A universalidade do sofrimento, sua inutilidade, seu tédio, as mazelas da família e a solidão de não tê-la, o império do fingimento universal, melancolia, depressão, desespero, feiura e mediocridade, são elementos da banalidade do sofrer, mas, a partir deste momento, fique com Peter Kreeft:
Não é só o caso de o sofrimento não ser merecido; é que parece
ser casual e inútil, sem nenhum motivo ou razão concreta; puro
acaso, apenas espalhando o mal sem fim. Para todo aquele que se torna
um herói e um santo por meio do sofrimento, há dez outros que
parecem perder sua humanidade, tornar-se depressivos ou desesperados
(p. 19-20)
E a
universalidade do sofrimento – aí é que está a questão. Seu
vizinho, seu melhor amigo, seu médico, seu mecânico, todos possuem
mágoas profundas e abafadas das quais você nem chega a tomar
conhecimento, da mesma forma que eles não conhecerão as suas.
Todos, pelo mundo afora, estão sofrendo. E, se você não se
apercebe disso, é porque ou é bastante ingênuo e acredita na
aparência das pessoas, ou tem a pele tão resistente que não se
magoa, nem sente a mágoa das outras pessoas em sua volta.
Não
tenho a intenção de insultar ninguém; todos fingimos muito. Faz
parte do nosso instinto animal tentar ocultar nossas feridas para que
não nos façam sofrer mais. Da mesma forma que os animais cobrem
suas feridas no corpo para se proteger, fazemos o mesmo com nossas
feridas da alma. Estamos todos envolvidos em um grande fingimento
universal.
Um
aspecto dessa mágoa que todos carregamos é a família. Todos
nascemos em uma família, e muitas pessoas depois se dedicam a
construir novas famílias. A família é a primeira e mais íntima
fonte de relacionamentos entre o eu e o outro. Mas essa fonte de
nossos amores mais profundos é também fonte de nossas maiores
mágoas. Se você faz parte de uma família, seja ela um lar
destruído pelo divórcio, alcoolismo ou ressentimentos, seja ela
unida, você sabe que aqueles mais próximos de você são os que
mais o magoam, de forma deliberada ou não. E, se você não faz
parte de uma família, você sabe como dói profundamente ser
sozinho.
Olhe
as pessoas nas ruas. Observe os seus rostos. Olhe mesmo.
Especialmente na rua de uma grande cidade. Não há ali somente
tráfego e confusão – isso nem é tão terrível; Jesus estava
ocupado e correndo a maior parte do tempo também –, mas há
sofrimento. Veja a linha dos rostos das pessoas, os músculos, a
dureza, a tensão, sua maneira de olhar, o medo, a estupidez. “A
grande massa dos homens leva a vida em calmo desespero”, escreveu
Thoreau. (p. 20)
Fisicamente,
as pessoas sofrem menos do que nunca em nosso século, especialmente
nessa geração, graças em grande parte aos progressos da medicina.
Existem anestésicos, uma das maiores invenções de todos os tempos.
Já há cura para um número cada vez maior de doenças. A sociedade
industrial oferece à maioria das pessoas uma vida confortável, uma
vida que somente uns poucos ricos poderiam alcançar décadas atrás.
Muitas pessoas chegam aos setenta ou oitenta anos de idade com menos
de meia dúzia de ocasiões em que realmente tenham sentido uma dor,
uma agonia insuportável. Há um século, seria sorte passar um único
ano sem sentir uma dor que chamaríamos hoje em dia de alucinante.
Imagine um mundo sem anestésicos. Pense bem. Quando foi a última
vez que você sentiu a dor de uma espada cortando o seu braço? (p.
20-1)
E
ainda assim as pessoas hoje se machucam bem mais psicológica e
espiritualmente do que nunca. As taxas de suicídio explodem. A
depressão aumenta. A violência desenfreada é moda. O tédio se
espalha. (Na verdade, a própria palavra tédio
não existia em nenhuma das línguas pré-modernas!) A solidão é
crescente. E a procura da fuga por meio das drogas é cada vez maior.
[…]
Estamos
fugindo de nós mesmos (ou tentando fugir, já que a única coisa da
qual não conseguimos escapar, além do próprio Deus, é de nós
mesmos) porque estamos todos magoados, bem no fundo dos nossos
corações. Geralmente esse não é o tipo de sofrimento trágico,
incomum, espetacular, mas um enorme manto escuro que se abate sobre
nossas vidas como fuligem, cobrindo tudo de tédio, enfado,
melancolia, feiura e mediocridade. Vivemos como robôs, obedientes à
programação social que recebemos, sem nunca levantar as perguntas
fundamentais de nossa existência. Nossas próprias paixões estão
adormecidas. Vamos para a cama em obediência à publicidade
carregada de sexo, e pulamos da cama em obediência aos alarmes dos
relógios. Não temos quase nenhum motivo para sair da cama e quase
todos os motivos para deitar nela. (p. 21)
KREEFT,
Peter. Buscar sentido no sofrimento. Tradução de Alexandre
Patriarca. São Paulo: Edições Loyola, 1995.