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quinta-feira, 28 de abril de 2016

O discurso jurídico é um ritual: teoria mimética e linguagem jurídica, a possibilidade da mediação externa

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Girard define o “mecanismo mimético” de forma ampla no sentido de incluir o “desejo mimético, a rivalidade mimética, a crise mimética e a sua resolução pelo bode expiatório” (s/d , p. 84), pois a “expressão 'desejo mimético' refere-se apenas ao desejo que é sugerido por um modelo” ( Loc. cit.).
O desejo mimético é classificado como um ente “real”, distinto de simples apetites, pois estes envolvem necessidades cujo fundamento é biológico (comida e sexo, v.g.), que não são necessariamente ligados aos desejos miméticos.
Todavia, todo apetite é passível de ser contaminado pelo desejo mimético a partir do momento que exista um modelo, pois “a presença do modelo é o elemento decisivo na definição do desejo mimético” ( Loc. cit. ).
Se o desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais diferença entre instinto, apetite e desejo, por sua vez, em contraste com a fixidez dos apetites ou instintos, verificamos a mobilidade do desejo, e esta mobilidade decorre da imitação, pois, conforme Girard:

Aí reside a grande diferença: todos temos sempre um modelo que imitamos. Só o desejo mimético pode ser livre, ser de fato desejo, pois tem de escolher um modelo. Não compreendemos isso, porque, para tanto, nunca recorremos ao primeiro estágio do desenvolvimento humano. Toda criança tem apetites, instintos e um ambiente cultural no qual aprende imitando. Imitação e aprendizagem são inseparáveis. A rivalidade mimética se evidencia assim que a criança começa a interagir com outras. A criança tem uma relação de mediação externa, isto é, de imitação com os adultos, e uma relação de mediação interna, isto é, de imitação e rivalidade, com seus pares ( Op. cit., p. 85).
O desejo mimético gera duas possibilidades de mediação com o modelo a ser imitado, ou o sujeito se encontra no mesmo mundo que o modelo, ou pertence a outro mundo.
Na hipótese de imitador e modelo não estarem no mesmo nível, numa situação em que o modelo é considerado superior e/ou distante como que numa relação hierárquica, gera-se a mediação externa.
Quando não podemos possuir o objeto pertencente ao modelo ou por ele desejado, com isso, um conflito direto entre o sujeito e o seu modelo está fora de questão, e a mediação externa acaba sendo uma mediação positiva, pois assume valor pedagógico, por impossibilidade de conflito direto com o modelo.
Se no achamos no mesmo mundo que o modelo, não há nenhum distinção hierárquica por exemplo, então o objeto que ele deseja está ao nosso alcance e a rivalidade irrompe.
Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simétrica, pois ambas as partes passam a concorrer pelo mesmo objeto.
À proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo.
Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo e imitador de seu imitador.
Em tal situação os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados e idênticos em seu conflito crescente.
A crise mimética é sempre uma crise de indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de rivais, e, assim:
[...] Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armazenando energia conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as direções, porque, uma vez em marcha, o mecanismo mimético só se torna mais atraente para os observadores: se duas pessoas estão disputando um mesmo objeto, então deve tratar-se de alguma coisa pela qual vale a pena lutar, pensam os observadores, a quem tal objeto fica parecendo mais valioso. O objeto valorizado tende a provocar mais e mais cobiça, e, ao fazê-lo, a sua atratividade mimética somente cresce. Enquanto isso acontece, o objeto também tende a desaparecer, a ser dilacerado e destruído no conflito. Para que a mimesis se torne puramente antagonística, o objeto precisa desaparecer. Quando isso ocorre , temos [...] a emergência da crise mimética, pois quando o objeto desaparece, não há mais mediação entre os rivais: o conflito é iminente. À medida que mimesis se converte em antagonismo, a tendência é que ela se torne acumulativa, passando a envolver vários membros de uma dada comunidade, até que o processo leve à violência contra o único antagonista remanescente – o “bode expiatório”. [...] A importância desse mecanismo reside no fato de direcionar a violência coletiva contra um único membro da comunidade arbitrariamente escolhido. Essa última vítima se converte no inimigo comum da comunidade, que então se reconcilia em virtude da canalização da violência contra a vítima. ( Op. cit., p. 87-8).
A crise sacrificial, e seu desenlace, na criação do bode expiatório, consolida-se em ritos, fenômeno que se encontra enraizado no início de todas as culturas, em sua fase primitiva.
O rito atualiza o sacrifício original do bode expiatório, é a violência sacralizada, transformada em meio de mediação externa a canalizar a violência coletiva, possibilitando a criação da estabilidade social necessária para a evolução social. Girard disserta sobre o rito que:
O rito equivale a uma escola, repetindo indefinidamente o mecanismo do bode expiatório com vítimas substitutas. Por corresponder à resolução de uma crise, o rito intervém sempre nesses momentos críticos e sempre estará presente quando suceder o mesmo tipo de situação. [...] (p. 96)
Há duas maneiras possíveis de ver o rito. A primeira delas, a visão iluminista, segundo a qual a religião é superstição, esvazia o rito de significado. A visão alternativa baseia-se no fato de que o rito pode ser encontrado em toda parte [...] e, da constatação dessa “onipresença”, conclui-se que deve gerar todas as instituições culturais. Pesquisando-se cuidadosamente, verifica-se que todos os grandes espaços públicos são espaços ritualísticos e têm sua origem no rito [...] (p. 97)
Frisamos que segundo o modelo de explicação derivado do mecanismo do bode expiatório , enquanto evento fundador da cultura, precede qualquer espécie de ordem cultural, inclusive, atuando no princípio sob “formas de associação não lingüísticas, intermediárias entre o animal e o humano – se não quisermos dizer próprias do 'homem antes do surgimento da linguagem'” (GIRARD, s/d, p. 124).
Como vimos acima, a teoria mimética reconhece o ritual como a forma primária de resolução de conflitos desde a gênese do acontecer humano, mediante o estabelecimento do discurso social criador de mediação externa pacificadora, em contraste com os conflitos gerados pela mediação interna.
Constatamos que ao ser aplicada teoria mimética no âmbito do Direito, é possível classificar o discurso jurídico como uma forma de mediação externa, que se operacionaliza com base no sofisticado mito da legalidade.
O mito da legalidade de forma pragmática estabelece o império da razão pela adoção de procedimentos criadores de condutas hierarquizantes, cuja finalidade é suspender o conflito mimético mediante a intervenção de uma situação comunicativa peculiar.
Ferraz (1997) compreende por discurso uma “ação lingüística dirigida a outrem, donde o seu caráter de discussão, em que alguém fala, alguém ouve e algo é dito” (p. 57).
Uma situação comunicativa é composta de dois aspectos, externo e interno, este a estrutura do discurso, aquele, o mundo circundante.
A estrutura do discurso cumpre a função de reduzir a complexidade do meio, mas, o discurso jurídico diferencia-se, mediante a existência de uma “peculiar situação comunicativa” (p. 58).
Para Ferraz “a situação comunicativa jurídica se limita internamente também na forma de regras de atribuição e de diferenciação de papéis” (p. 59-60), tal diferenciação motiva a existência de uma estrutura hierárquica no próprio discurso proferido pelas partes presentes na situação comunicativa, na qual há o reconhecimento da faculdade de exigir a informação dentro da situação comunicativa jurídica, o diálogo se estabelece como regra, pois a legalidade é superior às partes em conflito, eis a mediação externa.
Com a exigibilidade formalmente estabelecida como faculdade das partes as “ações lingüísticas deixam de ser mera expressão subjetiva dos comunicadores, ganhando, igualmente, as suas reações uma certa 'coordenação objetiva'” (FERRAZ, p. 60); e, “amplia a situação comunicativa social, acrescendo-a de mais um comunicador: o árbitro, o juiz, o legislador, mais genericamente a norma. A situação comunicativa torna-se assim triádica” (Idem).
O princípio da legalidade implica na criação de uma coordenação objetiva, entre duas expressões subjetivas, com a finalidade de fazer valer a mediação externa garantida pelo comunicador, que se encontra como modelo de conduta e que representa a própria norma dentro da situação comunicativa triádica assim estabelecida.
A exigibilidade gera um momento de liberdade dentro da situação comunicativa lingüística, em que a mentira pode se fazer presente, durante o debate, como expressão da subjetividade das partes, implicando numa instabilidade inerente, que deverá ser corrigida pelo discurso jurídico organizado pela coordenação objetiva de um agente representante da norma, que serve de modelo criador de mediação externa capaz de conferir a objetividade necessária para o estabelecimento da verdade possível, com fundamento em elementos objetivos ou objetivantes.
Revela-se a estrutura de uma relação dialógica jurídicabasicamente como uma discussão-contra” que envolve uma questão típica, o “conflito” e uma função, também, típica, que é “possibilitar uma decisão” (p. 62):

O terceiro comunicador é quem garante a seriedade do conflito, fazendo do discurso um discurso racional, aquele em que as questões (no caso, conflitivas) não são fortuitas, mas se acham determinadas pelo dever de prova: elas ocorrem apenas em relação a uma conexão compreensiva já existente, mas que dada a participação peculiar do ouvinte, não mediatiza uma certeza, ao contrário, abre um leque de possibilidades [...].
Um conflito levado a sério, nesses termos, significa, pois, que nem tudo pode ser conflito [...].
E, além disso, significa sua ocorrência temporal, na medida em que, pela participação do terceiro comunicador, ele é ao mesmo tempo provisoriamente suspenso e mantido, o que dá tempo para que seja discutido: entre orador e ouvinte há, assim, uma distância temporal que lhes permite separar a emissão da ação lingüística da sua recepção, o que envolve o estabelecimento de regras temporais em termos de prazos. (p. 63) (grifos no original)
O Direito ao ser encarado com base no modelo da teoria mimética cumpre seu papel ritualizando o conflito, mediante a inserção de um terceiro comunicador, que pode ser encarado como a própria norma jurídica, que por sua vez suspenderá a rivalidade entre os contendores, criando elementos formais (rituais) possibilitadores de uma mediação externa, com o estabelecimento de prazos e a exigência de argumentações fundamentadas em provas.
Para que a exasperação do conflito seja substituída pelo debate ponderado, superando-se o conflito, pelo estabelecimento de um campo neutro, cria-se a mediação externa mediante a aceitação da superioridade do representante da lei, da superioridade da norma.
Neste sentido: “As normas jurídicas assim terminam conflitos no sentido de elas os institucionalizam” (FERRAZ, p. 65), significa dizermos que o mito da legalidade absorve para si o momento da violência em potencial, e o converte em ritual institucionalizado.
É a mediação externa, possibilitada pela superioridade hierárquica e ritualizada, que convida as partes à reflexão acerca do conflito, com a devida assistência material do representante sacerdotal da norma, que se personifica na figura do juiz, do mediador, do árbitro.
A natureza reflexiva ao discurso jurídico “na medida em que a constituição da alternativa em relação a uma norma pode ser de novo questionada” (FERRAZ, p. 67), em que a norma jurídica mesma surge como “uma ação lingüística racional, no sentido de discurso fundamentante” (p. 68), configurando-se o direito num discurso normativo cuja finalidade é criar a mediação externa capaz de afastar a violência inerente à ação da mediação interna criadora da violência mimética.
O ritual formalizado e estruturado na auto-referência do próprio discurso jurídico, fundado na metalinguagem que atualiza o mito da legalidade, mediante crescente processo de racionalização, teórica e pragmática do discurso, com a finalidade de operar a mediação externa, necessária para controlar, suprimir ou redirecionar a violência social mediante a inserção da objetividade da veracidade probatória em meio ao conflito intersubjetivo, é uma das conquistas mais profundas e importantes da linguagem para possibilitar a comunicação humana, linguagem esta, criadora de uma situação comunicativa triádica  que denominamos de Direito.
REFERÊNCIAS
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
GIRARD, René; ROCHA, João Cezar de Castro; e, ANTONELLO, Pierpaolo. Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.