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domingo, 19 de junho de 2016

SOBERANIA E MITO DA LEGALIDADE

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Interessa-nos discutir a natureza social (material) do Poder Político e seu desenvolvimento jurídico (formal) no caminho da institucionalização do Estado, razão pela qual trazemos à baila algumas questões candentes levantadas na República de Platão, que suscita questões recorrentes à legitimidade do exercício do Poder.

O Estado surge da manifestação do Poder que transforma uma coletividade em Povo, destacando-se este ser um fenômeno jurídico (MIRANDA, 2000, p. 165).

O Poder Político é o Poder Constituinte que molda o Estado segundo uma idéia, um projeto, um fim de organização, e, que o Estado não existe em si ou por si, efetivando-se em dois aspectos: autoridade e serviço ( Idem , p. 166).

Miranda socorre-se de Gustav Radbruch nos seguintes termos: “é ainda um direito suprapositivo e natural que obriga o Estado a manter-se sujeito às próprias leis. O preceito jurídico que isto determina é o mesmo que serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” ( Idem , p. 169).

Referido Autor destaca que para a sociologia o exercício do poder político pode ser objeto de análise como poder da comunidade estatal , e, como orientador da comunidade sobre a qual se exerce a orientação.

Todavia, em termos jurídicos, tal cisão seria inadmissível, sendo a titularidade do poder da própria comunidade, tendo uma explicação una e trina , una como fonte do poder, e, trina, pois é o Poder que auto-organiza a comunidade , é o substrato do Estado na forma de Pessoa Coletiva e manifesta-se em seus Órgãos e Agentes detentores de parcelas do poder político.

Esclarece que para os efeitos de sua obra é o mesmo falar em Poder Político e em Soberania ( Idem , 173).

Destas colocações deriva nossa grande questão acerca de qual a origem ideológica do fenômeno jurídico que possibilita ao poder unificar o povo; e, ao mesmo tempo, fornecer uma base de valores que obriga a autoridade a servir este mesmo povo; colocada em outros termos: qual a idéia que legitima o poder, e o transforma em objeto de consentimento popular, ao mesmo tempo em que limita o próprio exercício do poder?

Percebemos que as posições adotadas por Miranda ao invés de revelarem uma resposta clara à questão, simplesmente saltam por sobre o problema sem enfrentá-lo, ao definir corte metodológico, consistente na afirmação dogmática da existência de um direito suprapositivo e natural que teria o condão de obrigar o Estado à bem se comportar, mas, ao mesmo tempo, demonstra grande intuição que já principia a resposta que buscamos quando enfatiza ser este o mesmo preceito jurídico que “serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” (MIRANDA, 2000, p. 169).

Consideramos de suma importância contextualizar o nascimento da idéia normativa fundamental do Estado de Direito Democrático que passaremos a denominar de mito da legalidade.

Quais os elementos conformadores do mito em exame?

Qual sua base histórico-social?

Que filosofia o sustenta?

Qual a sua realidade sob uma perspectiva antropológica e qual sua estrutura discursiva que dá a base ritualista do mencionado mito e que o atualiza?

Iniciaremos com o Livro I da República de Platão, na qual Sócrates questiona um próspero ancião de nome Céfalo acerca de “qual foi a maior vantagem que te proporcionou tua fortuna?” (330 d) (PLATÃO, 1976, p. 46), recebendo a resposta de que “a riqueza é de grande vantagem, porém não para todos; apenas para as pessoas equilibradas. Ela é que enseja a possibilidade de deixar a vida sem receio de haver mentido, embora involuntariamente, e de não ter ficado devendo” (331 b) (PLATÃO, 1976, p. 47).

Após, Sócrates questiona Céfalo sobre a inconstância do conceito de justiça, por este consistir apenas em falar a verdade e restituir o recebemos de outrem, quando coloca a seguinte hipótese: “de alguém receber para guardar a arma de um amigo que se encontre são do juízo, e este, depois, com manifesta perturbação de espírito, exigir que lha restitua, todo o mundo concordará que não se deve devolvê-la” (331 c-d) ( Idem , p. 47-8).

No seguimento do diálogo Céfalo é substituído por Polemarco, e, então, surge a célebre citação da máxima de Simônides “dar a cada um o que lhe é devido” (331e) ( Idem , p. 48), descrito como “enigma poético” (332 b) (Idem , p. 49), que vai suscitando diversidade de respostas proferidas por Polemarco, tais quais: “Tudo indica que para ele é justo dar a cada um o que convém” (332 c) ( Idem , p. 49); “Justiça, então, é fazer bem aos amigos e mal aos inimigos?” (332 d); sendo esta última afirmação refutada da seguinte forma: “a justiça é uma espécie de arte de furtar. Naturalmente: para beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos” (334 a) ( Idem , p. 54).

Reforçando sua contestação ao maniqueísmo como fundamento da justiça, Sócrates demonstra o subjetivismo dos conceitos de amigo e inimigo ao questionar Polemarco: “E porventura não se enganam os homens nisso, justamente, parecendo-lhes boa muita gente que não o é, e vice-versa?” (334 c) ( Idem , p. 52), e, após diversas colocações acerca da natureza da ética concernente à pessoa imbuída de justiça, concluí Sócrates que “não é próprio do justo causar dano nem aos amigos nem a quem quer seja, porém do seu contrário, o homem injusto.” (335 d) ( Idem , p. 54).

Neste ponto do diálogo surge o sofista Trasímaco defendendo a tese de que “o justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte” (336 c) ( Idem, p. 56).

Todavia, ao investigar todas as implicações da definição sofística de justiça, Sócrates acaba por inaugurar na filosofia e na ciência política, em nosso entender, a tese de origem popular do poder político quando diz: “é mais do que claro que nenhuma arte ou governo cuida do interesse próprio, porém, conforme há muito demonstramos, providencia e determina o que é de utilidade para o súdito, considerando apenas o interesse dos mais fracos, nunca o dos mais fortes” (346 e) (Idem, p. 69-70).

Assim, podemos identificar a genealogia da afirmação dogmática de Jorge Miranda, no sentido de encarar o Poder Político, manifestado na Soberania, como auto-organizado pela existência de um direito suprapositivo e natural, que como vimos com Platão é um fenômeno de multidão, e, por isso mesmo, tem em seu substrato e fundamento antropológico explicado cientificamente pela teoria do desejo mimético de René Girard.

A teoria do desejo mimético descreve a origem da cultura na superação da violência inerente às relações humanas, mediante a edificação de ritos e mitos criadores de mediação externa, cada vez mais sofisticada, conforme a cultura desenvolve-se, emergindo na construção do mito da legalidade capaz de legitimar o exercício do Poder lho fornecendo uma ritualística jurídica.

A mediação externa mais sofisticada é o rito jurídico, caracterizado por um discurso peculiar, em que o mito da legalidade é personalizado na autoridade que se apresenta como sujeito e objeto da representação mitológica da legalidade, isto é, a autoridade ao prestar seus serviços submete e é submetida pelo discurso alicerçado na força da idéia normativa (Jouvenel, 1978, p. 34-6) de lei, e assim, temos uma base para a descrição da soberania como resultado da racionalização do Poder da multidão de cidadãos mimeticamente vinculados por mitos que estabelecem padrões de mediação externa, que fomentam idéias normativas de justiça consideradas aceitáveis pelo corpo social.

REFERÊNCIAS

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

GIRARD, René. A violência e o sagrado ; trad. Martha Conceição Gambini; revisão técnica de Assis Carvalho. - São Paulo : Editora Universidade Estadual Paulista; 1998.

GIRARD, René;Rocha, João Cezar de Castro; e, Antonello, Pierpaolo. Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.

JOUVENEL, Bertrand de. As origens do estado moderno: uma história das idéias políticas no século XIX. Tradução de Mamede de Souza Freitas. Col. Biblioteca de Cultura Histórica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. t.III. Coimbra: Coimbra, 2000.

PLATÃO, A República. Diálogos, v. VI-VII. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Coleção Amazônia, Série Farias Brito. Belém: UFPA, 1976.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

O MITO DA LEGALIDADE É RAZÃO LIBERTA DO DESEJO!


 

Há quem afirme que a constituição é “a nova morada de Deus(CHAUÍ, apud NADAL, p. 129).

Ao considerarmos a constituição como mito, afirmamos que o próprio princípio da legalidade é um mito, pois simboliza a legalidade em alto grau normativo.

A idéia de constituição torna-se, portanto, um princípio basilar do pensamento jurídico, em seu nível poético, no sentido de fonte criativa de imagens inspiradoras da ação (princípios), ao ser compreendido como norma fundamental, para, em última análise, servir de base de sustentação ao discurso sagrado da legitimidade de uma espécie de religião civil à moda do contrato social iluminista.

A constituição, como símbolo que representa o mito da legalidade, numa perspectiva antropológica girardiana, possui estreita relação com a necessidade humana de prevenção da erupção da violência, e, portanto, é uma condição de possibilidade para a própria existência da vida em sociedade.

A doutrina do Direito Constitucional nos ensina que o Poder Constituinte é fruto de uma Revolução Política, cuja energia seria oriunda do Povo, que tanto pode assumir um caráter de crise violenta e imprevisível, como pode ser pacífica, e criada por meio de uma Assembleia Constituinte, incumbida de fundar uma nova ordem constitucional. 

A linguagem simbólica da ciência política trata o ser humano, vivo, espiritual e carnal, com base em abstrações: "Revolução", "Poder", "Povo" e "Assembleia", que convidam nossa imaginação a vislumbrar panoramas épicos, em que os heróis criam uma sociedade política impessoal e purificada dos males do passado, como se toda mudança política fosse resultado de uma evolução progressiva, para formas mais perfeitas de Estado.

Todavia, por mais mitológica que seja a construção da ideia de lei, tal imagem não é fruto de um processo irracional, pois há uma necessidade humana de estabilidade e segurança, que deve ser atendida, e esta necessidade é suprida pela criação de processos sociais fornecedores de mediação externa nas relações humanas. 

A mediação externa é operada por um terceiro situado simbolicamente acima das partes, superioridade que impõe uma ordem normativa incontestável, esta é a estrutura básica do mito, quando os heróis em conflito são punidos ou agraciados pelos deuses, ordem versus caos, uma vez que a violência é oriunda das mediações internas, em que os contendores estão no mesmo nível de desejo, e são potenciais competidores num processo autodestrutivo de vingança interminável.

Aristóteles renega a irracionalidade da idéia de lei, e, demonstra que o predomínio da emoção será afastado com a aceitação do princípio (mito) da legalidade, nestes termos:


Na verdade, tudo o que a lei parece ser incapaz de resolver, também não pode ser conhecido por um só indivíduo. A lei que formou adequadamente os magistrados, encarrega-os de dividir e resolver “do modo mais eqüitativo possível” as restantes questões. Ademais, concede-lhes o direito de corrigir o que, em resultado da experiência, lhes parece ser melhorável em relação às leis escritas. Assim, exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem; pelo contrário, exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal; o desejo cego é semelhante a um animal e o predomínio da paixão transtorna os que ocupam as magistraturas, mesmo se forem os melhores dos homens. A lei é, pois, a razão liberta do desejo. (ARISTÓTELES, 1998, p. 259) (destaques no original)

A mediação externa significa, pois:

Exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem,

porque, de outra forma, somente restará a danosa mediação interna, para a qual:
exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal,

pois o predomínio do desejo cego implica em conflitos diretos, num processo de mediação interna, que gera um crescendo de atos de violência nas relações interpessoais, até que estoure um crise de vinganças infinitas, a crise mimética.

Quando os participantes de uma relação social são colocados em conflitos de interesses, suas condutas podem ser transtornadas pela paixão.

Para conter o conflito, resultante da mediação interna inerente às partes, que estão emocionalmente envolvidas, deve-se criar uma situação contrabalanceada pela “razão liberta do desejo”, por meio da mediação externa.

A sacralidade da lei é o fundo mitológico-poético sobre a qual se erige a idéia de legalidade, e seus representantes, os agentes da ordem normativa, permite que o virtual conflito da rivalidade mimética encontre um limite objetivo, interposto entre os interesses subjetivos em conflito, mediante a presença um terceiro em posição simbólica superior.

O mito da legalidade, a idéia de que a lei é sagrada, se impõe para ordenar e mediar o fenômeno da universalidade do desejo, e da violência, existentes na presença de mediação interna, inerente aos conflitos de interesses do cotidiano social.

A universalização do mito da constituição, encarado como o símbolo da legalidade em último grau, que serve de princípio ordenador para toda a ordem legal normativa, gera a possibilidade de mediação externa nas relações sociais, estrutura simbólica que torna o exercício das magistraturas um dever sagrado para com a lei, que neste caso é erigida como a representação de Deus, da Razão e do Povo.

Assim sendo, a imaginação humana considera-se liberta da opressão, quando não mais se encontra sob a sujeição do ódio ou do medo, nem a este ou àquele poder pessoal.

O mito da legalidade é, assim, erigido como a base de sustentação da mediação externa, que opera institucionalmente, sobre os conflitos intersubjetivos, pois se estabelece a simbólica da superioridade e racionalidade da lei, e não da vontade pessoal de outrem, o agente da ordem não age em nome próprio, mas em nome da lei.


 

Maximiliano (1961, p. 20) assevera que:
 
O Direito precisa transformar-se em realidade eficiente, no interesse coletivo e também no individual”; sem esquecermos que “[...] toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não se verificarem com esmero, o sentido e alcance das suas prescrições”(MAXIMILIANO, p. 23)

A partir da prévia aceitação do mito da legalidade desenvolve-se os métodos hermenêuticos e interpretativos, pois sem a expressa aceitação deste pressuposto simbólico não é possível desenvolver o discurso poético fundador da ordem legal.


 

A poética do discurso sacraliza a idéia de constituição, que será o fundamento para estabelecer padrões (mediação externa) para os diversos discursos retóricos (mediação interna).

As retóricas, quando alicerçadas na ordem legal, são operadas pelas partes em conflito, passam a ser mediadas pela superioridade da "vontade da lei" ou "vontade dos legisladores", quando as retóricas não apelam para a superioridade lei, descambam para soluções violentas "fora da lei".

Quando o mito da legalidade está sedimentado socialmente, a legitimidade da ordem social daí decorrente é a condição suscetível de racionalizar o debate necessário ao discurso dialético interpessoal.

A aceitação de um referente externo e objetivo, criador de uma mediação externa a ser dirigida pela autoridade competente, eleita pela ordem legal como mediador, permite a criação do momento decisório típico da linguagem jurídica.

Este momento decisório, com base no princípio da legalidade, implica na dialética do devido processo legal, que se conclui na lógica da decisão jurídica.

Em suma, para que os quatro discursos humanos, interligados no fenômeno comunicacional (Olavo de Carvalho, 1996), sejam operados de forma eficiente pelo cidadão, pelo jurista e pelo político, estes devem sempre afirmar e reafirmar sua fé no mito da legalidade, ao aceitar a prevalência simbólica de seu livro sagrado: a constituição.



REFERÊNCIAS



ARISTÓTELES. Política . Edição bilíngüe. Lisboa: Vega, 1998.



CARVALHO, Olavo de, Aristóteles em nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos.Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.



MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito . 7ed., São Paulo: Freitas Bastos, 1961.



NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da constituição. São Paulo: Método, 2006.

MITO, ESTRUTURALISMO E CONSTITUIÇÃO







Fábio Nadal (2006), ao apreciar a natureza simbólica do Direito, afirma a concepção mitológica da constituição, vejamos:
[...] mito como estrutura que não se submete a nenhuma regra lógica ou continuidade [...] (p. 89)

[...] a legitimidade de uma Constituição baseie-se em uma crença ou em um conjunto de crenças (base irracional – a “fé na Constituição”) que propicia o urdimento do sistema normativo (base racional), de acordo com um discurso competente (ideológico) com a finalidade (telos) de alcançar e manter sua funcionalidade (simbólica, dominação, regulação e integração). A Constituição, de qualquer sorte, é, na síntese feliz de Marilena Chauí, “a nova morada de Deus” (p. 129).
Adota-se o marco teórico estruturalista, que implica na admissão de uma visão irracional do mito em matéria constitucional, que, contraditoriamente, será a fonte de um sistema normativo de base racional.

A pura e simples declaração numa crença ou fé não deve prosperar em matéria constitucional, face à necessária racionalidade do sistema normativo, que é teleológico por natureza.

A proposta explicativa de Nadal deve ser impugnada em sua validade ontológica, por ser um mero abstracionismo cartesiano, um experimento mental sem base no real, porque estruturalista, fundado num “dever ser ideal” (NADAL, p. 91) que se contenta em não investigar a fundo o porquê da ambigüidade do mito, como um dado universal, que responde à questão levantada por Lévi-Strauss:
Reconheçamos que o estudo dos mitos nos conduz a constatações contraditórias [...] se o conteúdo do mito é inteiramente contigente, como explicar que, de uma extremidade à outra da Terra, os mitos se assemelham de tal forma? É necessário tomar consciência desta antinomia fundamental, que decorre da natureza do mito, se esperamos resolvê-la. (Apud NADAL, p. 88)
Há uma necessidade humana de contenção da violência, sim, o elemento objetivo e real decisivo que unifica todos os mitos.

O mito é a primeira ferramenta conceitual que possibilitou a racionalização da realidade paradoxal da violência, que só pode ser contida por outra violência.

Para as sociedades, em suas origens segundo a ótica de René Girard, a violência é a manifestação do sagrado, pois, ao mesmo tempo em que é maléfica quando emerge do desejo mimético, criador de rivalidades sem fim que destroem todas as diferenças; ao mesmo tempo, é capaz de ser o meio de se solucionar o paroxismo da vingança interminável, quando a coletividade cria o bode expiatório, que passará a simbolizar o herói, o deus, o salvador nos ritos e nos mitos, instituídos, após o sacrifício primário, que passa a ser ritualmente revivido para conter a violência, ao representar na forma de ritual, este torna-se o primeiro método da primeira ciência, que busca reproduzir a eficácia da primeira vez em que violência sagrada foi experimentada.

Ao contrário da tese defendida por Nadal, a linguagem do mito não é antinômica por natureza, nem irracional em sua essência, mas representa o primeiro esforço normativo de contenção da violência humana, fruto do rito sacrificial, que se propõe a ser a repetição do ato que conteve a crise mimética, o assassinato fundador do bode expiatório, em que um é sacrificado para que todos possam continuar vivendo, mas, percebamos, isto é um dado necessário em eras primevas e arcaicas, e que serve de parâmetro para a percepção que a constituição é um mito fundador da ideia de Direito, e que esta estrutura de pensamento é uma barreira à violência desmedida. 
 
REFERÊNCIAS

GIRARD, René. A violência e o sagrado ; trad. Martha Conceição Gambini; revisão técnica de Assis Carvalho. - São Paulo : Editora Universidade Estadual Paulista; 1998.

NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da constituição. São Paulo: Método, 2006.