a norma jurídica pode apresentar-se na forma consuetudinária mediante práticas reiteradas de atos jurídicos cuja inobservância implicam em sanções jurídicas. Podemos, inclusive, afirmar que esta é a natureza do Poder Constituinte originário em sua essência, pois tal poder em virtude de sua natureza inaugural de uma nova ordem jurídica define-se numa convenção social costumeira de se atribuir a uma Assembléia Nacional Constituinte o Poder Político de dizer o Direito Constitucional, estando o poder jurídico de coagir presente na própria soberania da Assembléia, não esqueçamos que o fenômeno constitucional originário traz em si a força de uma revolução política que suplanta uma ordem precedente para inaugurar novo cosmos normativo.

            02. O Apóstolo Paulo em sua Primeira Carta aos Coríntios, 14, 10-11, assim se refere quanto à linguagem: "No mundo existem não sei quantas espécies de linguagem, e não existe nada sem linguagem. Ora, se eu não conheço a força da linguagem, serei como estrangeiro para aquele que fala, e aquele que fala será um estrangeiro para mim"

            03. Conforme Paulo Barros de Carvalho em sua obra Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 2.ª ed., Saraiva, São Paulo, 1999, p. 32 "Apresentada em notação simbólica, a norma secundária apareceria da seguinte forma: D[(p.-q)® S]. E com o desdobramento de S: (S’ R S’’’), em que p é a ocorrência do fato jurídico; ".", o conectivo conjuntor, -q a conduta descumpridora do dever; "® ", o operador implicacional; e S a sanção, desdobrada em S’, como sujeito ativo (o mesmo da relação da norma primária: R, o relacional deôntico; e S’’’, o Estado-Juiz, perante quem se postula o exercício da coatividade jurídica. A Teoria Geral do Direito refere-se à relação jurídica prevista na norma primária como de índole material, enquanto a estatuída na norma secundária seria de direito formal (na acepção de processual, adjetiva."

            04. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 13. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2000, às páginas 239 e seguintes define em profundidade a teoria da regra-matriz de incidência tributária, mas, é sua obra capital; Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 2.ª ed., Saraiva, São Paulo, 1999, que se faz estudo científico e aprofundado desta verdadeira fórmula geral para a compreensão da norma jurídica, haja vista que o horizonte da teoria da regra-matriz abrange todo o fenômeno normativo e não somente o tributo.

            05. Paulo de Barros Carvalho, Curso..., p. 327.

            06. Paulo Barros de Carvalho, op. cit., p. 36, ensina que: "São normas de conduta, entre outras, as regras-matrizes de incidência dos tributos e todas aquelas atinentes ao cumprimento dos deveres instrumentais ou formais, também chamados de ‘obrigações acessórias’. E são tipicamente regras de estrutura aquelas que outorgam competências, isenções, procedimentos administrativos e judiciais, as que prescrevem pressupostos etc. Entre as normas que estipulam competência, incluamos as regras de imunidade tributária (grifamos)".

            07. O Art. 32 do CTN sugere os critérios definidores da zona urbana a estarem presentes na lei municipal competente, nos seguintes termos:
            "Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município."
            "§ 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público:"
            "I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;"
            "II - abastecimento de água;"
            "III - sistema de esgotos sanitários;"
            "IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar;"
            "V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado."
            "§ 2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior."

            08. Rosita de Sousa Santos, Terras da marinha, Rio de Janeiro : Forense, 1985, p. 61.

            09. Op. cit., p. 79.

            10. Opcit., p. 86.

            11. Opcit., p. 59.

            12. Na mesma medida outro não fora o mandamento do artigo 694, in fine, do Antigo Código Civil, de 1916, que determinava: "A [enfiteuse] dos terrenos de marinha e acrescidos será regulada em lei especial."

            13. Relacionado a esta interessante questão da determinação da Linha Média do Premar de 1831, Paraguassú Éleres, Intervenção territorial federal na Amazônia. – Belém: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 75, diz que "A referência é de natureza altimétrica, contada a partir da Linha de Preamar Médio de 1831 (LPM) havendo, contudo, a hipótese de que seja medida a partir da Linha Média do Preamar Atual (conforme o art. 3o do Decreto-Lei 4.120/1942), o que parece muito mais lógico e praticável para determiná-la topograficamente, no terreno.".

            14. Paraguassú Éleres, op. cit., p. 77-8, ao tratar das alterações legislativas mais recentes sobre a matéria disciplinadora dos terrenos de marinha alude que "com a Medida Provisória 1.657-3/97, de 15 de maio de 1997, depois Lei 9.636, de 15 de maio de 1998, que permite que a União convenie com os Estados, Municípios e até com a iniciativa privada na partilha da administração desses espaços territoriais, podendo haver daí uma participação nas receitas de arrecadação de foros e taxas de ocupação [...] De qualquer forma, ainda que o Estados e Municípios participem da receita de arrecadação e sobre essas áreas possam cobrar IPTU, ainda assim, a jurisdição, o poder de decisão é federal, que pode destinar terras nos perímetros urbanos sem qualquer satisfação aos Governos Municipais[...].".

            15. Aires F. Barreto, Imposto predial e territorial Urbanoin Direito Tributário, coordenador Ives Granda da Silva Martins, 7. ed., Saraiva: São Paulo, 2000, pp. 701 e ss.

            16. Paulo de Barros Carvalho, em seu Curso de Direito Tributário, p. 336 assim perora a respeito da alíquota e sua possível classificação: "[...]as alíquotas podem assumir duas feições: a) um valor monetário fixo, ou variável em função de escalas progressivas da base de cálculo [...]; ou b) uma fração, percentual ou não, da base de cálculo[...]."
            "Aparecendo em forma de fração (b), a alíquota pode ser proporcional invariável (p. ex.: 1/25 da base da cálculo, seja qual for o seu valor monetário); proporcional progressiva (aumentando a base de cálculo, aumenta a proporção) ou proporcional regressiva (aumentando a base, diminui a proporção). Além disso, as alíquotas proporcionais progressivas podem aumentar por degraus ou escalões (caso do nosso IR – pessoa física) ou de maneira contínua e ininterrupta, até o limite máximo que a lei indicar."

            17. A Lei 10.336, de 19 de dezembro de 2001, que instituiu a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool etílico combustível, em seu art. 5o instituiu alíquotas fixas diretamente relacionadas com a quantidade do produto, que veriam entre a alíquota de R$501,10 (quinhentos e um reais e dez centavos) para cada metro cúbico de gasolina até a alíquota de R$25,90 (vinte e cinco reais e noventa centavos) para o querosene.

            18. Werner Nabiça Coelho, IPTU associado à progressividade fiscal resulta em bitributaçãoJus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4102>. Acesso em: 23 jun. 2003.


Bibliografia:

            BARRETO, Aires F.. Imposto predial e territorial Urbanoin Direito Tributário, coordenador Ives Granda da Silva Martins, 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
            BELÉM. Lei Ordinária n.o 7056, de 30 de dezembro de 1977. Diário Oficial do Município de Belém, Poder Executivo, Belém, nº 3732, de 30.12.1977.
            BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, pág. 1, col. 1, anexo, 05/10/1988.
            Brasil. Decreto n. 14.595, de 31 de dezembro de 1920. Coleção de Leis do Brasil 1920, Poder Executivo, Brasília, DF, v. 3, pág. 1441, col. 1, 1920.
            BRASIL. Decreto n. 24.643, de 10 de julho de 1934. Coleção de Leis do Brasil 1934, Poder Executivo, Brasília, DF, v. 4, pág. 679, col. 1, 1934.
            BRASIL. Decreto n. 4.120, de 21 de fevereiro de 1942. Coleção de Leis do Brasil 1942, Poder Executivo, Brasília, DF, v. 1, pág. 225, col. 1, 1942.
            BRASIL. Decreto-Lei n. 9.760, de 05 de setembro de 1946 Diário da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, pág. 12.500, col. 4, 06/09/1946.
            BRASIL. Lei 10.336, de 19 de dezembro de 2001. Diário da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, pág. 2, col. 3, 20/12/2001.
            BRASIL. Lei 9636, de 15 de maio de 1998. Diário da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, pág. 2, col. 2, 18/05/1998.
            BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 Diário da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, pág. 1, col. 1, 11/01/2002.
            BRASIL. Lei Ordinária n.º 10.257, de 10 de julho de 2001. Diário da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, pág. 1, col. 3, 17/07/2001.
            BRASIL. Lei Ordinária n.o 5.172, de 25 de Outubro de 1966, Diário da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, pág. 12452, col. 1, 27/10/1966.
            BRASIL. Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1o de janeiro de 1916. Diário da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, pág. 133, col. 1, 05/01/1916.
            Carvalho, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, 13. ed. ver. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2000.
            __________________________. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 2.ª ed., São Paulo : Saraiva, 1999.
            COELHO, Werner Nabiça. IPTU associado à progressividade fiscal resulta em bitributaçãoJus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4102>. Acesso em: 23 jun. 2003.
            Éleres, Paraguassú. Intervenção territorial federal na Amazônia. – Belém: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 2002.
            Santos, Rosita de Sousa. Terras da marinha, Rio de Janeiro: Forense, 1985


COELHO, Werner Nabiça. IPTU, zona urbana e alíquotas perante o sistema federativo e a emenda constitucional N. 29/2000 . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 118, 30 out. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4388>.

sábado, 4 de junho de 2016

Princípios jurídicos e direito natural: Proposta para fornecer um conteúdo ético à norma fundamental pressuposta

Este texto foi publicado no site Jus Navigandi no endereço https://jus.com.br/artigos/4361


Publicado em . Elaborado em .


SUMÁRIO: Intróito – 1. Que é o direito? – 2. Um breve histórico do direito ocidental – 3. Fato, valor, norma e o direito natural – 4. Crítica à teoria pura do direito – 5. Sintetizando o que já foi dito – 6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de solução – 7. Direito processual e direito material – 8. Que são princípios? – 9. Normas-princípio e normas-limite – 10. Conclusão – Bibliografia.

Resumo: O direito é um fenômeno social e é objeto de estudo de uma ciência cultural, a ciência do direito, d’entre os muitos métodos científicos possíveis vislumbramos a teoria pura do direito, que consideramos adequada como mero instrumento de análise lógica do direito positivo numa perspectiva auto-referente, entretanto, tal postura é insuficiente, pois a auto-referência do texto legal não é uma garantia de que os direitos humanos serão protegidos segundo os valores e ideais que informam a idéia de justiça. Propomos a solução desta insuficiência ética mediante a adoção novos conceitos a respeito de princípios jurídicos estruturados hierarquicamente: princípios, princípios-norma e princípio-limite; tudo com fundamento num conceito físico-bio-racional de direitos humanos, partindo de uma acepção de senso comum a respeito do direito enquanto fenômeno social.

Palavras-chaves: princípios – teoria pura do direito – direito natural – princípios-norma – princípios-limite – norma fundamental pressuposta.


Intróito.

Falemos sobre o direito, e antes de tudo, aviso que sempre me referirei a direito em letra minúscula, e, para realçar, quando me referir ao direito em suas manifestações – de ciência, norma vigente e válida ou filosofia, etc. – simplesmente, acrescentarei o adjetivo adequado, reservando-me a grafar a letra maiúscula somente quando gramaticalmente necessário.

O estudo do direito enquanto ciência apresenta uma perplexidade que mais dia menos dia afeta o seu pesquisador, e, é justamente o fato de que por mais que a atitude do jurista busque uma postura neutral, entretanto, sempre interferem valores, tais valores recebem o nome de princípios que se sobrepõem inclusive sobre o texto constitucional quando a doutrina revela princípios implícitos, como é o caso da segurança jurídica.

O objeto de estudo do direito é o conjunto de normas que vigem em determinado contexto territorial, histórico e social; por que não considerar tais princípios como normas, ? E, mais, tais normas não se reportariam diretamente a princípios primeiros, tais como a vida, a liberdade e a propriedade?

Portanto, os cognominados princípios seriam princípios-norma que se reportariam aos verdadeiros princípios informadores do direito!
Sob esta perspectiva devemos prosseguir na tentativa de melhor fundamentar tal assertiva.


1. Que é o direito?

Direito em acepção comum nos remete à idéia de posse.
Posse é pretensão fundada num título, formal ou informal, real ou imaginário, ou seja, é o produto de uma manifestação de vontade, livre ou vinculada, sobre algo ou alguém, com a finalidade de usar, gozar, dispor ou consumir (PIPES, 2001: 32) o bem possuído, isto é, a idéia de direito é uma idéia de posse e/ou propriedade.

Ora, só há posse de algo se esta pertencer a alguém, e este só poderá vibrar sua pretensão se a mesma for o objeto de desejo de outrem, daí a natureza heterônoma do direito, sua natureza social, enquanto objeto de desejo mimético (GIRARD, 1990), que necessariamente deve ser condicionado por limites axiológicos e objetivos.

Entretanto, o direito como objeto produzido culturalmente jamais deve ser encarado como um instinto social, pois não existe direito na sociedade das abelhas ou numa alcatéia, o direito, além de social é racional, melhor dizendo: é eminentemente racional, é em verdade a racionalização da vida social possibilitadora da convivência baseada no consentimento e na boa-fé recíproca, esta é minha definição de ética a fundamentar a posse legítima de qualquer direito.


2. Um breve histórico do direito ocidental.

De tanto ler sobre sociedades primitivas e/ou arcaicas (GIRARD), sobre a Civilização Clássica (COULANGES, 2001), sobre as luzes medievais (CHESTERTON, 1957) e as trevas modernas (PIPES, 1997), nada é mais fácil de se perceber que quanto mais primaveril uma sociedade mais se pode afirmar que todas as normas sociais (morais, religiosas, de meras condutas sociais ou simplesmente éticas) são eminentemente jurídicas, e jurídicas por mandamento divino, o próprio direito romano, tão celebrado como o fundamento do direito ocidental nada mais era, quando em vigor, que uma série de formalidades rituais originadas na religião arcaica romana, daí a extrema importância dos ritos e da forma para os habitantes do Lácio.

O cristianismo com seus dogmas da divisão entre o Estado e a Igreja e sua ética de amor e perdão, associados aos sábios ensinamentos helenos que demonstram filosoficamente que o direito positivo está submetido à justiça, e, que esta se fundamenta no direito natural, tais tendências preencheram de razão e sensibilidade o duro e frio pragmatismo jurídico do conquistador romano para a formação do direito ocidental, e, com isso, sedimentar o apogeu do direito ocidental, que fundamenta juridicamente àquele fenômeno econômico e social que convencionalmente chamamos de globalização.

Assim do caldo das três culturas fundadoras do mundo ocidental consumou-se após mais de dois milênios de fluxos e refluxos a atual visão do direito como conjunto de normas jurídicas distintas no universo das normas sociais.

O direito é composto de normas sociais cuja nota distintiva é a sanção eficaz em seu grau máximo, ou seja, é a norma imposta pela força se preciso for, enquanto as demais normas sociais quando possuem sanções o são em grau de menor eficácia, pois não se operacionalizam pela imposição mediante o uso da força legítima, pois então seriam jurídicas.


3. Fato, valor, norma e o direito natural.

Logo, para que haja uma norma jurídica basta que a sociedade atribua valor a determinado objeto e o proteja com mecanismos eficazes passíveis de atingir, potencialmente, o grau máximo de violência legítima contra o transgressor dos limites socialmente impostos.
Miguel Reale (1988: 103) em sua assertiva filosófica identifica três dimensões no direito: fato, valor e norma; elementos estruturados dialeticamente, pois fato sem valor jurídico não é subsumível a uma norma, norma é fruto de fatos valorados, e fato associado à norma onde se ausenta a relevância social da conduta é norma em desuso.

O Direito é, portanto, o fenômeno social apreensível quando pretendemos estudar uma sociedade desde suas estruturas de convivência, é o conjunto das leis phisicas de uma sociedade, pois phisis é o mesmo que natureza, ou seja, em outra terminologia podemos dizer que o Direito é o conjunto das leis naturais que possibilitam a vida social.

As leis da phisica social não são as mesmas leis que regem os fenômenos físico-biológicos, aquelas são leis que existem com e sobre estas, as leis naturais que incidem sobre o homem sofrem limitações do meio físico-biológico, mas, possuem face racional e natureza discursiva, cuja existência é relacionada com o contexto cultural e cronológico de dada sociedade (Em oposição às leis físico-biológicas, que são leis sem história e sem contexto, pois a água sempre terá duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio e o ferro sempre pigmentará o sangue de rubro.).

Antes de prosseguir, devo ressaltar que a consciência de um certo condicionamento histórico relativo aos direitos naturais humanos é um fato da vida que não pode ser ignorado, mas, esta percepção não é uma tomada de postura evolucionista em sua versão aplicada às ciências sociais, ou seja, o historicismo, o que percebo é que o contexto histórico e social são fundamentais para que o direito seja aplicado, em maior ou menor grau, conforme as constantes racionais presentes na phisica social, v. g., o direito à vida é uma constante que em diversos momentos e contextos históricos é altivamente ignorada e em outros, como em nossa atual ordem constitucional é elevada à categoria de cláusula pétrea com a vedação de pena de morte (art. 5º, inciso XLVII, alínea ‘a’, da CF), salvo em circunstância bélicas que implicam na suspensão de tal proibição.

Diante deste quadro, pintado em rápidas pinceladas, em que o direito é encarado como realidade histórica condicionada a leis naturais físico-biológicas e racionais, pergunto: que leis naturais e racionais são essas?

Vejamos, quando acima falei num sentido coloquial da palavra direito, e remeti à idéia de posse, quis frisar uma idéia de senso comum, e, ainda com base nesse mesmo sentido comum pergunto-me: qual o direito, ou posse, que pressupõe todos os direitos e posses, sem a qual não se pode cogitar da posse de qualquer outro direito? Qual o direito que encontra o seu fundamento na realidade natural físico-bio-racional?

A vida é ao mesmo tempo a posse que pressupõe todas as posses e o pressuposto ontológico a qualquer posse, é ao mesmo tempo fundamento material e formal para os demais direitos.

De posse da vida postulamos a liberdade, para usufruir uma e outra necessitamos de ao menos duas posses ou propriedades fundamentais: a primeira é posse da própria vida, a segunda é a da liberdade de dispor com livre arbítrio o próprio destino.

Aqui a vida é tomada naquele sentido impresso por Ortega y Gasset (1962: 184), de que a vida implica e é implicada por um cabedal de circunstâncias lógicas e concretas.
Nesta perspectiva todos os direitos são humanos, pois todos estão subordinados à vida, à liberdade e à propriedade, suprima um e farás ruir os demais.

Diante destas verdadeiras leis naturais (vida, liberdade, propriedade) é que a ordem jurídico-positiva inteirinha deve se ajoelhar e reverenciar a idéia de justiça, a idéia de proporção, pois justiça é proporção direta ou inversa, regressiva ou progressiva, o justo é proporção qualitativa e quantitativa, dependendo de que bem jurídico valorado seja material ou intelectual.


4. Crítica à teoria pura do direito.

Quando encaramos o direito como ciência precisamos fazer um corte metodológico que é puramente formal e abstrato, e, se não tomarmos todas as contramedidas que nos impeçam de considerar o conceito científico mais importante que o objeto de estudo, a abstração pela realidade, poderemos incorrer no equívoco de querer dobrar a realidade viva do direito pela idéia etérea da ciência do direito.

O método juspositivista em si é meritório ao isolar o sistema de direito positivo e analisá-lo em suas interações dinâmica e estática, em possibilitar a análise da ordem vigente e eficaz produzida por autoridade competente e processo adequado, metodologia que possui muito valor analítico, mas, em princípio, nenhum valor ético, seria o equivalente a uma cromatografia que simplesmente separa os elementos constituintes do objeto de pesquisa.

O diabo tentador vive justamente nesta última parte, quando o juspositivista se agarra à idéia de processo adequado para a formação da norma, ou seja, que o direito só é inaugurado por um processo de enunciação normativa apropriada, passa-se a tomar a parte pelo todo, e, conseqüentemente, a noção do direito enquanto processo formal acaba suplantando a sua realidade substancial, que é, em certa medida um processo concreto existencial cuja forma de constituição é tão livre quanto as possibilidades de interação social.

O maior vício intelectual produzido pela visão do direito somente como processo de produção positiva de normas, não obstante as vantagens analíticas evidentes, proporcionadas pela postura científica aí inerente, é que a idéia de norma fundamental pressuposta é só uma outra forma de descrever o imperativo categórico kantiano.;

Kant efetivou uma grande trapalhada conceitual que acabou por criar uma falsa distinção entre fundamentos ideais e pragmáticos da conduta humana (CARVALHO, 1998), findou por definir que devemos obedecer a um dever moral "porque sim", e, assim, quando Kelsen (2000: 221) cria a sua hipótese científica nos impinge esta mesma noção, devemos pressupor uma norma fundamental "porque sim", mas, a boa pedagogia ensina que até para crianças em idade pré-escolar não devemos responder "porque sim", pois não é resposta adequada para matar a sede de conhecimento natural ao ser humano quando infante, que dizer para nós que somos quase "doutores".

Portanto, sem negar nem uma vírgula da doutrina kelseniana naquilo que há de mais fundamental como método hipotético-dedutivo fornecedor de instrumental teórico válido para analisar o direito positivo como sistema auto-referente, critico somente o vazio ético inerente à idéia de norma pressuposta fundamental, nosso Kelsen (2000: 242) tanto criticou a idéia de direito natural como se fosse um ato de fé, que não se apercebeu que toda a sua doutrina nada mais é que... um ato de fé; a fé na norma fundamental pressuposta, num imperativo categórico, num "porque... sim" vazio de conteúdo e passível de ser utilizado para qualquer finalidade.

Por mais que seja referida a necessidade de que haja uma escolha política sobre o valor a ser adotado na escolha da finalidade a ser dada ao direito positivo, a doutrina kelseniana acaba por se recolher numa falsa neutralidade ao ignorar sistematicamente valores e fatos subjacentes às normas, para o juspositivismo exagerado a norma é algo vivo e o valor e o fato jazem no limbo do incognoscível da metafísica.


5. Sintetizando o que já foi dito.

O direito é realidade que se origina na matéria da vida social, é o processo que possibilita a própria convivência; em suas origens englobava todas as normas sociais, atualmente, somente aquelas passíveis de uma valoração tal que implique no extremo do uso da força para sua defesa; é fruto de processo histórico condicionado a leis naturais físico-bio-racionais; o princípio fundamental do direito natural é a vida, seguida da liberdade e da propriedade, toda a ordem jurídica compõe-se de variações sobre estes temas que são a síntese dos direitos fundamentais.

Diante desta realidade material da vida, da liberdade e da propriedade, vislumbramos a substância do direito, enquanto que o direito posto, vigente e eficaz diz respeito à forma de garantir a integridade de tais matérias.

A crítica que se faz ao juspositivismo extremado, que se deixa levar pela idéia de que o direito positivo é o único que importa, não diz respeito ao método e ao objetivo do estudo do direito como ciência, mas, diz respeito ao perigo que há em se tornar o processo de garantia dos direitos fundamentais numa forma de supressão destes mesmos direitos fundamentais mediante uma crescente abstração em que as normas mais disparatadas quanto ao conteúdo são consideradas legítimas somente em virtude do atendimento das formas prescritas no processo de produção normativa.

A tendência de abstração do direito é inerente à postura de kelsen, herdada de Kant, de resolver problemas fundamentais da filosofia jurídica com a tosca idéia de imperativos categóricos que só se fundamentam numa afirmação hipotética destituída de valor ou justificativa maior que a necessidade de conferir um ponto de partida científico ao estudo filosófico ou jurídico, é como transferir para o direito o fiat lux divino presente no Gênesis, mas, nem o direito é religião, nem Kelsen foi profeta, logo, a tentativa de fundar a ciência do direito numa hipótese puramente neutra só serve como ato de fé vazio de conteúdo, apesar de a teoria pura do direito ter seu valor metodológico para o estudo analítico e sistemático pretendido pela ciência do direito em vista do direito positivo como sistema auto-referente, o seu tendão de Aquiles está justamente em sua pretendida neutralidade científica.

O direito é uma ciência que estuda a técnica de determinação deôntica que atua sobre fatos sociais de natureza ôntica e penetrados de valores, portanto, as limitações inerentes à neutralidade científica nas análises de fundo kelseniano, e, mesmo os mais formalistas dos juspositivistas, sempre, têm que se socorrer dos valores e raciocínios da axiologia jurídica... porque sim.


6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de solução.

Deve a postura juspositivista ser dosada pela idéia de direito natural.
Somente o direito natural, especificamente partindo da realidade material e inconteste do direito natural à vida.

O direito natural à vida preenche com sucesso o conteúdo ético faltante à noção de norma fundamental pressuposta, pois somente através da existência material da vida se vive o processo existencial do relacionar-se juridicamente.

O direito em seu sentido mais amplo possível é um reflexo da realidade, pois quando a norma jurídica, consuetudinária ou escrita, regula e tutela vida e os seus bens em seus aspectos estático de ser e dinâmico de dever-ser, situações e relações, então podemos identificar o direito material e seu corolário que é o princípio-norma da verdade material.

Quando o direito tutela as relações jurídicas inerentes ao viver individual e suas interações sociais, definindo os mais diversos procedimentos, as mais diversas garantias aos direitos materialmente considerados, quando surgem instrumentos de proteção, prevenção ou reparação então teremos o direito adjetivo, ou processual, que faz surgir o princípio-norma do devido processo legal, surge o direito enquanto garantias e mecanismos efetivos de operacionalização das suas funções preventiva e repressiva de conflitos sociais.

O ideal está em que verdade material se imponha à verdade formal, pois o direito é um dever-ser sobre o ser, produto e não produtor, quando muito indutor.


7. Direito processual e direito material.

Finalmente, esclarecida minha filosofia jurídica, vamos à doutrina científica, já com base na idéia de direito natural acima expendida, só me resta fazer o bom e velho corte metodológico e encarar o direito processual e o direito material pertencentes ao gênero das normas jurídicas, e, dependendo da perspectiva, as normas processuais podem ser encaradas como normas de conduta ou de estrutura (BOBBIO, 1989: 45).

São normas de conduta na medida em indicam os limites objetivos e subjetivos que devem ser atendidos pelos sujeitos passivo e ativo de dada relação jurídica; de estrutura quando informarem a conduta do agente público incumbido de julgar o mérito de dado processo, judicial ou administrativo.

Norma material é a norma de conduta que versa sobre condutas relativos a determinado bem jurídico, material ou intelectual, objeto de atos e fatos jurídicos, sem que seja necessária a instauração de outra relação jurídica em que um terceiro intervenha para solucionar eventual conflito ou sanar ocasional dúvida.

Uma vez que seja necessária a intervenção de um agente público para a solução de pretensões oriundas de uma relação jurídica material, então teremos normas de natureza processual; normas de conduta para as partes integrantes dos pólos em oposição de interesses, mas que vigerão como normas de estrutura para o julgador que produzirá uma novel norma jurídica constituída numa decisão solucionadora da lide, mediante a edição de uma norma individual e concreta que confirmará, infirmará ou afirmará o direito material de um dos contendores ou de partes dos interesses recíprocos em conflito.

Em suma, num linguajar inspirado em Cossio (apud CARVALHO, 1999: 36), afirmo que o direito material é o conteúdo composto de bens jurídicos, presentes na endonorma, que sofre a proteção do direito processual que é a forma de garantir eficazmente aquele mediante a introdução de uma norma criada processualmente, ou seja, a perinorma, suscetível de execução forçada, isto é, de coatividade.


8. Que são princípios?

Partindo da premissa maior de que princípios uma vez fixados, não podem mais "ser questionados por serem auto-evidentes demais", delimitam "o campo da ciência e as possibilidades do seu desenvolvimento futuro", e, "tudo aquilo que forma o princípio fundante de uma ciência não faz parte dela" e que o "desenvolvimento posterior de uma ciência não mudará esses princípios", e, ainda, que "o princípio jamais pode ser impugnado" (CARVALHO, 2002: 21).

Passando pela premissa menor de que o direito à vida é auto-evidente, que sua fruição (liberdade e propriedade) delimitam o campo de suas possibilidades, que o direito à posse da própria vida está para além de qualquer consideração juspositiva legítima tendo em vista que o princípio vital em si não é legislável, e que a sua impugnação é máximo do arbítrio negador do Direito;

Portanto, concluo que princípio mesmo só o direito à vida, princípios derivados imediatamente são os direitos à liberdade e à propriedade, e derivados mediatamente temos normas-princípio e normas-limite; normas-princípio, indicam limites lógicos ao aplicador do direito; e, normas-limite determinam as fronteiras objetivas que devem ser respeitadas pelo jurista.

Diante desta conceituação até admito a terminologia de Paulo César Conrado (2002: 49 e ss.) de princípios constitucionais e infraconstitucionais, lato sensu (limites objetivos) e estricto sensu (sobreprincípios), genéricos e específicos, mas, com um reparo, todos estes princípios ou são normas de conduta ou normas de estrutura, isto é, ou são limites à conduta dos sujeitos de uma relação jurídica ou são normas destinadas a regrar a conduta de um agente competente para produzir normas jurídicas, abstratas e genéricas ou individuais e concretas. princípios, mesmo, só a fazenda, a liberdade, e, claro, sobretudo a vida.


9. Normas-princípio e normas-limite:

O que Conrado chama de sobreprincípio, eu prefiro nominar de normas-princípio, que são normas extraídas expressa ou implicitamente do sistema positivo, racionalmente reveladas da análise estrutural do mesmo sistema.

Tais normas-princípio podem até ter qualidades solares ou de uma lamparina para iluminar a compreensão dos setores normativos (CONRADO, p. 51), salvo a carga poética ou mesmo de fótons, prefiro dar o parecer de que são essencialmente normas de estrutura cuja destinação está em orientar a aplicação do direito, e, aí sim, podem até iluminar as trevas da dúvida diante de um caso concreto, mas nada mais serão que normas com função de princípios, ou princípios com função de normas, normas-princípios, portanto.

Para mim sobreprincípio, ou princípio primeiro, ou simplesmente princípio é o direito fundamental, cuja origem é natural e apreensível pelo puro e simples bom-senso, ou seja, o princípio que deve informar todo os sistema jurídico é a vida, cujas derivações necessárias são a liberdade e a propriedade.

Para a doutrina tradicional, representada por Conrado, são os princípios em sentido estrito, ou sobreprincípios que teriam prevalência hierárquica sobre os princípios delimitadores de limites objetivos cujo caráter interpretativo possui um caráter axiológico. Ocorre que tais princípios, ou como prefiro: normas-princípio; são, quando muito, princípios secundários ou derivados dos princípios pressupostos da vida, liberdade e propriedade.

Em matéria processual, estas normas-princípio são normas de estrutura orientadoras da conduta do julgador e garantidoras dos direitos materiais das partes envolvidas.

Veja-se a norma-princípio do devido processo legal (dues process of law) que se trata de uma norma orientadora de todo e qualquer processo que tanto pode inquinar de ineficácia uma sentença que interprete inadequadamente os dispositivos que garantem a isonomia entre os postulantes do processo, bem como pode servir para invalidar a própria lei que fira um dos princípios específicos do processo, como lei que eventualmente suprima o contraditório e a ampla defesa para desconsiderar administrativamente os atos jurídicos perfeitos sobre os quais incida uma norma tributária, mesmo que tal desconsideração se dê sob a égide de uma suposta repressão à evasão fiscal.

Havendo, ainda, os princípios-limite que Conrado denomina de princípios em sentido amplo que indicam um limite-objetivo de natureza instrumental e técnica.
;
Patenteia-se, portanto, uma hierarquia tripartite de princípios jurídicos: princípios, normas-princípio e normas-limite que sujeitam a interpretação e aplicação estrutural da norma jurídica de conduta incidente nas relações jurídicas.


10. Conclusão.

A grande conclusão a ser tirada é que o fundamento ético necessário à norma fundamental pressuposta de Kelsen é o direito natural fundamental à vida, cuja base físico-bio-racional preenche todos os requisitos para a definição de um princípio científico, definidor do âmbito de interesse e dos limites do estudo.

E, tendo em vista que pretendemos somente iniciar um debate no fecundo âmbito da teoria geral do direito, com especial enfoque no direito tributário, só nos resta concluir postulando que todo o sobredito é uma tentativa teórica de fundamentar a norma-limite da verdade real ou material que se propõe atuar na determinação de limites à sanha arrecadatória do Estado, pois o direito de tributar é mero direito de confiscar conforme o ordenamento legal uma parcela razoável do patrimônio do particular, pessoa física ou jurídica, para sustentar o aparato de serviços públicos destinados a amparar as garantias e direitos individuais e a Ordem Pública que lhe é vinculada.

Em outros termos, o direito de tributar é uma espécie de confisco consentido, cujos recursos são destinados ao financiamento do Estado, cuja finalidade é disponibilizar garantias legais, materiais e processuais, ao patrimônio jurídico do contribuinte, patrimônio este que principia na posse de sua própria vida e na livre disposição da mesma.

A estrutura teórica acima descrita, também, tem o sentido de explicitar o caráter declaratório de toda e qualquer atuação estatal, e, mais especificamente, quando o Estado efetiva um lançamento tributário jamais constituirá uma relação jurídica, somente a declarará, quando muito irá constituir o fundamento jurídico de um título executivo extra-judicial, haja vista que a obrigação tributária é fruto da incidência abstrata da norma, enquanto o crédito é necessariamente um produto da incidência concreta da norma, realizável mediante ato de declaração, a natureza constitutiva será limitada somente ao crédito, e, sua constituição implicará na interrupção do prazo decadencial, quando o lançamento é realizado tempestivamente, e, no início do prazo prescricional, para a propositura da execução fiscal.

Ao nascermos o Estado somente declara que viemos ao mundo com o atributo da vida, a certidão de nascimento é mera norma individual e concreta que serve de pressuposto a outras normas individuais e concretas, como a carteira de identidade, logo, tal qual no lançamento tributário, a vida, e os fatos econômicos da vida, são mero objeto de declaração, numa de constituição, o que o Estado constitui são somente normas, abstratas e gerais ou individuais e concretas.

Quando o Estado se propõe a manipular os conceitos jurídicos a ponto de ignorar o fundo ontológico do direito, mediante a edição de leis que definem e punem supostos abusos de direito, criando ficções jurídicas em que o contribuinte é punido por atuar regular e licitamente conforme o ordenamento jurídico quando efetiva o seu planejamento fiscal, então, preparemo-nos porque tal Estado se esqueceu das garantias e direitos fundamentais do indivíduo, e, no lugar dos direitos humanos de fundo real e concreto baseado na própria vida, pretende instaurar o totalitarismo da supremacia do interesse público fundado na abstração jurídica e formal de uma norma fundamental pressuposta vazia de conteúdo ético.

A norma fundamental pressuposta, mera hipótese científica, quando tomada não como meio, mais como fim, acaba por ser passível de servir à velha promessa messiânica de instauração do paraíso terrestre, projeto que sempre ao ser executado se converte na própria visão do inferno sobre a Terra.


Bibliografia

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico; introdução Tércio Sampaio Ferraz Júnior; tradução Cláudio de Cicco e Maria Celeste C. J. Santos; revisão técnica João Ferreira – Polis: São Paulo; Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1989.

CARVALHO, Olavo de. História essencial da filosofia – aula 1: história das histórias da filosofia. É Realizações: São Paulo, 2002.

____________________. Kant e o primado do problema crítico. Disponível em: <http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/Kant.htm>. Acesso em: 31/07/1998.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 2.ª ed.. Saraiva: São Paulo, 1999.

CHESTERTON, G. K.. São Tomás de Aquino; trad. e notas Antônio Álvaro Dória; 3. ed.. Livraria Cruz: Braga, Portugal, 1957.

CONRADO, Paulo Cezar. Introdução à teoria geral do processo civil. Max Limonad: São Paulo, 2000.

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Editora Martim Claret: São Paulo, 2001.

GIRARD, René. A violencia e o sagrado; trad. Martha Conceição Gambini ; revisão técnica de Assis Carvalho. Editora Universidade Estadual Paulista: São Paulo, 1998.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; 6. ed.. Martins Fontes: São Paulo, 2000.

ORTEGA Y GASSET, José. Que é filosofia?. 1. ed., Ed. Livro Ibero-Americano, Ltda: Rio de Janeiro, 1961.

Pipes, Richard. História concisa da Revolução Russa; tradução de T. Reis. Record: Rio de Janeiro, 1997.

Pipes, Richard. Propriedade & liberdade; tradução de Luis Guilherme B. Chaves e Carlos Humberto Pimental Duarte da Fonseca. Record: Rio de Janeiro, 2001.
Reale, Miguel. Lições preliminares de direito, 16a ed. Saraiva: São Paulo, 1988.








Informações sobre o texto



Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)


COELHO, Werner Nabiça. Princípios jurídicos e direito natural.. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 88, 29 set. 2003. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4361>. Acesso em: 4 jun. 2016.