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sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A TEORIA PURA DO DIREITO É LINGUAGEM MITO-POÉTICA PURA.


Existem muitas palavras mágicas na linguagem corrente no meio jurídico, palavras com elevada carga simbólica, palavras que servem para justificar quase qualquer coisa, entre tais considero que "teoria pura do direito" e "norma hipotética fundamental" são termos de "alta magia".

Hans Kelsen, o grande mago das ciências ocultas do direito, um dia sonhou com um mundo ideal, um mundo platônico de formas ideais, todavia não seriam formas à moda platônica, cuja filosofia definiu que o mundo das formas contém as verdadeiras realidades relacionadas às efêmeras realidades concretas de nosso mundo contingente, o que Kelsen sonhou foi um mundo de "formas superiores", pois, afinal, se o direito é composto de regramentos de relações humanas, mas a teoria pura proposta por Kelsen que estuda tais regras se preocupa somente com os textos puros, e as relações formais entre tais textos, sem contaminação do elemento "humano", ou seja, sem considerações sobre a origem politica de tais normas, então o mundo puro das normas é um mundo em que a vida humana morreu e padece de sentido.

Há um sentido de pureza ritual do culto á norma, erige-se um deus do direito, um deus impessoal e amoral, um deus neutro e científico, cujo nome é norma hipotética fundamental, este ser de luz intelectual, que não existe no tempo e no espaço, que é pura forma que se conforma como puro texto criador de uma nova ordem jurídica, cujo filho mais velho é o poder constituinte originário e o filho caçula é o poder constituinte derivado, que engendram e organizam uma cosmovisão pura do direito na qual a lei é o símbolo de toda a ordem cósmica de um mundo ideal de relações jurídicas.

A teoria pura do direito é um símbolo que representa um mundo ideal de normas perfeitas uma vez que não são mais associadas aos impuros seres humanos, é o mundo como idéia do direito, é uma teoria ideal do direito, uma teoria divina do direito, uma teoria teórica do direito, que por sua vez cria um símbolo da criação na forma de uma hipótese abstrata de criação de um mundo à parte da realidade concreta, para, assim, fundamentar a existência de um mundo normativo autônomo.

Então temos o deus da norma hipotética fundamental que magicamente diz: faça-se a constituição e obedeça-a!

Outra possível designação para palavras mágicas denomina-se poesia, pois a linguagem poética é o reino do encanto da imaginação selvagem e desmedida, o reino de todas as possibilidades, a realidade do pensamento na qual tudo é possível ser construído por sobre areia, nuvens e ar, a partir da linguagem poética conformam-se mitos, sonhos, ideais, divagações e desejos, sobretudo desejos, e, fatalmente, desejos de poder, e, necessariamente tragédias pela luta do poder, e que melhor fundamento para o poder absoluto que a idéia de um direito puro, técnico, formal que pode ser feio, mas que sempre poderá fundamentar qualquer coisa sob a desculpa infernal de que se "estava cumprindo ordens".
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sábado, 14 de janeiro de 2017

ERIC VOEGELIN: REFLEXÕES AUTOBIOGRÁFICAS - 02


Em suas Reflexões autobiográficas Eric Voegelin disserta a respeito do problema dos estudos comparados, como elemento "fundamental a aquisição de um ampla gama de conhecimentos", que promove "O necessário alcance empírico do conhecimento" que "é a base de toda a qualquer ciência social digna de nome" (p. 35), e, exemplifica o processo de construção de tal metodologia com as obras Declínio do Ocidente, de Oswald Spengler e História da Antiguidade, de Eduard Meyer, e destaca a importância de Toynbee.
Voegelin em 1922-1923 assistiu às aulas do curso de história da Grécia de Eduard Meyer, e julgo interessante transcrever a descrição de tais aulas:

"Entrava na sala - uma figura esguia, levemente curvada por conta da idade, cabelos emaranhados - , subia, posicionava-se no atril, ajeitava os braços, cerrava os olhos, e então falava por uma hora inteira, sem interrupções, em linguagem impecável, jamais cometendo um erro gramatical ou estilístico e não se confundindo em uma única sentença. Quando o sinal tocava, concluía a palestra, abria os olhos e se retirava. [...] tratava as situações históricas do ponto de vista dos homens engajados na ação. [...] Gosto de acreditar que a técnica de Meyer de compreender uma situação histórica pela forma como os indivíduos nela enredados a pensavam foi incorporada ao meu trabalho como um fator permanente " (p. 36).

Destaca, também, a influência de Alfred Weber, cujo curso de sociologia da cultura frequentou em 1929, como outro exemplo de prática de estudos comparados.

Voegelin frequentou o grupo cultural criado pelo poeta simbolista Stefan George, mas, o ponto mais importante está no que é dito de Karl Kraus "que nos dava a todos uma compreensão crítica da política e, especialmente, do papel da imprensa na desintegração das sociedades alemã e austríaca, preparando o terreno para o nacional-socialismo" (p. 38).

 
A nota de rodapé nº 2 (p. 38-9) faz uma séria de considerações a respeito da influência do humor sarcástico e ríspido de Voegelin, como uma herança dos escritos de Karl Kraus (1874-1936), que era:
"Satirista na melhor tradição de Jonathan Swift, Kraus foi o editor e praticamente o único jornalista da publicação independente Die Fackel. Seus ensaios e aforismo denunciavam a hipocrisia da sociedade vienense e entre eles podemos encontrar pérolas deste tipo: "Como o mundo é comandado e como começam as guerras? Os diplomatas contam mentiras aos jornalistas e então acreditam no que lêem", ou "Meu inconsciente sabe mais sobre a consciência do psicólogo do que a consciência dele sabe sobre o meu inconsciente", uma alfinetada certeira em Freud, Kraus também podia ser extramamente brutal: "A estupidez é uma força fundamental e nenhum terremoto pode combatê-la" - uma opinião compartilhada por Voegelin em sua análise do ambiente intelectual alemão em Hitler e os alemães, em que Kraus é citado como um dos modelos de retidão moral que previram a loucura que seria o nazismo. Foram publicados em língua portuguesa os seguintes livros de sua autoria: Ditos e feitos (São Paulo, Brasiliense, 1988) e Os últimos dias da humanidade (Lisboa, Antígona, 2001), uma peça teatral que tem treze horas de duração [em seguida há uma referência a Eugen Rosenstock-Huessy, que julgo muito interessante mas que remeto para uma leitura na própria obra]."

Voegelin  relata que a obra de Stefan George "deve ser entendida no contexto da espantosa destruição da língua alemã durante o período imperial, depois de 1970" (p. 39), e, aqui confesso que foi a primeira vez que ouvi falar nisso.

Pois bem, Stefan George se propunha:

"Resgatar a linguagem significava recuperar o objeto a ser por ela expresso, o que, por sua vez, significava sair do que hoje se chamaria a falsa consciência da burguesia ordinária (aí incluindo os positivistas e marxistas), cujos representantes literários eram as vozes dominantes no meio cultural. Daí que essa preocupação com a linguagem fizesse parte da resistência contra as ideologias. As ideologias destroem a linguagem, uma vez que, tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideólogo passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela. Transpor esse simulacro de linguagem e restaurar a realidade por meio da restauração da linguagem era o trabalho não só de Karl Kraus, mas também o de Stefan George e dos que integravam seu círculo na época" (p. 39).





Voegelin refere que  naquele tempo vigorava um "linguajar insultuoso típico da oclocracia" (p. 40), ou seja, a típica linguagem utilizada pelo governo da multidão, e, afirma que "é impossível empreender um estudo sério do nacional-socialismo sem recorrer a Dritte Walpurgisnachit e aos anos de crítica de Die Fackel, pois é aí que se evidencia a miséria intelectual que tornou possível a ascensão de Hitler" (idem).



Por fim, Voegelin afirma que o fenômeno de Hitler fundou-se no "quadro geral de uma sociedade arruinada intelectual ou moralmente" , em que "marginais podem ascender ao poder público por representarem formidavelmente o povo", e, o mais importante, é que a "destruição interna" da Alemanha não terminou com o fim da guerra "mas continua até hoje", e "não é possível entrever seu fim, de sorte que consequências surpreendentes são possíveis" (p. 41), talvez aí esteja uma das possíveis explicações para a atual política de acolhimento de refugiados por parte do governo alemão.

Há, em seguida, uma bela defesa da ciência do direito fundada na hierarquia da norma fundamental, e uma crítica à metodologia neokantiana de desvirtua ideologicamente o processo científico.

Voegelin define que Hans Kelsen contribuiu de forma fundamental para a ciência com "a aplicação de uma análise lógica a um sistema jurídico. Essa análise do sistema feita por Kelsen, que culmina em seu conceito de Grundnorm (norma fundamental)" (p. 43).

Afirma que esta contribuição ainda é "o núcleo de qualquer teoria analítica do direitos" e enfatiza que nunca divergiu de Kelsen "quanto à validade fundamental da Teoria Pura do Direito" (p. 43-4).

Por outro lado, afirma que suas divergências são sobre aspectos ideológicos "que se sobrepõem à lógica do próprio sistema jurídico sem, no entanto, comprometer sua validade" (p. 44).

Tratava-se da ideologia da metodologia neokantiana "que definia cada ciência com base em seu respectivo método de investigação - e, neste caso, o método era a lógica do sistema jurídico" (p. 44).

Voegelin relata que "de acordo, com a terminologia da época, a área de Kelsen representava como professor era a Staatslehre [teoria política]" (p. 44), a teoria política tinha que se transformar em Rechtslehre [teoria jurídica], e, uma vez feito o corte metodológico, a ciência do direito não mais poderia tratar nem da política, nem da história, nem da filosofia, o objeto desta ciência passaria a ser somente o sistema normativo, ou seja, propunha-se um aprofundamento do estudo especializado (1).

Na sequência Voegelin faz uma síntese das duas principais escolas neokantianas, a Marburger Schule, de Hermann Cohen, que era representada por Kelsen, que interpretava a Crítica da Razão Prática, de Kant com base na "constituição da ciência pelas categorias de tempo, espaço e substância - ciência significando a física newtoniana tal como Kant a entendia. Esse padrão de constituição de uma ciência a partir das categorias aplicadas a um conjunto de fontes foi o modelo usado na construção da Teoria Pura do Direito. O que não coubesse nas categorias da Normlogik não mais poderia ser considerado ciência" (p. 45-6).

A outra escola neokantiana era denominada Escola Alemã do Sudoeste, de Windelband e Rickert:

"[...] para quem o objeto das ciências históricas era constituída por "valores". Essa vertente metodológica remonta à década de 1870, quando o teólogo Albrecht Ritschl fez, pela primeira vez, a distinção entre [...] [ciências de fatos] e [...] [ciências de valores]. Os termos escolhidos revelam que a origem do problema está no antigo predomínio das ciências naturais como modelo da ciência em geral. Contra o prestígio das ciências naturais, os pobres teólogos, historiadores e cientistas sociais incipientes precisavam deixar claro que seus campos de estudo também eram, afinal de contas, científicos" (p. 46).

Voegelin, com sua fina ironia, relata que foi assim que se inventaram os "valores" (p. 46), e explica que no "entender de Rickert, os valores são forças culturais cuja existência está acima de qualquer suspeita, tais como o Estado, a arte e a religião" (idem).

A crítica de Voegelin a tal "técnica de reconstituição das ciência sociais e históricas pelo "wertbeziehende Methode" (isto é, por referência a um valor) padecia de grave insuficiência por não perceber que os valores são símbolos altamente complexos, condicionados por seu significado na "cultura" estabelecida da sociedade liberal ocidental", e que "os valores precisavam ser aceitos. E que fazer se alguém os rejeitasse, como faziam certos ideólogos que desejavam fundar uma ciência relacionando as fontes já não mais ao valor do Estado, mas ao valor de sua destruição?" (p. 46).

Então, evidencia-se que a ideologia neokantiana pode tanto aplicar corte metodológico, em que a hipótese de estudo é mais importante que o próprio objeto, ou eleger arbitrariamente um objeto, de forma discricionária, cujos referenciais passam a ser palavras ou sentimentos, que poderiam ser valorados como fundamentos da própria cultura, não como seus produtos.

Fonte:
 

Eric Voegelin, Reflexões autobiográficas, São Paulo, É Realizações, 2007.