Mostrando postagens com marcador Contemplação. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Contemplação. Mostrar todas as postagens

domingo, 15 de janeiro de 2017

Cooperatoris Veritatis: algumas considerações sobre o diálogo platônico Fedro



Seguindo a trilha aberta de Carlos Alberto Nunes, cujos comentários destacam a natureza teatral da obra platônica, e, após a reunião do grupo de estudos relativo ao diálogo platônico Fedro, considero ser útil guardar a memória de alguns pontos objeto de discussão.

Carlos Alberto Nunes (1897-1990)
Ao ser encontrado por Sócrates, fora dos muros de Atenas, às proximidades do Rio Ilisso,  Fedro afirma estar a "passear nas estradas" por recomendação do amigo comum Acumeno por ser uma forma de repouso melhor que descansar "em galerias cobertas" (227a) (p. 33)

Fedro relata a Sócrates que Lísias discursara em torno do amor, e defendera "que é preferível alguém ceder às instâncias de quem não lhe dedica amor, a entregar-se a quem o ama de verdade" (227c) (p. 33-4), ao que Sócrates ironiza que então "o pobre é de preferir ao rico e o velho ao moço, ou falasse das misérias que me são peculiares e à maioria dos homens, teria o mesmo feito um discurso civil e verdadeiramente democrático" (idem).

Diante da afirmação de Fedro, de que não poderia declamar o discurso de Lísias, Sócrates se sai com mais uma tirada irônica, e descreve o método de estudo de Fedro, descrição esta que por si só tem seu valor pedagógico:

II - Sócrates - Fedro! Fedro! Se eu não conhecesse o Fedro é que já me teria esquecido de mim mesmo. Porém nada disso é verdade. Tenho absoluta certeza de que, por tratar-se de um discurso de Lísias, ele não se satisfez com uma audição apenas, mas insistiu junto do autor para que o lesse várias vezes, ao que o outro acedeu de muito bom grado. Mas, nem isso lhe bastou; tomando do livro, mergulhou na lição dos trechos mais interessantes. Nesse estudo passou sentado a manhã toda, até que, vencido da fadiga, saiu a espairecer cá fora, porém já com o discurso de cor, como tenho que de fato aconteceu [...] Só veio passear fora dos muros para declamá-lo, e, ao topar com um tipo doente por discursos, exultou por haver encontrado um parceiro para seus delírios coribânticos e o convidou a acompanhá-lo. Depois, instado por esse amante de discursos par que o lesse, fez-se rogado, como se não tivesse o menor desejo disso" (288b a 288c) (p. 34)

Fedro é apanhado em outra malandragem estudantil, pois quando já iria começar um exercício de declamação do texto memorizado, com base em seus estudos acima descritos, Sócrates percebe que seu companheiro de diálogo escondia o texto escrito do discurso de Lísias, e, certamente, com um meio sorriso no rosto, e um tom de divertida admoestação se dirige ao jovem efebo:

"Sócrates - Pois não, amor; mas, antes disso mostra-me o que trazes na mão esquerda, debaixo do manto. Suspeito que seja o tal discurso. Se for o caso, podes ter a certeza de que, embora eu te dedique muita estima, uma vez que Lísias se acha presente, não deixarei que te exercites à minha custa. Vamos, descobre-o logo." (228e) (p. 35)

Esta colocação de Sócrates, de que "Lísias se acha presente", é muito interessante, como uma antecipação da noção posterior apresentada de que há um risco em potencial, relacionado ao culto do texto, sem levar em conta que as idéias escritas, também, possuem uma vida para além dos livros, o que torna relacionarmos esta passagem com a discussão posterior, neste mesmo diálogo, em que se destaca a natureza "muito perigosa" da palavra escrita:

"LX – Sócrates – Logo, quem presume ter deixado num livro uma arte em caracteres escritos, ou quem a recebe, na suposição de que desses caracteres virá a sair algum conhecimento claro e duradouro, revela muita ingenuidade e o desconhecimento total do oráculo de Amão, dado que imagine ser o discurso escrito mais do que um meio para quem sabe, a fim de lembrar-se do assunto de que trata o documento.
Fedro – É muito certo.
Sócrates – É que a escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto, parecidíssima com a pintura, pois esta, em verdade, apresenta seus produtos como vivos; mas, se alguém lhe formula perguntas, cala-se cheia de dignidade. O mesmo passa com os escritos. És inclinado a pensar que conversas com seres inteligentes; mas se, com o teu desejo de aprender, os interpelares acerca do que eles mesmos dizem, só respondem de um único modo e sempre a mesma coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita, rolam daqui dali os discursos, sem o menor descrime, tanto por entre os conhecedores da matéria como os que nada têm a ver com o assunto de que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não. E no caso de serem agredidos ou menoscabados injustamente, nunca prescindirão da ajuda paterna, pois por si mesmos são tão incapazes de se defenderem como de socorrer alguém." (275c a 275e) (p. 93-4)
Retornemos ao contexto inicial, em que Fedro e Sócrates acabaram de se encontrar, e buscam um local de descanso enquanto passeiam, cenas cujo caráter bucólico é ressaltado pela descrição de cenários idílicos, muito favoráveis à discussão dos conceitos relacionados ao sumo bem.

Após Fedro ser apanhado em suas artimanhas estudantis, e ser forçado a concordar em ler o discurso de Lísias, nossos amigos do saber prosseguem seu caminho em direção à uma localidade encimada por um plátano, uma árvore frondosa, cujas forma característica da folha está desenhada na bandeira do Canadá.

Ao caminhar na direção de seu local primaveril, em que se travará a parte principal do diálogo, Fedro observa que fez bem em sair sem sandálias, que é como Sócrates sempre anda (229a) (p. 35), o que me remete à etimologia da palavra humildade, derivada do latim "humus", e a expressão significa "estar com os pés descalços sobre o chão".

E, a propósito da descrição do local, em que a conversa de desenvolve, destaco alguns elementos descritivos, para depois prosseguir tratando de alguns passagens outras, que me remeteram à teoria mimética de René Girard, mas, enquanto isso, surpreendamos os amigos tratando do local em que o diálogo realmente iniciar-se-á:

Plátanos

Fedro - Estás vendo aquele plátano alto?
Sócrates - Como não?
Fedro - Ali há boa sombra, brisa agradável e relva suficiente para nos sentarmos e até mesmo para deitar, se assim nos aprouver.
Sócrates - Então sigamos. (229b) (p. 35)
[...]
IV - Sócrates [...] E, por falar nisso, companheiro, não é esta a árvore para onde querias conduzir-nos?
Fedro - É essa mesmo.
V - Sócrates - Por Hera! Que belo sítio para descansar! Este Plátano, realmente, é tão copado quanto alto, e aquele pé de agnocasto além de sombra agradabilíssima que sua altura proporciona, embalsama toda a redondeza, por estar em plena florescência. E sob o plátano, também, que fonte encantadora! A água é bastante fria, o que os pés nos confirmam. Deve ser consagrada às Ninfas e a Aquelôo, a julgarmos por estas imagens e figurinhas. Observa também como aqui a brisa é delicada e aprazível; sua melodia clara e estival acompanha o coro das cigarras. Porém, o mais admirável de tudo é a relva, que se eleva gradualmente para formar uma camada espessa. Se nos deitarmos neste ponto, disporemos de travesseiro em tudo cômodo. Revelaste-te excelente guia, amigo Fedro. (230a a 230 c) (p. 36-7)
Agnocasto 

Percebo que um dos mais importantes aspectos relacionados ao exercício de uma boa leitura, por vezes, é o tempo decorrido entre os anos que medeiam as visitas a um texto, pois da primeira vez que li este diálogo, e já fazem quase 20 anos, pouco me importei com aspectos lúdicos ou com o cenário, mas, após reler este trecho, pude perceber que o contexto bucólico descrito, pode ter sido uma rica fonte de referencias literárias aos irlandeses (1), quando salvaram a cultura ocidental, pois foi sob plátanos e outros locais análogos (2), conforme descrito por Platão nesta peça literário-filosófica, que os monastérios irlandeses do século V surgiram, como centros de preservação e divulgação da herança milenar greco-romana e judaico-cristã.

Agora, retomando o fio da meada, faço algumas indicações de elementos relacionados à teoria mimética (3) apanhados no texto, com a finalidade de registro para futuras elucubrações deste escriba, e, quem sabe, inspirar terceiros, a respeito da violência sagrada, presente no texto deste diálogo segundo a chave explicativa da teoria girardiana.

Rio Ilisso
Antes de chegar ao plátano, cujos arredores são poeticamente descritos no diálogo, Fedro comenta que estavam passando pelas margens do Ilisso, local em que Bóreas raptou Oritia, ao que Sócrates indica que o local certo ser um pouco mais adiante (229b) (p. 36-7), e neste ensejo Fedro questiona de forma cética a respeito do mencionado mito: "acreditas nessa história?" (229c) (p. 36).

Sócrates, então, discorre a respeito do mito, e de sua natureza questionável do ponto de vista racional, o que dá a entender que naquele tempo histórico contemporâneo ao nosso filósofo, as verdades religiosas tradicionais estavam sendo duramente criticadas, vejamos:

IV - Sócrates - Se, a exemplo dos sábios, eu não acreditasse, não seria de estranhar. Interpretação sutil da lenda fora dizer que o ímpeto de Bóreas a derrubou dos rochedos próximos, quando ela brincava com Farmaceia, e que as próprias circunstâncias de sua morte deram azo a dizerem que Bóreas a havia raptado. (229d) (p. 36)

Ora, este trecho revela-se perfeito, para análise com a utilização da chave explicativa de René Girard (4), pois descreve um mito em que há um bode expiatório (Oritia), e um deus (Bóreas) que personifica, neste caso, a multidão, que em sua fúria lança a vítima do rochedo, sem contaminar-se ritualmente com a violência bruta, pois utiliza-se de meios sagrados de imolação, e, por outro lado, a própria explicação dos sábios referidos por Sócrates, são um claro indício de um forte processo de dessacralização da religião ateniense, submetida à crítica racionalista que busca razões humanas para o surgimento das lendas.

Como o tempo urge, e o texto tem que ser concluído, indico que no trecho de 231a -234c está contido o discurso integral de Lísias, ao qual Sócrates qualifica de "demoníaco", e refere como ficou contagiado "do mesmo furor báquico" de Fedro enquanto este declamava a leitura de tal discurso (234d) (p. 41), o que me remete à lembrança das descrições sobre o magnetismo da arte no diálogo Íon (5), ou Ião como na tradução de Carlos Alberto Nunes.

Em seguida, há o discurso retórico que Sócrates é levado a fazer, pois Fedro impõe tal dever, inicialmente, por uma coação,  manifestada nestes termos: "Resolve-te, pois, a falar, antes que eu recorra à violência" (236d), e, finalmente, de forma eficaz, mediante a oração ritual em que faz o seguinte juramento:

Fedro - [...] Juro... Por qual divindade hei de jurar? Por qual? Aceitas este Plátano? Pois bem: se não declamares teu discurso diante deste plátano, juro que nunca mais te mostrarei nem indicarei discurso de nenhuma pessoa. (p. 236e) (p. 45)

E, mesmo sem ter tocado no assunto relativo à iniciação de natureza pitagórica cujos indícios surgem ao longo do texto, nem me deter nos aspectos concernentes às classificações sobre as virtudes e vícios do desejo amoroso, presentes no discurso retórico de 237b-241d, em que Sócrates discursa de rosto velado de vergonha (237a)(p. 44), e, muito menos, sem tocar nas profundas digressões sobre os conceitos platônicos que principiam pela descrição dos delírios sagrados da divinação, das musas e do amor, passa pela descrição mitológica do mundo das idéias, e prossegue pela metempsicose, que surgem a partir de 244a (p. 53 e seguintes), quando Sócrates declama:

Sócrates - De vergonha, pois, dessa pessoa e de medo de Eros, pretendo limpar-me com a boa água de um novo discurso de toda a salsugem dos conceitos há pouco enunciados. Aconselho também Lísias a escrever quanto antes que, em iguais circunstâncias, um jovem deve preferir quem o ama, não quem não lhe dedique amor. (243d) (p. 53)

Uma anotação final que deixo, é que o amor definido por Sócrates, no prosseguimento do diálogo, em seu mais alto nível, é o amor que se deve guardar pela contemplação da verdade, do bem, do justo e do belo no grau da pureza divina, e, que o eventual amor carnal entre os amantes do saber, é uma forma de apequenar e dessacralizar o amor ao saber, cuja origem é divinal, que deve ser cultivado e resguardado entre amigos, em suma, o saber é muito mais profundo quando associado à castidade, por ser um dever sagrado perante Deus.


Fonte:


Platão, Diálogos de Platão: Fedro, Cartas e O primeiro Alcebíades, Coleção Amazônia, Série Farias Brito, vol. V, tradução de Carlos Alberto Nunes, UFPA, Belém, 1975