Girard
define o “mecanismo mimético” de forma ampla no sentido
de incluir o “desejo mimético, a rivalidade mimética, a crise
mimética e a sua resolução pelo bode expiatório” (s/d ,
p. 84), pois a “expressão 'desejo mimético' refere-se
apenas ao desejo que é sugerido por um modelo” ( Loc.
cit.).
O desejo
mimético é classificado como um ente “real”, distinto de
simples apetites, pois estes envolvem necessidades cujo fundamento é
biológico (comida e sexo, v.g.), que não são
necessariamente ligados aos desejos miméticos.
Todavia,
todo apetite é passível de ser contaminado pelo desejo mimético a
partir do momento que exista um modelo, pois “a presença do
modelo é o elemento decisivo na definição do desejo mimético”
( Loc. cit. ).
Se o
desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais
diferença entre instinto, apetite e desejo, por sua vez, em
contraste com a fixidez dos apetites ou instintos, verificamos a
mobilidade do desejo, e esta mobilidade decorre da imitação, pois,
conforme Girard:
Aí reside a grande diferença: todos temos sempre um modelo que imitamos. Só o desejo mimético pode ser livre, ser de fato desejo, pois tem de escolher um modelo. Não compreendemos isso, porque, para tanto, nunca recorremos ao primeiro estágio do desenvolvimento humano. Toda criança tem apetites, instintos e um ambiente cultural no qual aprende imitando. Imitação e aprendizagem são inseparáveis. A rivalidade mimética se evidencia assim que a criança começa a interagir com outras. A criança tem uma relação de mediação externa, isto é, de imitação com os adultos, e uma relação de mediação interna, isto é, de imitação e rivalidade, com seus pares ( Op. cit., p. 85).
O desejo
mimético gera duas possibilidades de mediação com o modelo a ser
imitado, ou o sujeito se encontra no mesmo mundo que o modelo, ou
pertence a outro mundo.
Na
hipótese de imitador e modelo não estarem no mesmo nível, numa
situação em que o modelo é considerado superior e/ou distante como
que numa relação hierárquica, gera-se a mediação externa.
Quando não
podemos possuir o objeto pertencente ao modelo ou por ele desejado,
com isso, um conflito direto entre o sujeito e o seu modelo está
fora de questão, e a mediação externa acaba sendo uma mediação
positiva, pois assume valor pedagógico, por impossibilidade de
conflito direto com o modelo.
Se no
achamos no mesmo mundo que o modelo, não há nenhum distinção
hierárquica por exemplo, então o objeto que ele deseja está ao
nosso alcance e a rivalidade irrompe.
Em
decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a
mediação interna tende a tornar-se mais simétrica, pois
ambas as partes passam a concorrer pelo mesmo objeto.
À
proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu
modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo.
Assim, o
imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo e imitador de
seu imitador.
Em tal
situação os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados e
idênticos em seu conflito crescente.
A crise
mimética é sempre uma crise de indiferenciação que irrompe quando
os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de rivais, e,
assim:
[...]
Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armazenando energia
conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as
direções, porque, uma vez em marcha, o mecanismo mimético só se
torna mais atraente para os observadores: se duas pessoas estão
disputando um mesmo objeto, então deve tratar-se de alguma coisa
pela qual vale a pena lutar, pensam os observadores, a quem tal
objeto fica parecendo mais valioso. O objeto valorizado tende a
provocar mais e mais cobiça, e, ao fazê-lo, a sua atratividade
mimética somente cresce. Enquanto isso acontece, o objeto também
tende a desaparecer, a ser dilacerado e destruído no conflito. Para
que a mimesis se torne puramente antagonística, o objeto precisa
desaparecer. Quando isso ocorre , temos [...] a emergência da crise
mimética, pois quando o objeto desaparece, não há mais mediação
entre os rivais: o conflito é iminente. À medida que mimesis se
converte em antagonismo, a tendência é que ela se torne
acumulativa, passando a envolver vários membros de uma dada
comunidade, até que o processo leve à violência contra o único
antagonista remanescente – o “bode expiatório”. [...] A
importância desse mecanismo reside no fato de direcionar a violência
coletiva contra um único membro da comunidade arbitrariamente
escolhido. Essa última vítima se converte no inimigo comum da
comunidade, que então se reconcilia em virtude da canalização da
violência contra a vítima. ( Op. cit., p. 87-8).
A crise
sacrificial, e seu desenlace, na criação do bode expiatório,
consolida-se em ritos, fenômeno que se encontra enraizado no início
de todas as culturas, em sua fase primitiva.
O rito
atualiza o sacrifício original do bode expiatório, é a violência
sacralizada, transformada em meio de mediação externa a canalizar a
violência coletiva, possibilitando a criação da estabilidade
social necessária para a evolução social. Girard disserta sobre o
rito que:
O rito
equivale a uma escola, repetindo indefinidamente o mecanismo do bode
expiatório com vítimas substitutas. Por corresponder à resolução
de uma crise, o rito intervém sempre nesses momentos críticos e
sempre estará presente quando suceder o mesmo tipo de situação.
[...] (p. 96)
Há
duas maneiras possíveis de ver o rito. A primeira delas, a visão
iluminista, segundo a qual a religião é superstição, esvazia o
rito de significado. A visão alternativa baseia-se no fato de que o
rito pode ser encontrado em toda parte [...] e, da constatação
dessa “onipresença”, conclui-se que deve gerar todas as
instituições culturais. Pesquisando-se cuidadosamente, verifica-se
que todos os grandes espaços públicos são espaços ritualísticos
e têm sua origem no rito [...] (p. 97)
Frisamos
que segundo o modelo de explicação derivado do mecanismo do bode
expiatório , enquanto evento fundador da cultura, precede qualquer
espécie de ordem cultural, inclusive, atuando no princípio sob
“formas de associação não lingüísticas, intermediárias entre
o animal e o humano – se não quisermos dizer próprias do 'homem
antes do surgimento da linguagem'” (GIRARD, s/d, p. 124).
Como vimos
acima, a teoria mimética reconhece o ritual como a forma primária
de resolução de conflitos desde a gênese do acontecer humano,
mediante o estabelecimento do discurso social criador de mediação
externa pacificadora, em contraste com os conflitos gerados pela
mediação interna.
Constatamos
que ao ser aplicada teoria mimética no âmbito do Direito, é
possível classificar o discurso jurídico como uma forma de mediação
externa, que se operacionaliza com base no sofisticado mito da
legalidade.
O mito da
legalidade de forma pragmática estabelece o império da razão pela
adoção de procedimentos criadores de condutas hierarquizantes, cuja
finalidade é suspender o conflito mimético mediante a intervenção
de uma situação comunicativa peculiar.
Ferraz
(1997) compreende por discurso uma “ação lingüística
dirigida a outrem, donde o seu caráter de discussão, em que alguém
fala, alguém ouve e algo é dito” (p. 57).
Uma
situação comunicativa é composta de dois aspectos, externo
e interno, este a estrutura do discurso, aquele, o mundo
circundante.
A
estrutura do discurso cumpre a função de reduzir a complexidade do
meio, mas, o discurso jurídico diferencia-se, mediante a existência
de uma “peculiar situação comunicativa” (p. 58).
Para
Ferraz “a situação comunicativa jurídica se limita
internamente também na forma de regras de atribuição e de
diferenciação de papéis” (p. 59-60), tal diferenciação
motiva a existência de uma estrutura hierárquica no próprio
discurso proferido pelas partes presentes na situação comunicativa,
na qual há o reconhecimento da faculdade de exigir a
informação dentro da situação comunicativa jurídica, o diálogo
se estabelece como regra, pois a legalidade é superior às partes em
conflito, eis a mediação externa.
Com a
exigibilidade formalmente estabelecida como faculdade das
partes as “ações lingüísticas deixam de ser mera expressão
subjetiva dos comunicadores, ganhando, igualmente, as suas reações
uma certa 'coordenação objetiva'” (FERRAZ, p. 60); e, “amplia
a situação comunicativa social, acrescendo-a de mais um
comunicador: o árbitro, o juiz, o legislador, mais genericamente a
norma. A situação comunicativa torna-se assim triádica”
(Idem).
O
princípio da legalidade implica na criação de uma coordenação
objetiva, entre duas expressões subjetivas, com a
finalidade de fazer valer a mediação externa garantida pelo
comunicador, que se encontra como modelo de conduta e que
representa a própria norma dentro da situação
comunicativa triádica assim estabelecida.
A
exigibilidade gera um momento de liberdade dentro da situação
comunicativa lingüística, em que a mentira pode se fazer presente,
durante o debate, como expressão da subjetividade das partes,
implicando numa instabilidade inerente, que deverá ser corrigida
pelo discurso jurídico organizado pela coordenação objetiva
de um agente representante da norma, que serve de modelo
criador de mediação externa capaz de conferir a objetividade
necessária para o estabelecimento da verdade possível, com
fundamento em elementos objetivos ou objetivantes.
Revela-se
a estrutura de uma relação dialógica jurídica “basicamente
como uma discussão-contra” que envolve uma questão típica, o
“conflito” e uma função, também, típica, que é
“possibilitar uma decisão” (p. 62):
O terceiro comunicador é quem garante a seriedade do conflito, fazendo do discurso um discurso racional, aquele em que as questões (no caso, conflitivas) não são fortuitas, mas se acham determinadas pelo dever de prova: elas ocorrem apenas em relação a uma conexão compreensiva já existente, mas que dada a participação peculiar do ouvinte, não mediatiza uma certeza, ao contrário, abre um leque de possibilidades [...].
Um
conflito levado a sério, nesses termos, significa, pois, que nem
tudo pode ser conflito [...].
E, além
disso, significa sua ocorrência temporal, na medida em que, pela
participação do terceiro comunicador, ele é ao mesmo tempo
provisoriamente suspenso e mantido, o que dá tempo
para que seja discutido: entre orador e
ouvinte há, assim, uma distância temporal que lhes permite separar
a emissão da ação lingüística da sua recepção, o que envolve o
estabelecimento de regras temporais em termos de prazos.
(p. 63) (grifos no original)
O Direito
ao ser encarado com base no modelo da teoria mimética cumpre seu
papel ritualizando o conflito, mediante a inserção de um terceiro
comunicador, que pode ser encarado como a própria norma jurídica,
que por sua vez suspenderá a rivalidade entre os contendores,
criando elementos formais (rituais) possibilitadores de uma mediação
externa, com o estabelecimento de prazos e a exigência de
argumentações fundamentadas em provas.
Para que a
exasperação do conflito seja substituída pelo debate ponderado,
superando-se o conflito, pelo estabelecimento de um campo neutro,
cria-se a mediação externa mediante a aceitação da superioridade
do representante da lei, da superioridade da norma.
Neste
sentido: “As normas jurídicas assim terminam conflitos no
sentido de elas os institucionalizam” (FERRAZ, p. 65),
significa dizermos que o mito da legalidade absorve para si o momento
da violência em potencial, e o converte em ritual
institucionalizado.
É a
mediação externa, possibilitada pela superioridade hierárquica e
ritualizada, que convida as partes à reflexão acerca do conflito,
com a devida assistência material do representante sacerdotal da
norma, que se personifica na figura do juiz, do mediador, do
árbitro.
A natureza
reflexiva ao discurso jurídico “na medida em que a
constituição da alternativa em relação a uma norma pode ser de
novo questionada” (FERRAZ, p. 67), em que a norma jurídica
mesma surge como “uma ação lingüística racional, no sentido
de discurso fundamentante” (p. 68), configurando-se o direito
num discurso normativo cuja finalidade é criar a mediação
externa capaz de afastar a violência inerente à ação da mediação
interna criadora da violência mimética.
O ritual
formalizado e estruturado na auto-referência do próprio discurso
jurídico, fundado na metalinguagem que atualiza o mito da
legalidade, mediante crescente processo de racionalização, teórica
e pragmática do discurso, com a finalidade de operar a mediação
externa, necessária para controlar, suprimir ou redirecionar a
violência social mediante a inserção da objetividade da veracidade
probatória em meio ao conflito intersubjetivo, é uma das conquistas
mais profundas e importantes da linguagem para possibilitar a
comunicação humana, linguagem esta, criadora de uma situação
comunicativa triádica que denominamos de Direito.
REFERÊNCIAS
FERRAZ JR., Tercio Sampaio.
Direito, retórica e comunicação: subsídios
para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva,
1997.
GIRARD, René; ROCHA, João
Cezar de Castro; e, ANTONELLO, Pierpaolo. Um longo argumento do
princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e
Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.