Afinal o que leva a nacionalidade brasileira a produzir homens cordiais, numa sociedade em que são tecidas teias de relacionamentos por meio de emoções, em detrimento do cálculo racional puro e simples?
Sérgio Buarque de Holanda faz duras críticas ao nosso cordialismo, por considerá-lo a origem de nosso atraso, nosso sentimentalismo seria o fator que não permitiria que o Estado assuma seu papel transcendental em relação à família, com o estabelecimento de uma burocracia racionalista e impessoal, na qual o bem público seria antagônico aos interesses familiares.
Entre os efeitos desejados pelo célebre sociólogo de Raízes do Brasil, com a superação de nossa prevalência emotiva, seria o fim da entidade familiar patriarcal, considerada por Sérgio Buarque de Holanda como um verdadeiro óbice ao progresso, por ser uma base social primitiva a impedir o pleno desenvolvimento da civilização moderna brasileira, sob o Trópico de Câncer.
É irônico que Sérgio Buarque de Holanda lance mão do exemplo da cultura ritualística japonesa para contrapor ao nosso informalismo cordial.
O povo japonês é amante do rito.
Pode-se dizer numa perspectiva mimética (René Girard) que a cultura japonesa é um exemplo perfeito de mediação externa a partir do sagrado ritualista, que preserva o modelo arcaico xintoísta amalgamado com inúmeras influências externas que foram absorvidas e harmonizadas para o contexto japonês.
O povo brasileiro, por outro lado, é um exemplo de delicado equilíbrio de mediação interna, na qual o informalismo predomina nas relações sociais, precariamente suspensa pela mediação externa possibilitada pela cultura de origem lusa fundamentalmente impregnada de valores cristãos.
O nosso informalismo gera um elevado nível de hipocrisia social vigente, traduzida em sentimentalismos e desejo de intimidade para com o próximo, este elemento de emotividade é um hábito arraigado em todos os aspectos da vida social, como uma constante empatia fruto da valorização de elementos morais fortemente cristãos, oriundos de nossa formação cultural atávica lusa e cruzada.
O elemento de cordialidade é uma dimensão essencial do cidadão luso-brasileiro, cuja existência tem sido testada por séculos de adversidades sócio-políticas, resultantes de um processo de formação populacional resultante de sucessivos processos de conquistas, de submissão forçada de uma diversidade de povos e de dominação de territórios imensos, que foram milagrosamente consolidados por um poderoso, e corrupto, Estado Moderno, que exerceu de forma pioneira, na Idade Moderna, o poder absoluto sem freios e contrapesos durante séculos, pois devemos lembrar que Portugal já estabelecera um Estado Nacional já no século XIV.
E, assim, o ser cordial é um tipo de caráter humano desenvolvido como uma estratégia de sobrevivência, forjado num ambiente hostil e desafiador, na qual as relações de fundo emocional são um tipo de salvaguarda à instabilidade reinante nas instituições, e, mesmo que parte deste estado de coisas seja fruto da própria antropologia da cordialidade, não é sua origem primeira, pois a própria cordialidade é uma forma de racionalidade, em que o indivíduo se arma de inteligência emocional, como uma estratégia social, que evoluiu por séculos e se mostrou eficaz, ao ponto de estabelecer as bases da cultura lusa, e de muitas nacionalidades, entre elas a nossa.
Na expressão de Robert C. Solomon não sabemos "o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa" (Solomon, p. 24), e destas faço minhas as palavras para dizer o mesmo sobre o homem cordial, cujos elementos emoção/razão entretecidos de forma complexa e eficaz não podem se ignorados em sua mútua correlação, pois a emoção:
"É uma forma de interagir com outra pessoa (situação ou tarefa) e um modo de situar-se no mundo" (Solomon, p. 41).
Werner Nabiça Coêlho - 02/09/2016
Excertos:
***
(Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.)
Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo - ela pode exprimir-se em mandamentos em sentenças. (p. 52)
Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse esta fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. (p. 53)
Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualística da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social, é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência - e isso se explica pelo fato da atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no "homem cordial": é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. (p. 53)
Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual reservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. (p. 53)
Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo. (p. 53)
***
(Robert C. Solomon, Fiéis às nossas emoções: o que elas realmente nos dizem; tradução de Miriam Gabaglia de Pontes Medeiros. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.)
...emoções são processos que por sua própria natureza, levam tempo e podem, de fato, continuar ininterruptamente. Não são necessariamente conscientes. (p. 22)
Um grande problema é nossa tendência a pensar em uma emoção como um evento psicológico separado. (p. 22)
Uma emoção é um processo complexo que engloba vários e diferentes aspectos da vida de uma pessoa, incluindo interações e relações com outras pessoas, bem como seu bem-estar físico, ações, gestos, expressões, sentimentos, pensamentos e experiências semelhantes. (p. 22)
...gostaria de iniciar com a opinião - hesitante e irônica que posse ser - de que nós não sabemos o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa. (p. 24)