sábado, 7 de janeiro de 2017

ERIC VOEGELIN: REFLEXÕES AUTOBIOGRÁFICAS - 01

Eric Voegelin

Eliz Sandoz, na introdução às Reflexões autobiográficas, diz que Eric Voegelin nesta obra possui a virtude de nos fazer participar da concretude de sua experiência pessoal, e que este filósofo serve-nos de guia no caminho para fora da "confusão do colapso das instituições, do embotamento intelectual e da corrupção pessoal" (p. 14).

Voegelin buscou "recuperar a realidade em um mundo dominado por segundas realidades, sem falar em realidades virtuais" (p. 15), e, neste ponto, Sandoz destaca o conflito entre a percepção da realidade empírica e as percepções ideológicas e metastáticas, pelo que extraímos algumas definições da obra Israel e a revelação a respeito do assunto:


"A fé metastática é uma das grandes fontes de desordem, se não a principal, no mundo contemporâneo; e é uma questão de vida ou morte para todos nós compreender o fenômeno e encontrar remédios para combatê-lo antes que ele nos destrua"
 
"A ideologia é a existência em rebelião contra Deus e o homem. É a violação do primeiro e do décimo mandamentos, se quisermos empregar a linguagem da ordem israelita, é a nosos, a doença do espírito, empregando a linguagem de Ésquilo e Platão. A filosofia é o amor ao ser por meio do amor ao Ser divino como a fonte de sua ordem. O Logos do ser é o objeto próprio da investigação filosófica, e a busca da verdade concernente à ordem não pode ser conduzida sem um diagnóstico dos modos de existência na inverdade" (Eric Voegelin, Israel e a revelação, 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2014, p. 31-2)

Se bem que ainda não consegui distinguir a noção de segundas realidades (ideologia?) e realidades virtuais (fé metastática?), este ponto merece alguma pesquisa complementar.



Cronologicamente, o capitulo dois precede o primeiro, pois relata a experiência de Voegelin no ensino médio, seu domínio da matemática, favorecido pelo ensino de seu professor Philip Freud, ao ponto de, já naquela tenra idade, compreender a teoria da relatividade, como ele mesmo relata, e, inclusive, referido docente chamou a atenção para:
"o fato de que, de acordo com a nova teoria dos átomos, quando você serra um pedaço de madeira, está separando estruturas atômicas. A possibilidade de separar estruturas atômicas cm uma serra de mão era para ele a coisa mais intrigante de toda a estrutura da realidade física, Freud vira ali o problema da redução e da autonomia dos vários estratos da realidade do ser." (2007, p. 28)

Voegelin, ainda a propósito do tema da "estratificação da realidade", rememora que, num teste de química, ignorava que o ácido cítrico poderia ser obtido espremendo-se limões, mas, cuja composição conhecia teoricamente,  e,  por conta disso, tirou nota baixa.

Ainda no ensino médio, Voegelin relata como passou um semestre estudando Hamlet, com base nas teorias de psicológicas de Alfred Adler.

Interessante a passagem em que Voegelin afirma que foi marxista por alguns meses, após ler O Capital, por conta do prestígio da Revolução Russa, mas, que o efeito desta conversão durou pouco quando passou a estudar economia.

De tal relato emerge um nível de ensino escolar que hoje julgamos ser digno de pós-graduação, e, então, quando se inicia o ensino superior propriamente dito, temos as influências, entre outros, de Mises e Kelsen, que por meio de seus seminários, tanto na universidade, quanto privados, possibilitaram relações pessoais e intelectuais fecundos, que perduraram por toda a sua vida.

Voegelin relata, ainda, que a instituição da República,  com a queda da monarquia, intensificou-se o antissemitismo na sociedade e no governo, fato que impediu diversos de seus amigos judeus de seguirem carreiras universitárias, fazendo-os enveredar para o mundo dos negócios, enquanto, simultaneamente, continuavam suas vivências intelectuais.
Max Weber
Chegamos, assim, ao terceiro capítulo, em que relata a influência de Max Weber, o que me atiçou curiosidade de ler o texto "Ciência e política: duas vocações", sob a perspectiva apontada por Voegelin, de que Weber compreendeu que os chamados "valores" são ideologias, não proposições científicas (p. 31), e, que o citado sociólogo aplicava a ética da responsabilidade, segundo a qual autor de determinada ação é responsável pelas consequências de seus atos, e que  "A intenção moralizadora não justifica a imoralidade da ação" e a "Ideologia não é ciência, e os ideais não substituem a ética" (p. 32).

Voegelin indica, porém, que a metodologia de Weber errou ao excluir os "juízos de valor", na busca de uma certa neutralidade científica não ideológica, que implicava em não se distinguir valores ideológicos, arbitrários, de juízos de valores éticos, racionais, o que tornava não declarado e "oculto" o próprio fundamento ético-cultural, judaico-cristão e greco-romano, da ética da responsabilidade.

Portanto, Weber, formalmente, por uma questão de metodologia, ignorava as razões empíricas existentes no desenvolvimento histórico e cultural que fundamentam a "a ordem racional da existência" (p. 33) da civilização Ocidental, assim, o desenraizamento de tais fundamentos lança a pessoa e a sociedade na "espiral de aventuras idealistas e ideológicas em que os fins se tornem mais fascinantes que os meios." (idem), e, para concluir, Voegelin considera que:

"Weber comprovou de uma vez por todas que, no campo das ciências sociais e  políticas, não se pode ser um acadêmico qualificado sem conhecer profundamente o assunto. Isso significa adquirir o conhecimento comparado das civilizações - não apenas da civilização moderna, mas também da medieval e da antiga, e não apenas do Ocidente, mas Também do Oriente Próximo e o Extremo Oriente - e, em contato com as diversas especializações científicas, manter atualizado esse conhecimento. Quem assim não procede não tem o direito de dizer-se um cientísta empírico, e decerto deixa a desejar como acadêmico da área." (2007, p. 33)

Fonte:
 

Eric Voegelin, Israel e a revelação, 3ª edição, São Paulo, Edições Loyola, 2014.
 

Eric Voegelin, Reflexões autobiográficas, São Paulo, É Realizações, 2007.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

RENÉ GIRARD: O RISO E AS LÁGRIMAS

Abaixo transcrevo uma passagem do artigo "Um equilíbrio perigoso", no qual René Girard tece considerações muito interessantes a respeito do papel do riso e do choro como elementos catárticos, tanto na tragédia como na comédia, e, como ambos são fenômenos fisiologicamente semelhantes, e, como, psicologicamente, cumprem o mesmo papel. 

"O esquema fundamental de um presunçoso vítima da sua presunção aparece constantemente. Mas se esta proximidade é real, porque é que os efeitos da tragédia são diferentes dos da comédia? 

Quando se assiste a uma tragédia, ou, mais geralmente, ao que se chama um "melodrama", podemos reagir derramando lágrimas - metafóricas ou mesmo reais. Com a comédia reage-se com o riso. O riso e as lágrimas opõem-se como dois contrários, duas emoções no mais alto grau distintas uma da outra.
 


Os dois são fenômenos físicos; neste plano a comparação é fácil. Revela bem depressa que a oposição entre o riso e as lágrimas é muito exagerada, ou antes, como para tantas oposições culturais, estabelecida a partir de uma base comum, o que se abandona geralmente quando prevalecem as considerações de gênero e de técnica literárias. Quando, fora do estreito contexto literário, se põe a pergunta: "O que é o riso?", é preciso descobrir esta base comum ainda escondida, sob pena de limitar o alcance da resposta.

 


Os fisiologistas dizem que a função normal das lágrimas é lubrificar os olhos. Mas deitam-se lágrimas mais abundantes que habitualmente, sobretudo em duas ocasiões. Em  primeiro lugar, quando acontecimentos considerados como "tristes", quer sejam reais ou representados, provocam este estado emocional de que acabámos de falar; depois, quando entra  para um olho um corpo estranho, um grão de pó, por exemplo, que irrita. Estas lágrimas, de ordem puramente física, têm como evidente função de afastar o intruso, expulsá-lo do órgão que ele insiste querer irritar. (p. 201)

Sabe-se que Aristóteles,  na sua Poética, empregava a palavra catarse para representar o efeito produzido pela tragédia nos espectadores. A palavra significa ao mesmo tempo purificação religiosa e purga médica. Uma medicina catártica purga o corpo de seus maus humores.
 
[...]
 
Quando o corpo humano reage a uma representação trágica com lágrimas, parece comportar-se segundo Aristóteles. Apesar de o olho não ter nenhum grão de pó para eliminar, funciona contudo como se tivesse que expulsar qualquer coisa. Deve existir, em qualquer lado no complexo alma/corpo, uma necessidade de expulsar, uma vez que dispomos desse órgão expulsivo. A objeção que as lágrimas não são feitas para isso é inaceitável. Porque o olho funciona metaforicamente. Face a uma necessidade do corpo, o corpo, muito frequentemente, reage como um todo; mobiliza diversos órgãos que, apesar de completamente inaptos para responderem à função pedida, não deixam de tentar trazer a sua ajuda. E pode acontecer que esta reacção aparentemente excessiva seja reveladora da natureza da necessidade em questão.


William James



Não é minha intenção voltar a William James e à sua teoria fisiológica. Não considero o corpo como origem da emoção mas, mais convencionalmente, como um acompanhamento, quase no sentido musical do termo. Assim como um solista, aqui invisível e inaudível, em todo o caso para nós, se acompanha ao piano, da mesma maneira o sentimento trágico se acompanha com lágrimas. (p. 201-2)
 
[...]
 
Para voltarmos agora ao rito, notar-se-á que as lágrimas fazem parte integrante dele. Trata-se de um detalhe que conta mas que se minimiza ou abandona muitas vezes. Porque queremos à viva força opor o riso e as lágrimas como dois contrários, somos levados a pôr o acento nos únicos aspectos do riso que parecem diferenciá-lo do choro. Mas aqui as considerações teóricas importam muito menos do que aquilo que se poderia chamar a praxis moderna do riso. O homem moderno ri constantemente quando não há razão para isso. O riso é a única forma socialmente aceite de cartase. Por conseguinte, todas as espécies de riso que não têm nada a ver com o riso são confundidas com ele: o riso de cortesia, o riso sofisticado, o riso mudano. Todos estes falsos risos aumentam muitas vezes a tensão que devem aliviar e, naturalmente, não se acompanham com manifestações autênticas e involuntárias como as lágrimas.

 
Fonte: http://www.institutodafelicidade.org.br/?pg=riso


Apesar dos sintomas físicos do riso se imitarem mais facilmente do que os das lágrimas, tornam-se também involuntários e reprimíveis quando se trata do verdadeiro riso. O corpo inteiro é agitado por convulsões; o ar é rapidamente expulso para fora das vias respiratórias graças aos movimentos reflexos análogos à tosse ou ao espirro. Todas estas manifestações têm a mesma função que as lágrimas visto que o corpo age como se tivesse qualquer coisa de concreto a expulsar. A única diferença é que um número maior de órgãos entra em jogo no riso.
 
O que se aproxima mais de um riso puramente natural e físico é sem dúvida a reacção do nosso corpo a uma sensação de cócegas. Analisada só em função da sua intensidade, esta reacção parece fora de proporção com a fraqueza do estímulo mas pode muito bem acontecer que corresponda à verdadeira natureza da ameaça não ainda identificada. Num contexto de hostilidade natural, poderia acontecer que uma ameaça de morte iminente, uma mordedura de cobra, por exemplo, não fosse precedido por nenhum outro aviso a não ser umas ligeiras cócegas. O carácter desconhecido e não precisamente localizado do estímulo, pelo menos no imediato, aumenta a intensidade da reacção.
 
O riso, noutros termos, sobretudo nas formas menos "culturais", parece significar, exactamente como as lágrimas, que devemos livrar-nos de alguma coisa; mas essa qualquer coisa é aqui mais importante e deve ser eliminada mais depressa do que no caso de simples choros. Se o corpo é a orquestra, o solista invisível e inaudível é acompanhado por um número muito maior de instrumentos. (p. 203-4)

Note-se também que a partir de uma certa intensidade as lágrimas se transformam em soluços e acabam por se parecer cada vez mais com o riso. Diz-se de alguém cujo riso é incontrolável, que ri portanto verdadeiramente e não finge, que chora a rir. (p. 204-5)
 
Há por conseguinte entre o riso e as lágrimas uma diferença não de natureza mas de grau, residindo precisamente o verdadeiro paradoxo na maneira como se marca esta diferença. Ao inverso do que dita o senso comum, o elemento de crise é mais agudo no riso que nas lágrimas. O riso parece mais próximo de um paroxismo tendendo a traduzir-se por verdadeiras convulsões, mais próximo de um esforço frenético de rejeição e de expulsão. Mas do que as lágrimas, é assimilável a uma reacção negativa de todo o ser a um perigo que lhe parece intransponível. (p. 205)
 
[...]
 
Ri-se verdadeiramente de qualquer coisa que poderia e, num sentido, deveria acontecer a qualquer pessoa que ri, incluindo nós. Creio que isto mostra claramente a natureza da ameaça, despercebida mas sempre presente, contra a qual o riso não pára de se defender, a do objecto ainda não identificado que precisa de se expulsar. A pessoa que ri está prestes a ser anexada pela estrutura de que a sua vítima já faz parte. Enquanto ri, acolhe e rejeita ao mesmo tempo a percepção desta estrutura na qual o objecto do seu riso já está preso; acolhe-a de boa vontade na medida em que é outro que não ele que é apanhado na armadilha, mas ao mesmo tempo tenta mantê-la à distância. A estrutura, que nunca é individual, tende a fechar-se sobre a pessoa que ri. Compreende-se agora porque é que o riso, mais do que as lágrimas, tem as propriedades de uma crise; a estrutura é muito mais visível no cómico do que no trágico; a autonomia do espectador é nela mais imediatamente e mais gravemente ameaçada. (p. 209)
 
[...]
 
O riso físico, como dissemos, tem como objectivo repelir uma agressão vinda do exterior e de proteger o corpo contra uma eventual intrusão. mas as quase convulsões do riso, se se prolongam, acabam por resultar no desmoronamento desde domínio de si que deveriam preservar. O verdadeiro riso torna-nos fracos e reduz-nos quase a uma semi-impotência. (p. 210)

René Girard, A voz desconhecida do real: uma teoria dos mitos arcaicos e modernos, Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

domingo, 1 de janeiro de 2017

É JANEIRO!


Janus, que viria a dar o nome ao primeiro mês do nosso calendário, é o deus da Iniciação na Antiguidade, detentor das duas chaves, a de Ouro e a de Prata, representando os Grandes e os Pequenos Mistérios (essas duas chaves, assim como a barca de Janus, premanecem depois como atributos de S. Pedro e dos outros Papas). Deus da Iniciação, ele é também, por isso mesmo, e para os Romanos, o protector das corporações de artífices.


Janus está igualmente relacionado com os solstícios - "Janus Caeli", a "porta do Céu", é o Inverno; "Janus Inferni", a "porta do inferno", é o Verão. Estas duas festas solsticiais vão depois tornar-se as dos dois S. João do Cristianismo [...]. Neste aspecto, Janus é o Senhor do triplo tempo e da eternidade - como Cristo. E não esqueçamos que o aspecto esotérico da tradição cristã é geralmente chamado de "joanita".
 

O deus é sempre representado com duas faces, uma anterior e outra posterior, ou uma exterior e outra interior, exotérica e esotérica. Mas existe ainda uma terceira face, a invisível, não representada, não representável, por isso mesmo a mais importante. (p. 8)

 
(Trecho extraído do prefácio de Antônio Carlos Carvalho)


Fonte: Antônio Telmo, História secreta de Portugal, Lisboa, Vega, 1977.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O MARTÍRIO VERMELHO DOS ARMÊNIOS

Monte Ararat - Armênia
A Armênia foi a primeira nação a proclamar o cristianismo como religião de Estado no ano de 302, e, segundo a tradição armênia, o cristianismo foi introduzido no país desde suas origens por dois discípulos de Jesus Cristo, os apóstolos Bartolomeu e Tadeu, e, por volta do ano 200, o cristianismo já se encontrava bastante difundido entre os armênios.


A Armênia é uma nação cuja história é digna de prosa e verso em estilo épico, pois além de ter sido a primeira nação cristã, foi este povo, juntamente com a Irlanda, responsável pela preservação da cultura clássica em meio aos desastres das invasões bárbaras, como, também, foi uma das propagadoras missionárias da verdade cristã.

Jean Pierre-Alem em seu precioso livreto intitulado A Armênia, relata a tentativa do rei Persa impor a conversão dos armênios ao culto do fogo,  realça que o cálculo deste rei era sobretudo político, pois o mesmo "julgava que essa conversão afastaria definitivamente os armênios de Bizâncio e lhes tiraria qualquer possibilidade de executar um desses rompimentos de aliança dos quais eles haviam dado tantos exemplos num passado recente."





Os armênios numa resolução unânime expressaram submissão política, mas afirmaram sua fé cristã, nos seguintes termos:

Nada nos moverá de nossa fé, nem anjos e nem homens, nem espadas e nem águas, ou qualquer outra violência imaginável. Nossos bens e nossas posses estão a tua disposição; podes usa-los como bem entenderes. Desde que nos concedas a liberdade de crença, tu serás nosso único senhor na terra, assim como Cristo é nosso único Deus no céu. Se porém exigires de nós mais que isso, eis nossa decisão: nossas vidas estão em tuas mãos…; tu tens a espada, nós a cerviz…Tombaremos como mortais que somos e passaremos às fileiras dos imortais…É inútil querer negociar o que é inegociável. Nossa fé não tem origem humana e nossas convicções sobre ela resultam de uma experiência amadurecida. Somos inseparavelmente unidos ao nosso Deus. Nada poderá romper essa união, jamais e em tempo algum. ( Loureiro, Heitor. Breve histórico dos primórdios da Igreja Apostólica Armênia. In: Rhema. Juiz de Fora: v. 13, n. 40, 2006.)

Este ato de defesa da fé cristã enfureceu o rei dos reis, que convocou os príncipes armênios, e estes optaram pela apostasia, para em seguida voltarem a seu país acompanhados de 760 magos persas, e, ao cruzarem a fronteira, o povo armênio atacou e dispersou os sacerdotes masdeístas, e, como qualquer político diante da fúria de um povo indignado, submeteram-se à vontade da multidão de cristãos e renegaram a conversão pagã.



Diante desta situação, a Armênia preparou-se para sofrer o ataque persa, e a resistência foi confiada a Vardan Mamikonian.

Bizâncio omitiu-se de enviar qualquer auxílio, mesmo após insistentes pedidos de Vardan, e, assim, um exército de 60.000 homens da Armênia foi levantado, para enfrentar um inimigo superior, numa luta desesperada.

O combate travou-se na planície de Avarair, no dia 02 de junho de 451. Os armênios foram vencidos e Vardan Mamikonian, morto.


Mas as perdas persas foram consideráveis. O rei dos persas que devia, além disso, sustentar uma guerra difícil contra os hunos, ao norte de seus Estados, mostrou-se relativamente conciliador. Mandou prender e torturar alguns padres, deu à Armênia um novo marspã, mas desistiu de impor o masdeísmo a seu novo protetorado.


Miniatura do século XV representando a batalha

Assim, na planície de Avarair, os armênios, ao perder uma batalha heróica salvaram sua fé.


Tal batalha é celebrada todo ano, no mês de fevereiro, numa grande cerimônia patriótica, a "festa de Vardan".

A história da Armênia possui inúmeros outros episódios memoráveis, todavia, julgamos importante destacar o papel que os armênios desempenharam no mundo pela ação de seus viajantes, de seus missionários, de seus emigrados, das colônias da diáspora, e, principalmente seu papel na preservação da cultura clássica.

Jean Pierre-Alem refere que os gôdos sofreram a influência dos armênios quando passaram pelas margens do Mar Negro, e foram provavelmente evangelizados por eles. Muitos reis e príncipes visigodos tinham aliás nomes armênios (Artavasdés).

No século XI, os missionários armênios difundiram-se até a longínqua Islândia.

Mas é a importância do povo armênio na preservação de parte considerável da cultura clássica que destacamos, fato que se inicia com base na invenção do alfabeto armênio, por volta de 405.

Antes dessa data, os armênios usavam o grego como língua literária, e o persa como língua administrativa, e, com a adoção de um alfabeto nacional foi sedimentada sua personalidade nacional, sua religião e a profunda vontade de independência, que tão magnificamente demonstraram ao longo de toda a sua dramática história.

Ryszard Kapuscinski, em sua obra Imperium comenta que vencido no campo, o exército armênio procurou pôr-se a salvo nos Scriptoria. O que são os Scriptoria? Podem ser celas monásticas, cabanas ou até mesmo cavernas. Nesses Scriptoria há sempre uma espécie de prancheta e um copista escrevendo de pé.

A consciência nacional armênia sempre esteve acompanhada pelo senso da ameaça de extermínio. E, ligado a isso, uma fervorosa necessidade de salvação, de pôr a salvo seu mundo.

Na impossibilidade de defendê-lo com a espada, então que se conserve a memória. Assim surge esse fenômeno único da cultura mundial: o livro armênio. Dispondo de um alfabeto próprio, os armênios sem demora começaram a escrever livros.





Já no século VI traduziram para o armênio toda a obra de Aristóteles. 


Até o século X haviam vertido a maioria dos filósofos gregos e romanos, centenas de títulos da literatura antiga.

Os armênios têm a mente aberta e grande capacidade de absorção. 


Traduziram tudo o que lhes caiu nas mãos. 

Grandes obras da literatura antiga e da cultura mundial chegaram até nós graças às traduções armênias.

Os copistas se lançavam sobre todas as novidades e logo as traziam para o gabinete.

Quando os árabes conquistaram a Armênia, os armênios traduziram todos os clássicos árabes.

Quando foi a vez dos persas, traduziram todos os autores persas.

Quando em disputa com Bizâncio, aproveitaram para levar tudo o que havia no mercado para traduzir.

Começaram a surgir bibliotecas inteiras. Deviam ser acervos imensos: em 1170, turcos saldjúquidas destroem em Snik uma biblioteca contendo 10 mil volumes. Eram todos manuscritos armênios.

Até os dias de hoje conservam-se 25 mil manuscritos armênios.

Desses, mas de 10 mil encontram-se em Ierevan, em Matenadaran. Quem quiser ver os restantes, terá que fazer uma volta ao mundo.

As maiores coleções encontram-se na Biblioteca São Jacó em Jerusalém, Biblioteca São Lázaro em Veneza e Biblioteca da Congregação Mekitariana em viana. Lindas coleções estão em Paris e Los Angeles.

E, aqui concluo a exposição relativa ao fato de que os armênios e seu  Martírio Vermelho preservaram não somente a fé, mas o conhecimento da civilização ocidental, em  meio ao naufrágio do mundo antigo.


Sugestão de leitura:

 “Lost Birds” uma outra forma de retratar o Genocídio Armênio
 
Livros

Fontes:

Jean Pierre-Alem, A Armênia, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1961.
 

Ryszard Kapuscinski, Imperium, São Paulo, Companhia das Legras, 1994.

O MARTÍRIO BRANCO DOS IRLANDESES


Thomas Cahill em sua obra Como os irlandeses salvaram a civilização, relata a história de como a vida monástica intelectual e laboriosa surgiu primeiro na Irlanda, como os irlandeses preservaram a cultura clássica, desenvolveram a liberdade de pensamento e a tolerância cultural de forma inédita, e, por fim, lançaram-se ao mundo europeu conturbado e destruído pelas invasões bárbaras, para reconstruir a civilização letrada ocidental.




Cahill relata que a dádiva de São Patrício aos irlandeses foi o seu cristianismo: o primeiro cristianismo desromanizado da História, um cristianismo sem a bagagem sócio-política do mundo greco-romano, um cristianismo que se aculturou sobremaneira ao ambiente irlandês, e daqui adiante, peço perdão aos puristas e cultores de textos originais, mas, confesso que transcrevo diversas passagens da obra de Cahil, para melhor descrever tais eventos históricos.

O Édito de Milão, que, em 313, declara a legalidade da nova religião e a torna a menina dos olhos do novo imperador, o cristianismo é aceito por Roma, e não Roma pelo cristianismo!

A cultura romana pouco se alterou com a interação, e há quem defenda a idéia de que, no processo, o cristianismo perdeu muito daquilo que o distinguia.

Porém, no caso da interação com Patrício, a Irlanda, carecendo do poder e das implacáveis tradições romanas, é aceita pelo cristianismo, que a tranforma em Algo Novo, algo jamais visto: uma cultura cristã onde a escravidão e o sacrifício de seres humanos tornam-se inadmissíveis, e onde a guerra, embora impossível de ser erradicada, diminui de maneira considerável.

Ocorre que os irlandeses eram verdadeiros aficionados do combate físico, e seria impossível que as lutas entre tribos desaparecessem completamente. Mesmo assim, as novas leis, influenciadas pelas normas do Evangelho, muito inibiam tais conflitos, determinando que só era permitido recorrer às armas em causas graves.

No momento em que os filhos guerreiros do coração de Patrício, convertidos, depõem as espadas, atiram longe as facas usadas nos sacrifícios e deixam de lado as correntes da escravidão, tornam-se irlandeses e irlandesas.

Com efeito, a sobrevivência de uma identidade psicológica irlandesa é uma das maravilhas da história da Irlanda.

Ao contrário dos Padres da Igreja continental, os irlandeses jamais se preocuparam em demasia com a erradicação das influências pagãs, às quais faziam vista grossa e demonstravam certo apreço. Festas pagãs continuaram a ser comemoradas, motivo pelo qual, hoje em dia, celebramos as festas irlandesas de May Day e hollowe'en.*

A experiência irlandesa é singular na história das religiões porque a Irlanda foi o único local onde o cristianismo foi introduzido sem derramamento de sangue.

Não há mártires irlandeses (a não ser quando, 11 séculos após Patrício, Elisabeth I encarrega-se de criá-los).

Essa carência de mártires incomodava os irlandeses, aos quais uma morte gloriosa e violenta representava um emocionante desfecho para a vida.

Uma vez que toda a Irlanda havia recebido o cristianismo sem luta, os irlandeses teriam de encontrar alguma nova modalidade de martírio, algo ainda mais interessante do que as histórias terríveis que começavam a lhes chegar às mãos, vindas do continente europeu: as chamadas 'martirologias' com as quais Patrício e seus sucessores ensinavam leitura.

No final do século V, início do século VI, os irlandeses encontraram um solução, a qual denominaram o 'Martírio Verde', em oposição ao tradicional 'Martírio Vermelho', caracterizado pelo derramamento de sangue.

Com o propósito de estudarem as Escrituras e aproximarem-se de Deus, os Mártires Verdes abandonavam o conforto e os prazeres da sociedade e isolavam-se no topo de uma montanha, ou em uma ilha deserta, em suma, em algum local fora da jurisdição tribal.

Todavia, em pouco tempo, com a crescente organização de monastérios, os desejos extremos do Martírio Verde foram abandonados em favor do monasticismo, movimento que, embora capaz de apoiar e mesmo incitar excentricidades, ao mesmo tempo, sujeita tais tendências a um contrato social.

Uma vez que a Irlanda carecia de cidades, os estabelecimentos monásticos desenvolveram-se e tornaram-se os primeiros centros populacionais, sedes de prosperidade, arte e conhecimento, sem precedentes na história do país.

A generosidade irlandesa estendia-se não apenas a uma grande variedade de pessoas, mas, também, a uma variedade de idéias.

Tão despreocupados com respeito à ortodoxia de pensamento quanto o eram com relação à uniformidade da prática monástica, os irlandeses acolheriam em suas bibliotecas tudo o que lhes estivesse ao alcance das mãos. Estavam determinados a nada excluir.

Com uma catolicidade despojada, os clérigos que defendiam um pensamento convencional, e que haviam sido treinados para valorizar a literatura cristã, abrem um grande espaço à moralidade dúbia dos clássicos pagãos.

A indicação mais clara, talvez, da situação do escriba e estudioso daquela época está contida em um poema irlandês de quatro estrofes, interpolado em um manuscrito do século IX, cujo erudito conteúdo inclui comentários sobre Virgílio, em latim, e uma lista de provérbios gregos:


Eu e Bichano, meu gato,
Praticamos o mesmo ato;
Caçar rato é sua alegria,
Caçar palavra, minha agonia.


Mas dá muito gosto ver
Trabalharmos com prazer;
Em casa, sempre ao batente,
Juntos, distraímos a mente.


Ele prega o olho no muro,
Esperto, enxerga no escuro;
Eu prego o olho no papel,
E do saber sou um réu.


Assim, vivemos em paz,
Eu e Bichano, meu ás;
Lado a lado pela vida,
Cada um na sua lida.


Os livros eram, como diríamos no jargão de hoje, abertos e multifacetários e intertextuais, verdadeiros banquetes em que os escribas incluíam um pouco de tudo que os interessasse em termos culturais, linguísticos e estilísticos. Não voltaríamos a encontrar esse tipo de autor até James Joyce escrever Ulisses.

Os irlandeses receberam o letramento à sua maneira, como algo lúdico.

Puseram-se, então, a inventar idiomas. Os integrantes de uma sociedade secreta, formada no final no século V (período imediatamente após a consolidação do processo de letramento dos irlandeses), trocavam escritos em sofisticadas e impenetráveis variações do latim, a que chamavam Hisperica Famina e faz lembrar a linguagem onírica em Finnegna Wake, ou mesmo a linguagem de J.R.R. Tolkien criaria para seus elfos e duendes.

Nada fez brotar o lúdico espírito irlandês mais do que a própria atividade da cópia.

A princípio não havia, na Irlanda, grupos de escribas trabalhando no mesmo scriptorium, apenas eremitas e monges que atuavam isoladamente, em suas celas diminutas, ou ao ar livre, se as condições climáticas fossem propícias, copiando textos a partir de livros emprestados, trazendo o original antigo sobre um dos joelhos, o pergaminho novo sobre o outro.

Até mesmo os mais ilustres entre esses homens eram pessoas simples que apreciavam o contato com a natureza. (No século IX, um escriba irlandês afirma estar trabalhando embaixo de uma árvore, enquanto ouve o canto límpido de um pássaro, pulando de galho em galho.)

Ainda hoje, Nicolete Gray, no livro A History of Lettering, afirma, com relação à célebre página "Chi-Rho", que as três letras gregas - o monograma de Cristo - são "mais uma presença do que apenas letras".


"Custamos a crer", escreve Kenneth Clark, "que durante muito tempo - quase 100 anos - o cristianismo ocidental sobreviveu  apenso a locais como Skellig Michael, um rochedo situado a 30 quilômetros da costa irlandeza, projetando-se a 218 metros acima do nível do mar" (os 100 anos a que se refere abrangem um período que vai do final do século V, após a morte de Patrício, ao final do século VI, momento em que, conforme vamos constatar, os monges irlandeses restabelecem a ligação entre a Europa barbarizada e as tradições do letramento cristão).

Skellig Michael

Gregório de Tours escreveu um triste epitáfio para o letramento (na Europa continental) do século VI: "Nestes tempos em que a prática das letras declina, ou melhor, desaparece das cidades da Gália, não existe um estudioso sequer treinado em expressão escrita, capaz de descrever, em prosa ou em verso, um quadro que se passou."

Enquanto a Europa era incendiada, a vida cultural e religiosa na Irlanda prosseguiu em relativa paz, e, em certa altura do século VI o Monje Columba deu o passo que faltava ao instituir o Martírio Branco, pois, Columba tomou a atitude mais difícil para um irlandês, algo mais difícil até do que abrir mão da própria vida: deixar a Irlanda.




Se o Martírio Verde fracassara, o martírio que se seguiria seria tão marcante quanto o Vermelho; a partir daquele momento, todos os que seguiram o exemplo de Columba atenderam ao chamado do Martírio Branco, todos os que zarparam sob o céu branco da manhã, rumo ao desconhecido, para sempre.

Foi assim que a tradição monástica irlandesa começou a se espalhar além das fronteiras do país, pois os monastérios irlandeses já abrigavam milhares de internos, que, ao regressarem aos seus locais de origem, levavam consigo o conhecimento irlandês. Agora, os monges irlandeses iriam colonizar a Europa barbarizada, assim, os Mártires Brancos, trajados como druidas, em sóbrias túnicas brancas, percorreram a Europa, fundando monastérios.

Antes do final do século VIII, os exilados chegam à Morávia e até em Kiev existem vestígios dos Mártires Brancos.
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*O dia 1º de maio, conhecido como "Beltaine", era uma sagração da primavera, ocasião em que os participantes acendiam fogueiras, erigiam mastros enfeitados e desfrutavam de liberdade sexual; a ùltima noite de outubro, conhecida como Samain (Hallowe'en), marcava o início do inverno, sendo a noite em que fantasmas e outras criaturas nefastas, vindas de 'outro mundo', tinham permissão para assombrar os vivos.

Fonte:

Thomas Cahill, Como os irlandeses salvaram a civilização, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1999.

Poema de São Mancham de Offaly, discípulo de São Patrício


Concedei-me, Ó Cristo, a graça de achar
- Ó Filho do Deus vivo! -
Um casebre em local ermo,
Para servir-me de morada.

Um pequeno e claro poço,
Bem ao lado da casinha,
Onde a graça vai lavar
Os pecados do lugar.

Um belo bosque, ao redor,
A fim do vento proteger,
E aos pássaros dar um lar,
Santuário a cantar.

Que seja voltada para o Sul,
Com brisa fresca e regato,
Um pasto verde e bom solo
E frutos que caiam ao colo.

Que eu escolha companheiros,
Em número e qualidade,
Homens humildes e calmos,
E que saibam cantar salmos.

Quatro atrás de três, três de quatro,
O cântico a recitar;
Seis rezando à porta sul,
Seis ao norte a declamar.

Dois a dois, meus doze amigos,
Não posso o número errar,
Orando comigo ao Rei
Que dá-nos a luz e a lei.

Linda igreja, um lar para Deus,
Ornada com linhos finos;
Que o Evangelho na capela
Brilhe sempre à luz da vela.

Casebre que a todos guarde,
Que a todos dê um conforto,
Negue a lascívia e a arrogância,
Promova o bem e a constância.

Tudo aquilo que preciso
Tenho ganho, sem pagar;
Verduras, aves e peixe,
Frutas, mel e lenha em feixe.

Minha roupa e meu sustento
Vêm do Rei, tão singular;
Deixai-me, às vezes, a sós
A rezar por todos nós.






Fonte: 

Thomas Cahill, Como os irlandeses salvaram a civilização, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1999.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

KARL POPPER E A FALSEABILIDADE INEFICAZ


Karl Popper  em "A lógica da pesquisa científica" expõe o problema da indução, que é “a indagação acerca da validade ou verdade de enunciados universais que encontrem base na experiência” (p. 28). Uma vez que os enunciados singulares ou particulares são uma inferência indutiva, e os enunciados universais são hipóteses ou teorias, Popper afirma:

“Equivale isso a dizer que o enunciado universal baseia-se em inferencia indutiva. Assim, indagar se há leis naturais sabidamente verdadeiras é apenas outra forma de indagar se as inferências indutivas se justificam logicamente” (p. 28)

Seguindo a senda kantiana, Popper afirma que “o princípio de indução há de constituir-se num enunciado sintético, ou seja, enunciado cuja negação não se mostre contraditória, mas logicamente possível” (p. 29), para em seguida levantar o aspecto contraditório deste princípio empírico-indutivo, pois:


"é supérfluo e deve conduzir a incoerências lógicas [...] Pois o princípio da indução tem de ser, por sua vez, um enunciado universal [...] a tentativa de alicerçar o princípio da indução na experiência malogra, pois conduz a uma regressão infinita [...] Kant procurou vencer a dificuldade admitindo que o princípio de indução (que ele apresentou como “princípio da causação universal”) é “válido à priori”” (p. 29)

Popper afirma que a “lógica da inferência provável, ou lógica da probabilidade” conduz a uma regressão infinita ou à doutrina do apriorismo kantiano (p. 30), e, para evitar tais armadilhas lógicas, que julgou encontrar tanto no probabilismo quanto no apriorismo, propõe sua teoria do método dedutivo de prova "ou de concepção segundo a qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada” (p. 30).

Esta proposta, do método dedutivo de prova, se funda em uma distinção entre psicologia do conhecimento e lógica do conhecimento, esta se preocupando com "relações lógicas" aquela com "fatos empíricos" (p. 31), e, assim, para Popper a lógica indutiva é inadequada. por ser uma invasão de problemas psicológicos no campo dos problemas epistemológicos, razão pela qual postula a eliminação do que julga ser um tipo de psicologismo, indevido no âmbito da pesquisa científica, isto é, postula uma forma de "neutralidade científica".

Popper afirma o "axioma" de que “o trabalho do cientista consiste em elaborar teorias e pô-las à prova” (p. 31), e, assim o:

"estágio inicial, o ato de conceber ou inventar uma teoria […] A questão de saber como uma idéia nova ocorre ao homem […] não interessa à análise lógica do conhecimento científico” (p. 31).
Neste ponto há uma reminiscência de David Hume, em um sentido inverso ao proposto pelo filósofo inglês, pois enquanto Hume se preocupa com a origem das idéias com base  nas relações empíricas de fato, para Popper a lógica do conhecimento científico diz respeito não a questões de fato, mas a questões inerentes às relações lógicas que  validam as teorias, pois para "que um enunciado possa ser examinado logicamente sob esse aspecto, deve ter-nos sido apresentado previamente” (p. 31)

Então, tal como David Hume, Kant e demais filósofos cartesianos, Popper se apega à tese de existência de um pressuposto limite do conhecimento humano, com base em alguma precondição auto-limitadora.

Popper nega a possibilidade de autoconhecimento e transcendência, ao afirmar que “não existe um método lógico de conceber idéias novas ou de reconstruir logicamente esse processo […] Toda descoberta encerra um “elemento irracional” ou “uma intuição criadora”, no sentido de Bergson” (p. 32)
A intuição é irracional? O processo de constituição de ideias racionais é irracional? Para Karl Popper, sim, é irracional, inclusive, ele cria uma nova morada para a incognoscível "coisa em si" kantiana, ao afirmar o que livremente denominamos de um mistério inefável relativo ao nascimento das ideias.

Nesta toada, Popper afirma que o “método de submeter criticamente à prova as teorias, e de selecioná-las conforme os resultados obtidos, acompanha sempre as linhas expostas a seguir” (p. 33) possui os seguintes passos:

1º – Comparação lógica das conclusões – coerência


2º – Investigação da forma lógica (empírica, científica ou tautológica)


3º – Comparação com outras teorias (avanço científico?)


4º – Comprovação da teoria por meio de aplicações empíricas das conclusões que dela se possam deduzir


Pelo que pudemos observar até aqui, Popper define que o processo de apuração da prova científica é necessariamente de base dedutiva, num processo circular de caráter eminentemente teórico, cuja conclusão se dará pelo teste empírico das "conclusões" obtidas de forma dedutiva, percebo que tal processo é uma forma elaborada de reafirmar a precedência do pensamento sobre a matéria, preconizado por Descartes.

O processo se inicia com “predições” na forma de enunciados “que não sejam deduzíveis da teoria vigente” (p. 33), submetida à apreciação da comunidade científica, e, após, sua validade é estabelecida mediante a prova científica de cunho experimental, pois na "medida em que a teoria resista a provas pormenorizadas e severas […] foi “corroborada” pela experiência passada” (p. 34).

Popper busca demonstrar que não se supõe a verdade da teoria, a partir de enunciados particulares, nem que a ciência é oriunda da revelação empírica “verificável”, e, por fim, define que a superação do "problema da indução" é obtida pela aplicação da prova lógico-dedutiva testada empiricamente, com base no consenso acadêmico-científico.


Este tipo de colocação implica no "problema da demarcação" consistente no “problema de estabelecer um critério que nos habilite a distinguir entre crenças empíricas, de uma parte, e a Matemática e a Lógica, bem como os sistemas “metafísicos”, de outra” (p. 35), e neste ponto, nos encontramos, novamente, sob a sombra do pensamento de David Hume, pois revela-se que Popper participa do preconceito moderno contra o conceito de verdade transcendente (substancial e essencial) ao objeto da ciência, uma vez que esta se ocupa de bens materiais e/ou mensuráveis.

Demarcar, neste caso, é justificar a cegueira para tudo o que não é considerado inserido dentro do limite do corte metodológico, para depois afirmar que o objeto recortado é a totalidade daquilo que podemos apreender.




Popper relata neste ponto:

“Se, acompanhando Kant, chamamos ao problema da indução “problema de Hume”, poderíamos chamar ao “problema de Kant” o problema da demarcação” (p. 35)

E prossegue distinguindo os velhos positivistas que defendem conceitos derivados da experiência, dos positivistas modernos que consideram a ciência um "sistema de enunciados”, não um sistema de conceitos, e, que “os positivistas realmente desejam não é tanto uma bem sucedida demarcação, mas a derrubada total e a aniquilação da Metafísica” (p. 36).



Popper ao criticar o indutivismo típico de Wittgenstein, que define a redução da linguagem a proposições elementares, portadoras de significados dotados de sentido, com base empírica, lembra que “as leis científicas também não podem ser logicamente reduzidas a enunciados elementares da experiência” (p. 37).

Após tais considerações, que criticam a redução da ciência à linguagem originada numa base empírica, Popper define o critério de demarcação, como um objeto de consenso, e por isso imune às contradições da indução, pois é uma “proposta para que se consiga um acordo ou se estabeleça uma convenção” (p. 38), e, mais uma vez, afirma a irracionalidade da razão em seu aspecto prático e empírico, como forma concreta de tomada de decisão, e que: 

“A determinação desse objetivo é, em última análise, uma questão de tomada de decisão, ultrapassando, por conseguinte, a discussão racional” (p. 39)

Portanto, antes de haver uma qualquer pesquisa científica, há a prevalência de uma decisão "política" no sentido de uma práxis, cujo caráter empírico gera a demarcação do âmbito do objeto de estudo da própria ciência.

Após fundamentar o que julga ser o fundo social-político-irracional da demarcação do conhecimento científico, Popper descreve que o seu sistema teórico objetiva estabelecer um efetivo “sistema que se denomina “ciência empírica” que pretende representar apenas um mundo: o “mundo real”, ou o “mundo de nossa experiência”" (p. 40)

Neste sentido, de forma esquemática descrevo o sistema teórico de Popper:

  • Adoção de enunciados sintéticos (não-contraditórios; mundo possível)

  • Aplicação do critério de demarcação (não-metafísico = representar um mundo de experiência possível)
Karl Popper
E, enfim, chegamos à necessidade da "falseabilidade", como "critério da demarcação", para se contrapor ao critério de demarcação inerente à lógica indutiva implica na criação do dogma positivista do significado fundado em dados empíricos, que é fundado no constante julgamento sobre a verdade ou falsidade do conhecimento, com base em dados oriundos da indução, pelo que Popper afirma:

“Contudo, só reconhecereis um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema” [...]“Em outras palavras, não exigirei que uma sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recursos a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, uma sistema científico empírico” (p. 42)


Popper erige seu critério da falseabilidade com base na “assimetria entre verificabilidade e falseabilidade, assimetria que decorre da forma lógica dos enunciados universais. Estes universais nunca são deriváveis de enunciados singulares, mas podem ser contraditados pelos enunciados singulares" (p. 43)





Para que sejam reconhecidos como verdades científicas os enunciados lógico-hipotéticos, expressados mediante enunciados universais obterão sua validação, ou invalidação, mediante enunciados singulares oriundos da experiência científica, mediante o teste empírico de uma determinada hipótese previamente erigida, pois “aquilo que caracteriza o método empírico é sua maneira de expor à falsificação, de todos os modos concebíveis, o sistema a ser submetido à prova” (p. 44).

Para Popper “enunciados só podem ser logicamente justificados por enunciados” (p. 45), e “a objetividade dos enunciados científicos reside na circunstância de eles poderem ser intersubjetivamente submetidos a teste” (p. 46), assim sendo, classifica-os em:

  • Enunciados científicos objetivos

  • Enunciados psicológicos subjetivos




Popper condena à morte todos os princípios metafísicos não-falseáveis (princípio da identidade, princípio do terceiro excluído, princípio da não contradição, etc.), pois são inverificáveis empiricamente:

“os enunciados básicos devem ser por sua vez suscetíveis de teste intersubjetivo, não podem existir enunciados definitivos em ciência – não pode haver, em ciência, enunciado insuscetível de teste e, consequentemente, enunciado que não admita, em princípio, refutação pelo falseamento de algumas das conclusões que dele possam ser deduzidos” (p. 49)
Em síntese:

a) o "problema da indução" ou "problema de Hume" faz surgir a necessidade de uma regressão infinita, que pode implicar na aceitação de inferências probabilísticas, ou a aceitação de juízos apriorísticos, o que invalidaria a aceitação do método empírico-indutivo, e, assim, afirma que o método científico deve ser de base dedutivo-empírica na "concepção segundo a qual uma hipótese só admite prova empírica após haver sido formulada” (p. 30).


b) o "problema da demarcação" ou "problema de Kant" se origina na necessidade de eliminar a abordagem positivista, que incorre no erro inerente ao "problema da indução", para considerar que o objetivo da ciência não é a "a derrubada total e a aniquilação da Metafísica” (p. 36), mas, sim, a busca objetiva do conhecimento, com base em  "um acordo ou se estabeleça uma convenção” (p. 38), que defina o objeto da ciência, uma vez que o momento que o antecede é inerentemente irracional, em seu aspecto prático e empírico, como forma concreta de "tomada de decisão" (p.39).

c) uma vez que seja reconhecido que a ciência deve partir de formulação lógica e dedutivas, será necessária a operação do "critério da falseabilidade", mediante a qual somente seja reconhecido como verdade científica a hipótese racional e lógica que descreve enunciados universais, que será validada ou não, mediante enunciados singulares, oriundos do teste empírico.

d) assim, somente será considerado objeto da ciência o que o cientista for capaz de enunciar logicamente, mediante enunciados universais, testados e validados empiricamente, para, assim, obter "enunciados objetivos científicos", pois a falseabilidade somente opera perante enunciados universais verificáveis empiricamente, mediante teste intersubjetivo, que estabelecem "uma convenção, o que, implicitamente, é mais um anúncio da "morte de Deus", pois a falseabilidade é uma declaração implícita da "morte da metafísica", quando esta é considerada como um mero "enunciado psicológico subjetivo", uma vez que o critério da falseabilidade é a celebração do relativismo consensual de uma classe de iluminados.

POPPER, KARL R. Colocação de alguns problemas fundamentais. A lógica da pesquisa científica. 16. ed. Tradução Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2008, p. 27-50.