Em suas Reflexões autobiográficas Eric Voegelin disserta a respeito do problema dos estudos comparados, como elemento "fundamental a aquisição de um ampla gama de conhecimentos", que promove "O necessário alcance empírico do conhecimento" que "é a base de toda a qualquer ciência social digna de nome" (p. 35), e, exemplifica o processo de construção de tal metodologia com as obras Declínio do Ocidente, de Oswald Spengler e História da Antiguidade, de Eduard Meyer, e destaca a importância de Toynbee.
Voegelin em 1922-1923 assistiu às aulas do curso de história da Grécia de Eduard Meyer, e julgo interessante transcrever a descrição de tais aulas:
"Entrava na sala - uma figura esguia, levemente curvada por conta da idade, cabelos emaranhados - , subia, posicionava-se no atril, ajeitava os braços, cerrava os olhos, e então falava por uma hora inteira, sem interrupções, em linguagem impecável, jamais cometendo um erro gramatical ou estilístico e não se confundindo em uma única sentença. Quando o sinal tocava, concluía a palestra, abria os olhos e se retirava. [...] tratava as situações históricas do ponto de vista dos homens engajados na ação. [...] Gosto de acreditar que a técnica de Meyer de compreender uma situação histórica pela forma como os indivíduos nela enredados a pensavam foi incorporada ao meu trabalho como um fator permanente " (p. 36).
Destaca, também, a influência de Alfred Weber, cujo curso de sociologia da cultura frequentou em 1929, como outro exemplo de prática de estudos comparados.
Voegelin frequentou o grupo cultural criado pelo poeta simbolista Stefan George, mas, o ponto mais importante está no que é dito de Karl Kraus "que nos dava a todos uma compreensão crítica da política e, especialmente, do papel da imprensa na desintegração das sociedades alemã e austríaca, preparando o terreno para o nacional-socialismo" (p. 38).
A nota de rodapé nº 2 (p. 38-9) faz uma séria de considerações a respeito da influência do humor sarcástico e ríspido de Voegelin, como uma herança dos escritos de Karl Kraus (1874-1936), que era:
"Satirista na melhor tradição de Jonathan Swift, Kraus foi o editor e praticamente o único jornalista da publicação independente Die Fackel. Seus ensaios e aforismo denunciavam a hipocrisia da sociedade vienense e entre eles podemos encontrar pérolas deste tipo: "Como o mundo é comandado e como começam as guerras? Os diplomatas contam mentiras aos jornalistas e então acreditam no que lêem", ou "Meu inconsciente sabe mais sobre a consciência do psicólogo do que a consciência dele sabe sobre o meu inconsciente", uma alfinetada certeira em Freud, Kraus também podia ser extramamente brutal: "A estupidez é uma força fundamental e nenhum terremoto pode combatê-la" - uma opinião compartilhada por Voegelin em sua análise do ambiente intelectual alemão em Hitler e os alemães, em que Kraus é citado como um dos modelos de retidão moral que previram a loucura que seria o nazismo. Foram publicados em língua portuguesa os seguintes livros de sua autoria: Ditos e feitos (São Paulo, Brasiliense, 1988) e Os últimos dias da humanidade (Lisboa, Antígona, 2001), uma peça teatral que tem treze horas de duração [em seguida há uma referência a Eugen Rosenstock-Huessy, que julgo muito interessante mas que remeto para uma leitura na própria obra]."
Voegelin relata que a obra de Stefan George "deve ser entendida no contexto da espantosa destruição da língua alemã durante o período imperial, depois de 1970" (p. 39), e, aqui confesso que foi a primeira vez que ouvi falar nisso.
Pois bem, Stefan George se propunha:
"Resgatar a linguagem significava recuperar o objeto a ser por ela expresso, o que, por sua vez, significava sair do que hoje se chamaria a falsa consciência da burguesia ordinária (aí incluindo os positivistas e marxistas), cujos representantes literários eram as vozes dominantes no meio cultural. Daí que essa preocupação com a linguagem fizesse parte da resistência contra as ideologias. As ideologias destroem a linguagem, uma vez que, tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideólogo passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela. Transpor esse simulacro de linguagem e restaurar a realidade por meio da restauração da linguagem era o trabalho não só de Karl Kraus, mas também o de Stefan George e dos que integravam seu círculo na época" (p. 39).
Voegelin refere que naquele tempo vigorava um "linguajar insultuoso típico da oclocracia" (p. 40), ou seja, a típica linguagem utilizada pelo governo da multidão, e, afirma que "é impossível empreender um estudo sério do nacional-socialismo sem recorrer a Dritte Walpurgisnachit e aos anos de crítica de Die Fackel, pois é aí que se evidencia a miséria intelectual que tornou possível a ascensão de Hitler" (idem).
Por fim, Voegelin afirma que o fenômeno de Hitler fundou-se no "quadro geral de uma sociedade arruinada intelectual ou moralmente" , em que "marginais podem ascender ao poder público por representarem formidavelmente o povo", e, o mais importante, é que a "destruição interna" da Alemanha não terminou com o fim da guerra "mas continua até hoje", e "não é possível entrever seu fim, de sorte que consequências surpreendentes são possíveis" (p. 41), talvez aí esteja uma das possíveis explicações para a atual política de acolhimento de refugiados por parte do governo alemão.
Há, em seguida, uma bela defesa da ciência do direito fundada na hierarquia da norma fundamental, e uma crítica à metodologia neokantiana de desvirtua ideologicamente o processo científico.
Voegelin define que Hans Kelsen contribuiu de forma fundamental para a ciência com "a aplicação de uma análise lógica a um sistema jurídico. Essa análise do sistema feita por Kelsen, que culmina em seu conceito de Grundnorm (norma fundamental)" (p. 43).
Afirma que esta contribuição ainda é "o núcleo de qualquer teoria analítica do direitos" e enfatiza que nunca divergiu de Kelsen "quanto à validade fundamental da Teoria Pura do Direito" (p. 43-4).
Por outro lado, afirma que suas divergências são sobre aspectos ideológicos "que se sobrepõem à lógica do próprio sistema jurídico sem, no entanto, comprometer sua validade" (p. 44).
Tratava-se da ideologia da metodologia neokantiana "que definia cada ciência com base em seu respectivo método de investigação - e, neste caso, o método era a lógica do sistema jurídico" (p. 44).
Voegelin relata que "de acordo, com a terminologia da época, a área de Kelsen representava como professor era a Staatslehre [teoria política]" (p. 44), a teoria política tinha que se transformar em Rechtslehre [teoria jurídica], e, uma vez feito o corte metodológico, a ciência do direito não mais poderia tratar nem da política, nem da história, nem da filosofia, o objeto desta ciência passaria a ser somente o sistema normativo, ou seja, propunha-se um aprofundamento do estudo especializado (1).
Na sequência Voegelin faz uma síntese das duas principais escolas neokantianas, a Marburger Schule, de Hermann Cohen, que era representada por Kelsen, que interpretava a Crítica da Razão Prática, de Kant com base na "constituição da ciência pelas categorias de tempo, espaço e substância - ciência significando a física newtoniana tal como Kant a entendia. Esse padrão de constituição de uma ciência a partir das categorias aplicadas a um conjunto de fontes foi o modelo usado na construção da Teoria Pura do Direito. O que não coubesse nas categorias da Normlogik não mais poderia ser considerado ciência" (p. 45-6).
A outra escola neokantiana era denominada Escola Alemã do Sudoeste, de Windelband e Rickert:
"[...] para quem o objeto das ciências históricas era constituída por "valores". Essa vertente metodológica remonta à década de 1870, quando o teólogo Albrecht Ritschl fez, pela primeira vez, a distinção entre [...] [ciências de fatos] e [...] [ciências de valores]. Os termos escolhidos revelam que a origem do problema está no antigo predomínio das ciências naturais como modelo da ciência em geral. Contra o prestígio das ciências naturais, os pobres teólogos, historiadores e cientistas sociais incipientes precisavam deixar claro que seus campos de estudo também eram, afinal de contas, científicos" (p. 46).
Voegelin, com sua fina ironia, relata que foi assim que se inventaram os "valores" (p. 46), e explica que no "entender de Rickert, os valores são forças culturais cuja existência está acima de qualquer suspeita, tais como o Estado, a arte e a religião" (idem).
A crítica de Voegelin a tal "técnica de reconstituição das ciência sociais e históricas pelo "wertbeziehende Methode" (isto é, por referência a um valor) padecia de grave insuficiência por não perceber que os valores são símbolos altamente complexos, condicionados por seu significado na "cultura" estabelecida da sociedade liberal ocidental", e que "os valores precisavam ser aceitos. E que fazer se alguém os rejeitasse, como faziam certos ideólogos que desejavam fundar uma ciência relacionando as fontes já não mais ao valor do Estado, mas ao valor de sua destruição?" (p. 46).
Então, evidencia-se que a ideologia neokantiana pode tanto aplicar corte metodológico, em que a hipótese de estudo é mais importante que o próprio objeto, ou eleger arbitrariamente um objeto, de forma discricionária, cujos referenciais passam a ser palavras ou sentimentos, que poderiam ser valorados como fundamentos da própria cultura, não como seus produtos.
Fonte:
Eric Voegelin, Reflexões autobiográficas, São Paulo, É Realizações, 2007.
Eliz Sandoz, na introdução às Reflexões autobiográficas, diz que Eric Voegelin nesta obra possui a virtude de nos fazer participar da concretude de sua experiência pessoal, e que este filósofo serve-nos de guia no caminho para fora da "confusão do colapso das instituições, do embotamento intelectual e da corrupção pessoal" (p. 14).
Voegelin buscou "recuperar a realidade em um mundo dominado por segundas realidades, sem falar em realidades virtuais" (p. 15), e, neste ponto, Sandoz destaca o conflito entre a percepção da realidade empírica e as percepções ideológicas e metastáticas, pelo que extraímos algumas definições da obra Israel e a revelação a respeito do assunto:
"A fé metastática é uma das grandes fontes de desordem, se não a principal, no mundo contemporâneo; e é uma questão de vida ou morte para todos nós compreender o fenômeno e encontrar remédios para combatê-lo antes que ele nos destrua"
"A ideologia é a existência em rebelião contra Deus e o homem. É a violação do primeiro e do décimo mandamentos, se quisermos empregar a linguagem da ordem israelita, é a nosos, a doença do espírito, empregando a linguagem de Ésquilo e Platão. A filosofia é o amor ao ser por meio do amor ao Ser divino como a fonte de sua ordem. O Logos do ser é o objeto próprio da investigação filosófica, e a busca da verdade concernente à ordem não pode ser conduzida sem um diagnóstico dos modos de existência na inverdade" (Eric Voegelin, Israel e a revelação, 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2014, p. 31-2)
Se bem que ainda não consegui distinguir a noção de segundas realidades (ideologia?) e realidades virtuais (fé metastática?), este ponto merece alguma pesquisa complementar.
Cronologicamente, o capitulo dois precede o primeiro, pois relata a experiência de Voegelin no ensino médio, seu domínio da matemática, favorecido pelo ensino de seu professor Philip Freud, ao ponto de, já naquela tenra idade, compreender a teoria da relatividade, como ele mesmo relata, e, inclusive, referido docente chamou a atenção para:
"o fato de que, de acordo com a nova teoria dos átomos, quando você serra um pedaço de madeira, está separando estruturas atômicas. A possibilidade de separar estruturas atômicas cm uma serra de mão era para ele a coisa mais intrigante de toda a estrutura da realidade física, Freud vira ali o problema da redução e da autonomia dos vários estratos da realidade do ser." (2007, p. 28)
Voegelin, ainda a propósito do tema da "estratificação da realidade", rememora que, num teste de química, ignorava que o ácido cítrico poderia ser obtido espremendo-se limões, mas, cuja composição conhecia teoricamente, e, por conta disso, tirou nota baixa.
Ainda no ensino médio, Voegelin relata como passou um semestre estudando Hamlet, com base nas teorias de psicológicas de Alfred Adler.
Interessante a passagem em que Voegelin afirma que foi marxista por alguns meses, após ler O Capital, por conta do prestígio da Revolução Russa, mas, que o efeito desta conversão durou pouco quando passou a estudar economia.
De tal relato emerge um nível de ensino escolar que hoje julgamos ser digno de pós-graduação, e, então, quando se inicia o ensino superior propriamente dito, temos as influências, entre outros, de Mises e Kelsen, que por meio de seus seminários, tanto na universidade, quanto privados, possibilitaram relações pessoais e intelectuais fecundos, que perduraram por toda a sua vida.
Voegelin relata, ainda, que a instituição da República, com a queda da monarquia, intensificou-se o antissemitismo na sociedade e no governo, fato que impediu diversos de seus amigos judeus de seguirem carreiras universitárias, fazendo-os enveredar para o mundo dos negócios, enquanto, simultaneamente, continuavam suas vivências intelectuais.
Max Weber
Chegamos, assim, ao terceiro capítulo, em que relata a influência de Max Weber, o que me atiçou curiosidade de ler o texto "Ciência e política: duas vocações", sob a perspectiva apontada por Voegelin, de que Weber compreendeu que os chamados "valores" são ideologias, não proposições científicas (p. 31), e, que o citado sociólogo aplicava a ética da responsabilidade, segundo a qual autor de determinada ação é responsável pelas consequências de seus atos, e que "A intenção moralizadora não justifica a imoralidade da ação" e a "Ideologia não é ciência, e os ideais não substituem a ética" (p. 32).
Voegelin indica, porém, que a metodologia de Weber errou ao excluir os "juízos de valor", na busca de uma certa neutralidade científica não ideológica, que implicava em não se distinguir valores ideológicos, arbitrários, de juízos de valores éticos, racionais, o que tornava não declarado e "oculto" o próprio fundamento ético-cultural, judaico-cristão e greco-romano, da ética da responsabilidade.
Portanto, Weber, formalmente, por uma questão de metodologia, ignorava as razões empíricas existentes no desenvolvimento histórico e cultural que fundamentam a "a ordem racional da existência" (p. 33) da civilização Ocidental, assim, o desenraizamento de tais fundamentos lança a pessoa e a sociedade na "espiral de aventuras idealistas e ideológicas em que os fins se tornem mais fascinantes que os meios." (idem), e, para concluir, Voegelin considera que:
"Weber comprovou de uma vez por todas que, no campo das ciências sociais e políticas, não se pode ser um acadêmico qualificado sem conhecer profundamente o assunto. Isso significa adquirir o conhecimento comparado das civilizações - não apenas da civilização moderna, mas também da medieval e da antiga, e não apenas do Ocidente, mas Também do Oriente Próximo e o Extremo Oriente - e, em contato com as diversas especializações científicas, manter atualizado esse conhecimento. Quem assim não procede não tem o direito de dizer-se um cientísta empírico, e decerto deixa a desejar como acadêmico da área." (2007, p. 33)
Fonte:
Eric Voegelin, Israel e a revelação, 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2014.
Eric Voegelin, Reflexões autobiográficas, São Paulo, É Realizações, 2007.
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SUMÁRIO: Intróito – 1. Que é o direito? – 2. Um
breve histórico do direito ocidental – 3. Fato, valor, norma e o direito
natural – 4. Crítica à teoria pura do direito – 5. Sintetizando o que já
foi dito – 6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de solução
– 7. Direito processual e direito material – 8. Que são princípios? – 9.
Normas-princípio e normas-limite – 10. Conclusão – Bibliografia.
Resumo: O direito é um fenômeno social e é objeto de
estudo de uma ciência cultural, a ciência do direito, d’entre os muitos
métodos científicos possíveis vislumbramos a teoria pura do direito,
que consideramos adequada como mero instrumento de análise lógica do direito
positivo numa perspectiva auto-referente, entretanto, tal postura é
insuficiente, pois a auto-referência do texto legal não é uma garantia de que
os direitos humanos serão protegidos segundo os valores e ideais que informam a
idéia de justiça. Propomos a solução desta insuficiência ética mediante a
adoção novos conceitos a respeito de princípios jurídicos estruturados
hierarquicamente: princípios, princípios-norma e princípio-limite; tudo com
fundamento num conceito físico-bio-racional de direitos humanos, partindo de
uma acepção de senso comum a respeito do direito enquanto fenômeno social.
Palavras-chaves: princípios – teoria pura do direito
– direito natural – princípios-norma – princípios-limite – norma
fundamental pressuposta.
Intróito.
Falemos sobre o direito, e antes de tudo, aviso que sempre me
referirei a direito em letra minúscula, e, para realçar, quando me referir ao
direito em suas manifestações – de ciência, norma vigente e válida ou
filosofia, etc. – simplesmente, acrescentarei o adjetivo adequado,
reservando-me a grafar a letra maiúscula somente quando gramaticalmente
necessário.
O estudo do direito enquanto ciência apresenta uma
perplexidade que mais dia menos dia afeta o seu pesquisador, e, é justamente o
fato de que por mais que a atitude do jurista busque uma postura neutral,
entretanto, sempre interferem valores, tais valores recebem o nome de
princípios que se sobrepõem inclusive sobre o texto constitucional quando a
doutrina revela princípios implícitos, como é o caso da segurança jurídica.
O objeto de estudo do direito é o conjunto de normas que
vigem em determinado contexto territorial, histórico e social; por que não
considerar tais princípios como normas, ? E, mais, tais normas não se
reportariam diretamente a princípios primeiros, tais como a vida, a liberdade e
a propriedade?
Portanto, os cognominados princípios seriam
princípios-norma que se reportariam aos verdadeiros princípios informadores do
direito! Sob esta perspectiva devemos prosseguir na tentativa de
melhor fundamentar tal assertiva.
1. Que é o direito?
Direito em acepção comum nos remete à idéia de posse. Posse é pretensão fundada num título, formal ou informal,
real ou imaginário, ou seja, é o produto de uma manifestação de vontade,
livre ou vinculada, sobre algo ou alguém, com a finalidade de usar, gozar,
dispor ou consumir (PIPES, 2001: 32) o bem possuído, isto é, a idéia de
direito é uma idéia de posse e/ou propriedade.
Ora, só há posse de algo se esta pertencer a alguém, e
este só poderá vibrar sua pretensão se a mesma for o objeto de desejo de
outrem, daí a natureza heterônoma do direito, sua natureza social, enquanto
objeto de desejo mimético (GIRARD, 1990), que necessariamente deve ser
condicionado por limites axiológicos e objetivos.
Entretanto, o direito como objeto produzido culturalmente
jamais deve ser encarado como um instinto social, pois não existe direito na
sociedade das abelhas ou numa alcatéia, o direito, além de social é racional,
melhor dizendo: é eminentemente racional, é em verdade a
racionalização da vida social possibilitadora da convivência baseada no
consentimento e na boa-fé recíproca, esta é minha definição de ética a
fundamentar a posse legítima de qualquer direito.
2. Um breve histórico do direito ocidental.
De tanto ler sobre sociedades primitivas e/ou arcaicas
(GIRARD), sobre a Civilização Clássica (COULANGES, 2001), sobre as luzes
medievais (CHESTERTON, 1957) e as trevas modernas (PIPES, 1997), nada é mais
fácil de se perceber que quanto mais primaveril uma sociedade mais se pode
afirmar que todas as normas sociais (morais, religiosas, de meras condutas
sociais ou simplesmente éticas) são eminentemente jurídicas, e jurídicas por
mandamento divino, o próprio direito romano, tão celebrado como o fundamento
do direito ocidental nada mais era, quando em vigor, que uma série de
formalidades rituais originadas na religião arcaica romana, daí a extrema
importância dos ritos e da forma para os habitantes do Lácio.
O cristianismo com seus dogmas da divisão entre o Estado e a
Igreja e sua ética de amor e perdão, associados aos sábios ensinamentos
helenos que demonstram filosoficamente que o direito positivo está submetido à
justiça, e, que esta se fundamenta no direito natural, tais tendências
preencheram de razão e sensibilidade o duro e frio pragmatismo jurídico do
conquistador romano para a formação do direito ocidental, e, com isso,
sedimentar o apogeu do direito ocidental, que fundamenta juridicamente àquele
fenômeno econômico e social que convencionalmente chamamos de globalização.
Assim do caldo das três culturas fundadoras do mundo
ocidental consumou-se após mais de dois milênios de fluxos e refluxos a atual
visão do direito como conjunto de normas jurídicas distintas no universo das
normas sociais.
O direito é composto de normas sociais cuja nota distintiva
é a sanção eficaz em seu grau máximo, ou seja, é a norma imposta pela
força se preciso for, enquanto as demais normas sociais quando possuem
sanções o são em grau de menor eficácia, pois não se operacionalizam pela
imposição mediante o uso da força legítima, pois então seriam jurídicas.
3. Fato, valor, norma e o direito natural.
Logo, para que haja uma norma jurídica basta que a sociedade
atribua valor a determinado objeto e o proteja com mecanismos eficazes
passíveis de atingir, potencialmente, o grau máximo de violência legítima
contra o transgressor dos limites socialmente impostos. Miguel Reale (1988: 103) em sua assertiva filosófica
identifica três dimensões no direito: fato, valor e norma; elementos
estruturados dialeticamente, pois fato sem valor jurídico não é subsumível a
uma norma, norma é fruto de fatos valorados, e fato associado à norma onde se
ausenta a relevância social da conduta é norma em desuso.
O Direito é, portanto, o fenômeno social apreensível
quando pretendemos estudar uma sociedade desde suas estruturas de convivência,
é o conjunto das leis phisicas de uma sociedade, pois phisis é o
mesmo que natureza, ou seja, em outra terminologia podemos dizer que o
Direito é o conjunto das leis naturais que possibilitam a vida social.
As leis da phisica social não são as mesmas leis que
regem os fenômenos físico-biológicos, aquelas são leis que existem com e
sobre estas, as leis naturais que incidem sobre o homem sofrem limitações do
meio físico-biológico, mas, possuem face racional e natureza discursiva, cuja
existência é relacionada com o contexto cultural e cronológico de dada
sociedade (Em oposição às leis físico-biológicas, que são leis sem
história e sem contexto, pois a água sempre terá duas moléculas de
hidrogênio e uma de oxigênio e o ferro sempre pigmentará o sangue de rubro.).
Antes de prosseguir, devo ressaltar que a consciência de um
certo condicionamento histórico relativo aos direitos naturais humanos
é um fato da vida que não pode ser ignorado, mas, esta percepção não é uma
tomada de postura evolucionista em sua versão aplicada às ciências sociais,
ou seja, o historicismo, o que percebo é que o contexto histórico e social
são fundamentais para que o direito seja aplicado, em maior ou menor grau,
conforme as constantes racionais presentes na phisica social, v. g.,
o direito à vida é uma constante que em diversos momentos e contextos
históricos é altivamente ignorada e em outros, como em nossa atual ordem
constitucional é elevada à categoria de cláusula pétrea com a vedação de
pena de morte (art. 5º, inciso XLVII, alínea ‘a’, da CF), salvo
em circunstância bélicas que implicam na suspensão de tal proibição.
Diante deste quadro, pintado em rápidas pinceladas, em que o
direito é encarado como realidade histórica condicionada a leis naturais
físico-biológicas e racionais, pergunto: que leis naturais e racionais são
essas?
Vejamos, quando acima falei num sentido coloquial da palavra
direito, e remeti à idéia de posse, quis frisar uma idéia de senso comum, e,
ainda com base nesse mesmo sentido comum pergunto-me: qual o direito, ou
posse, que pressupõe todos os direitos e posses, sem a qual não se pode
cogitar da posse de qualquer outro direito? Qual o direito que encontra o seu
fundamento na realidade natural físico-bio-racional?
A vida é ao mesmo tempo a posse que pressupõe todas as
posses e o pressuposto ontológico a qualquer posse, é ao mesmo tempo
fundamento material e formal para os demais direitos.
De posse da vida postulamos a liberdade, para usufruir uma e
outra necessitamos de ao menos duas posses ou propriedades fundamentais: a
primeira é posse da própria vida, a segunda é a da liberdade de dispor com
livre arbítrio o próprio destino.
Aqui a vida é tomada naquele sentido impresso por Ortega y
Gasset (1962: 184), de que a vida implica e é implicada por um cabedal de
circunstâncias lógicas e concretas. Nesta perspectiva todos os direitos são humanos, pois todos
estão subordinados à vida, à liberdade e à propriedade, suprima um e farás
ruir os demais.
Diante destas verdadeiras leis naturais (vida, liberdade,
propriedade) é que a ordem jurídico-positiva inteirinha deve se ajoelhar e
reverenciar a idéia de justiça, a idéia de proporção, pois justiça é
proporção direta ou inversa, regressiva ou progressiva, o justo é proporção
qualitativa e quantitativa, dependendo de que bem jurídico valorado seja
material ou intelectual.
4. Crítica à teoria pura do direito.
Quando encaramos o direito como ciência precisamos fazer um
corte metodológico que é puramente formal e abstrato, e, se não tomarmos
todas as contramedidas que nos impeçam de considerar o conceito científico
mais importante que o objeto de estudo, a abstração pela realidade, poderemos
incorrer no equívoco de querer dobrar a realidade viva do direito pela idéia
etérea da ciência do direito.
O método juspositivista em si é meritório ao isolar o
sistema de direito positivo e analisá-lo em suas interações dinâmica e
estática, em possibilitar a análise da ordem vigente e eficaz produzida por
autoridade competente e processo adequado, metodologia que possui muito valor
analítico, mas, em princípio, nenhum valor ético, seria o equivalente a uma
cromatografia que simplesmente separa os elementos constituintes do objeto de
pesquisa.
O diabo tentador vive justamente nesta última parte,
quando o juspositivista se agarra à idéia de processo adequado para a
formação da norma, ou seja, que o direito só é inaugurado por um processo de
enunciação normativa apropriada, passa-se a tomar a parte pelo todo, e,
conseqüentemente, a noção do direito enquanto processo formal acaba
suplantando a sua realidade substancial, que é, em certa medida um processo
concreto existencial cuja forma de constituição é tão livre quanto as
possibilidades de interação social.
O maior vício intelectual produzido pela visão do direito
somente como processo de produção positiva de normas, não obstante as
vantagens analíticas evidentes, proporcionadas pela postura científica aí
inerente, é que a idéia de norma fundamental pressuposta é só uma outra
forma de descrever o imperativo categórico kantiano.;
Kant efetivou uma grande trapalhada conceitual que acabou por
criar uma falsa distinção entre fundamentos ideais e pragmáticos da conduta
humana (CARVALHO, 1998), findou por definir que devemos obedecer a um dever
moral "porque sim", e, assim, quando Kelsen (2000: 221) cria a sua
hipótese científica nos impinge esta mesma noção, devemos pressupor uma
norma fundamental "porque sim", mas, a boa pedagogia ensina que até
para crianças em idade pré-escolar não devemos responder "porque
sim", pois não é resposta adequada para matar a sede de conhecimento
natural ao ser humano quando infante, que dizer para nós que somos quase "doutores".
Portanto, sem negar nem uma vírgula da doutrina kelseniana
naquilo que há de mais fundamental como método hipotético-dedutivo fornecedor
de instrumental teórico válido para analisar o direito positivo como sistema
auto-referente, critico somente o vazio ético inerente à idéia de norma
pressuposta fundamental, nosso Kelsen (2000: 242) tanto criticou a idéia de
direito natural como se fosse um ato de fé, que não se apercebeu que toda a
sua doutrina nada mais é que... um ato de fé; a fé na norma fundamental
pressuposta, num imperativo categórico, num "porque... sim" vazio de
conteúdo e passível de ser utilizado para qualquer finalidade.
Por mais que seja referida a necessidade de que haja uma
escolha política sobre o valor a ser adotado na escolha da finalidade a ser
dada ao direito positivo, a doutrina kelseniana acaba por se recolher numa falsa
neutralidade ao ignorar sistematicamente valores e fatos subjacentes às normas,
para o juspositivismo exagerado a norma é algo vivo e o valor e o fato jazem no
limbo do incognoscível da metafísica.
5. Sintetizando o que já foi dito.
O direito é realidade que se origina na matéria da vida
social, é o processo que possibilita a própria convivência; em suas origens
englobava todas as normas sociais, atualmente, somente aquelas passíveis de uma
valoração tal que implique no extremo do uso da força para sua defesa; é
fruto de processo histórico condicionado a leis naturais físico-bio-racionais;
o princípio fundamental do direito natural é a vida, seguida da liberdade e da
propriedade, toda a ordem jurídica compõe-se de variações sobre estes temas
que são a síntese dos direitos fundamentais.
Diante desta realidade material da vida, da liberdade e da
propriedade, vislumbramos a substância do direito, enquanto que o direito
posto, vigente e eficaz diz respeito à forma de garantir a integridade de tais
matérias.
A crítica que se faz ao juspositivismo extremado, que se
deixa levar pela idéia de que o direito positivo é o único que importa, não
diz respeito ao método e ao objetivo do estudo do direito como ciência, mas,
diz respeito ao perigo que há em se tornar o processo de garantia dos direitos
fundamentais numa forma de supressão destes mesmos direitos fundamentais
mediante uma crescente abstração em que as normas mais disparatadas quanto ao
conteúdo são consideradas legítimas somente em virtude do atendimento das
formas prescritas no processo de produção normativa.
A tendência de abstração do direito é inerente à postura
de kelsen, herdada de Kant, de resolver problemas fundamentais da filosofia
jurídica com a tosca idéia de imperativos categóricos que só se fundamentam
numa afirmação hipotética destituída de valor ou justificativa maior que a
necessidade de conferir um ponto de partida científico ao estudo filosófico ou
jurídico, é como transferir para o direito o fiat lux divino presente
no Gênesis, mas, nem o direito é religião, nem Kelsen foi profeta, logo, a
tentativa de fundar a ciência do direito numa hipótese puramente neutra só
serve como ato de fé vazio de conteúdo, apesar de a teoria pura do direito
ter seu valor metodológico para o estudo analítico e sistemático pretendido
pela ciência do direito em vista do direito positivo como sistema
auto-referente, o seu tendão de Aquiles está justamente em sua
pretendida neutralidade científica.
O direito é uma ciência que estuda a técnica de
determinação deôntica que atua sobre fatos sociais de natureza ôntica e
penetrados de valores, portanto, as limitações inerentes à neutralidade
científica nas análises de fundo kelseniano, e, mesmo os mais formalistas dos
juspositivistas, sempre, têm que se socorrer dos valores e raciocínios da
axiologia jurídica... porque sim.
6. Continuando a crítica e apresentando uma proposta de
solução.
Deve a postura juspositivista ser dosada pela idéia de
direito natural. Somente o direito natural, especificamente partindo da
realidade material e inconteste do direito natural à vida.
O direito natural à vida preenche com sucesso o
conteúdo ético faltante à noção de norma fundamental pressuposta, pois
somente através da existência material da vida se vive o processo existencial
do relacionar-se juridicamente.
O direito em seu sentido mais amplo possível é um reflexo
da realidade, pois quando a norma jurídica, consuetudinária ou escrita, regula
e tutela vida e os seus bens em seus aspectos estático de ser e
dinâmico de dever-ser, situações e relações, então podemos
identificar o direito material e seu corolário que é o princípio-norma da
verdade material.
Quando o direito tutela as relações jurídicas inerentes ao
viver individual e suas interações sociais, definindo os mais diversos
procedimentos, as mais diversas garantias aos direitos materialmente
considerados, quando surgem instrumentos de proteção, prevenção ou
reparação então teremos o direito adjetivo, ou processual, que faz surgir o princípio-norma
do devido processo legal, surge o direito enquanto garantias e mecanismos
efetivos de operacionalização das suas funções preventiva e repressiva de
conflitos sociais.
O ideal está em que verdade material se imponha à verdade
formal, pois o direito é um dever-ser sobre o ser, produto e não produtor,
quando muito indutor.
7. Direito processual e direito material.
Finalmente, esclarecida minha filosofia jurídica, vamos à
doutrina científica, já com base na idéia de direito natural acima expendida,
só me resta fazer o bom e velho corte metodológico e encarar o direito
processual e o direito material pertencentes ao gênero das normas jurídicas,
e, dependendo da perspectiva, as normas processuais podem ser encaradas como
normas de conduta ou de estrutura (BOBBIO, 1989: 45).
São normas de conduta na medida em indicam os limites
objetivos e subjetivos que devem ser atendidos pelos sujeitos passivo e ativo de
dada relação jurídica; de estrutura quando informarem a conduta do agente
público incumbido de julgar o mérito de dado processo, judicial ou
administrativo.
Norma material é a norma de conduta que versa sobre condutas
relativos a determinado bem jurídico, material ou intelectual, objeto de atos e
fatos jurídicos, sem que seja necessária a instauração de outra relação
jurídica em que um terceiro intervenha para solucionar eventual conflito ou
sanar ocasional dúvida.
Uma vez que seja necessária a intervenção de um agente
público para a solução de pretensões oriundas de uma relação jurídica
material, então teremos normas de natureza processual; normas de conduta para
as partes integrantes dos pólos em oposição de interesses, mas que vigerão
como normas de estrutura para o julgador que produzirá uma novel norma
jurídica constituída numa decisão solucionadora da lide, mediante a edição
de uma norma individual e concreta que confirmará, infirmará ou afirmará o
direito material de um dos contendores ou de partes dos interesses recíprocos
em conflito.
Em suma, num linguajar inspirado em Cossio (apud
CARVALHO, 1999: 36), afirmo que o direito material é o conteúdo composto de
bens jurídicos, presentes na endonorma, que sofre a proteção do direito
processual que é a forma de garantir eficazmente aquele mediante a introdução
de uma norma criada processualmente, ou seja, a perinorma, suscetível de
execução forçada, isto é, de coatividade.
8. Que são princípios?
Partindo da premissa maior de que princípios uma vez
fixados, não podem mais "ser questionados por serem auto-evidentes
demais", delimitam "o campo da ciência e as possibilidades do seu
desenvolvimento futuro", e, "tudo aquilo que forma o princípio
fundante de uma ciência não faz parte dela" e que o "desenvolvimento
posterior de uma ciência não mudará esses princípios", e, ainda, que
"o princípio jamais pode ser impugnado" (CARVALHO, 2002: 21).
Passando pela premissa menor de que o direito à vida
é auto-evidente, que sua fruição (liberdade e propriedade) delimitam o campo
de suas possibilidades, que o direito à posse da própria vida está para além
de qualquer consideração juspositiva legítima tendo em vista que o princípio
vital em si não é legislável, e que a sua impugnação é máximo do
arbítrio negador do Direito;
Portanto, concluo que princípio mesmo só o
direito à vida, princípios derivados imediatamente são os direitos à
liberdade e à propriedade, e derivados mediatamente temos normas-princípio
e normas-limite; normas-princípio, indicam limites lógicos
ao aplicador do direito; e, normas-limite determinam as fronteiras
objetivas que devem ser respeitadas pelo jurista.
Diante desta conceituação até admito a terminologia de
Paulo César Conrado (2002: 49 e ss.) de princípios constitucionais e
infraconstitucionais, lato sensu (limites objetivos) e estricto sensu (sobreprincípios),
genéricos e específicos, mas, com um reparo, todos estes princípios ou são
normas de conduta ou normas de estrutura, isto é, ou são limites à conduta
dos sujeitos de uma relação jurídica ou são normas destinadas a regrar a
conduta de um agente competente para produzir normas jurídicas, abstratas e
genéricas ou individuais e concretas. princípios, mesmo, só a fazenda, a
liberdade, e, claro, sobretudo a vida.
9. Normas-princípio e normas-limite:
O que Conrado chama de sobreprincípio, eu prefiro
nominar de normas-princípio, que são normas extraídas expressa ou
implicitamente do sistema positivo, racionalmente reveladas da análise
estrutural do mesmo sistema.
Tais normas-princípio podem até ter qualidades solares ou
de uma lamparina para iluminar a compreensão dos setores normativos (CONRADO,
p. 51), salvo a carga poética ou mesmo de fótons, prefiro dar o parecer de que
são essencialmente normas de estrutura cuja destinação está em orientar a
aplicação do direito, e, aí sim, podem até iluminar as trevas da dúvida
diante de um caso concreto, mas nada mais serão que normas com função
de princípios, ou princípios com função de normas,
normas-princípios, portanto.
Para mim sobreprincípio, ou princípio primeiro, ou
simplesmente princípio é o direito fundamental, cuja origem é natural
e apreensível pelo puro e simples bom-senso, ou seja, o princípio que deve
informar todo os sistema jurídico é a vida, cujas derivações necessárias
são a liberdade e a propriedade.
Para a doutrina tradicional, representada por Conrado, são
os princípios em sentido estrito, ou sobreprincípios que teriam prevalência
hierárquica sobre os princípios delimitadores de limites objetivos cujo
caráter interpretativo possui um caráter axiológico. Ocorre que tais
princípios, ou como prefiro: normas-princípio; são, quando muito, princípios
secundários ou derivados dos princípios pressupostos da vida, liberdade e
propriedade.
Em matéria processual, estas normas-princípio são normas
de estrutura orientadoras da conduta do julgador e garantidoras dos direitos
materiais das partes envolvidas.
Veja-se a norma-princípio do devido processo legal (dues
process of law) que se trata de uma norma orientadora de todo e qualquer
processo que tanto pode inquinar de ineficácia uma sentença que interprete
inadequadamente os dispositivos que garantem a isonomia entre os postulantes do
processo, bem como pode servir para invalidar a própria lei que fira um dos
princípios específicos do processo, como lei que eventualmente suprima o
contraditório e a ampla defesa para desconsiderar administrativamente os atos
jurídicos perfeitos sobre os quais incida uma norma tributária, mesmo que tal
desconsideração se dê sob a égide de uma suposta repressão à evasão
fiscal.
Havendo, ainda, os princípios-limite que Conrado denomina de
princípios em sentido amplo que indicam um limite-objetivo de natureza
instrumental e técnica. ; Patenteia-se, portanto, uma hierarquia tripartite de
princípios jurídicos: princípios, normas-princípio e normas-limite que
sujeitam a interpretação e aplicação estrutural da norma jurídica de
conduta incidente nas relações jurídicas.
10. Conclusão.
A grande conclusão a ser tirada é que o fundamento ético
necessário à norma fundamental pressuposta de Kelsen é o direito
natural fundamental à vida, cuja base físico-bio-racional preenche todos
os requisitos para a definição de um princípio científico, definidor do
âmbito de interesse e dos limites do estudo.
E, tendo em vista que pretendemos somente iniciar um debate
no fecundo âmbito da teoria geral do direito, com especial enfoque no direito
tributário, só nos resta concluir postulando que todo o sobredito é uma
tentativa teórica de fundamentar a norma-limite da verdade real ou material que
se propõe atuar na determinação de limites à sanha arrecadatória do Estado,
pois o direito de tributar é mero direito de confiscar conforme o ordenamento
legal uma parcela razoável do patrimônio do particular, pessoa física ou
jurídica, para sustentar o aparato de serviços públicos destinados a amparar
as garantias e direitos individuais e a Ordem Pública que lhe é vinculada.
Em outros termos, o direito de tributar é uma espécie de
confisco consentido, cujos recursos são destinados ao financiamento do Estado,
cuja finalidade é disponibilizar garantias legais, materiais e processuais, ao
patrimônio jurídico do contribuinte, patrimônio este que principia na posse
de sua própria vida e na livre disposição da mesma.
A estrutura teórica acima descrita, também, tem o sentido
de explicitar o caráter declaratório de toda e qualquer atuação estatal, e,
mais especificamente, quando o Estado efetiva um lançamento tributário jamais
constituirá uma relação jurídica, somente a declarará, quando muito irá
constituir o fundamento jurídico de um título executivo extra-judicial, haja
vista que a obrigação tributária é fruto da incidência abstrata da norma,
enquanto o crédito é necessariamente um produto da incidência concreta da
norma, realizável mediante ato de declaração, a natureza constitutiva será
limitada somente ao crédito, e, sua constituição implicará na interrupção
do prazo decadencial, quando o lançamento é realizado tempestivamente, e, no
início do prazo prescricional, para a propositura da execução fiscal.
Ao nascermos o Estado somente declara que viemos ao mundo com
o atributo da vida, a certidão de nascimento é mera norma individual e
concreta que serve de pressuposto a outras normas individuais e concretas, como
a carteira de identidade, logo, tal qual no lançamento tributário, a vida, e
os fatos econômicos da vida, são mero objeto de declaração, numa de
constituição, o que o Estado constitui são somente normas, abstratas e gerais
ou individuais e concretas.
Quando o Estado se propõe a manipular os conceitos
jurídicos a ponto de ignorar o fundo ontológico do direito, mediante a
edição de leis que definem e punem supostos abusos de direito, criando
ficções jurídicas em que o contribuinte é punido por atuar regular e
licitamente conforme o ordenamento jurídico quando efetiva o seu planejamento
fiscal, então, preparemo-nos porque tal Estado se esqueceu das garantias e
direitos fundamentais do indivíduo, e, no lugar dos direitos humanos de fundo
real e concreto baseado na própria vida, pretende instaurar o totalitarismo
da supremacia do interesse público fundado na abstração jurídica e
formal de uma norma fundamental pressuposta vazia de conteúdo ético.
A norma fundamental pressuposta, mera hipótese
científica, quando tomada não como meio, mais como fim, acaba por ser
passível de servir à velha promessa messiânica de instauração do paraíso
terrestre, projeto que sempre ao ser executado se converte na própria visão do
inferno sobre a Terra.
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Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)
COELHO, Werner Nabiça. Princípios jurídicos e direito natural.. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 88, 29 set. 2003.
Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4361>. Acesso em: 4 jun. 2016.