quinta-feira, 21 de abril de 2016

O Diálogo Íon: a coisa mais bela é ser divino, e não um louvador técnico.





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 Sócrates afirma a natureza sagrada da poesia descompromissada do utilitarismo da técnica, compara a arte do rapsodo à habilidade do retórico, louva a natureza divina da arte e demonstra o caráter técnico da ciência como ferramenta de dominação, questiona sobre a prevalência de uma ou de outra, ao fim afirma que é uma escolha ética valorizar o dom artístico.

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O diálogo platônico Íon investiga a arte da rapsódia, inquire sobre esta ser uma dádiva divina, única e inspirada, ou uma técnica discursiva com finalidades meramente sociais.

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Íon é um rapsodo especializado em Homero, mas incapaz de interpretar outros poetas.

Sócrates afirma invejar a técnica de Íon por seu repertório, memória e conhecimento em relação à poesia de Homero, e observa que sua habilidade consiste em

saber de cor seu pensamento, não apenas suas palavras” (530c)


Sócrates elogia como “terrível” (531a) a habilidade de Íon, por seu profundo e especializado conhecimento a respeito de Homero para descrever o sentido técnico de tal domínio do conhecimento especializado:

Mas, então, em suma, digamos, que a mesma pessoa reconhecerá, sempre, muitos falando das mesmas coisas, tanto quem fala bem quanto quem fala mal; ou, se ela não reconhecer aquele que fala mal, é evidente que nem o que fala bem, acerca da mesma coisa, ela reconhecerá” (532a).

A “mesma pessoa será juiz suficiente de todos que falarem das mesmas coisas” (532b) e “os poetas fazem poemas em relação às mesmas coisas”.

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Ora, segundo Sócrates, dado o domínio da arte exercido por Íon este deveria ser um especialista em todos os poetas, e não somente em Homero, o que motiva o rapsodo a questionar:

Mas, então, qual é a causa, Sócrates, de eu, quando alguém discorre acerca de outro poeta, nem prestar atenção, nem ser capaz de contribuir com algo digno de ser dito, mas simplesmente cair no sono, ao passo que, se alguém faz menção a Homero, eu acordo imediatamente e presto atenção e sou desembaraçado para falar?” (532c)

Sócrates, então, saca a hipótese de que Íon é objeto de possessão divina, e se dominasse a técnica e ciência poderia tratar “acerca de todos os outros poetas”, pois uma:

técnica poética leva em consideração o todo” (532c).

Toda técnica é objeto do “mesmo tipo de investigação” (532d), pois a técnica em geral sempre considera o todo (532e).

Íon não possui uma técnica, como conhecimento do todo, pois ele se restringe a Homero, e neste momento é que Sócrates cita a pedra que Eurípedes chamou de magnética” (533d).

Por analogia ao processo imantação a Musa:

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cria entusiasmados, e através desses entusiasmados uma série de outros entusiastas é suspensa” (loc.cit.).

Bons poetas despontam não por sua técnica, mas por serem possuídos pelos deuses, e por isso são criados “belos poemas” (534a), e assim Sócrates declama:

Pois coisa leve é o poeta, e alada e sacra, e incapaz de fazer poemas antes que se tenha tornado entusiasmado e ficado fora de seu juízo e o senso não esteja mais nele. Enquanto mantiver esse bem, o bom senso, todo homem é incapaz de fazer poemas e de cantar oráculos” (534b)

A arte poética é, portanto, uma “concessão divina”, e se os poetas “tivessem, em virtude de uma técnica, a ciência de falar belamente em um gênero, também teriam em todos os outros” (534c), seriam, então, técnicos e dominadores de todos os gêneros literários.

Uma vez dominadores da técnica e da ciência do discurso, os poetas seriam retóricos e sofistas, não mais belos e divinos, pois:

os poetas não são nada além de intérpretes dos deuses” (534e).

Sócrates afirma que o rapsodo no exercício de sua arte se torna fora de seu juízo, como ocorre com Íon ao ficar entusiasmado que ao ser possuído pela Musa:

acredita estar junto das coisas de que tu falas” (534c).

A função do rapsodo é ser o elo entre o poeta e o espectador, no processo magnético de suspensão do juízo e de penetração no entusiasmo e na possessão divina.

Sócrates comenta que Íon, ao ouvir quando alguém canta uma canção de Homero:

"...imediatamente ficas desperto e a tua alma dança e te tornas desembaraçado em relação ao que dizes” (536c).

Sócrates lembra Íon que a poesia também trata de conhecimentos compreendidos dentro do âmbito de técnicas específicas, e afirma que há uma forte tendência à especialização, pois “a cada uma das técnicas foi atribuído pelo deus o poder de conhecer uma certa obra”. Sócrates então questiona sobre a natureza do conhecimento técnico:

as coisas que conhecemos por uma técnica, não conheceremos por outra?” (537c).

as mesmas coisas devem necessariamente ser conhecidas pela mesma técnica, e não as mesmas por outra técnica, mas se é outra, necessariamente também outras serão as coisas conhecidas” (538a).

aquele que não tiver uma técnica não será capaz de avaliar as coisas bem ditas ou feitas em virtude dessa técnica?” (538b).

Íon é estimulado a ler uma passagem de Homero, que descreve a técnica da Muromaquia, ocasião em que este concorda que Sócrates fala a verdade a respeito de ser uma técnica, na qual o adivinho é o melhor juiz, e assim Sócrates se manifesta sobre verdade poética: “E tu também, Íon, tu dizes a verdade ao dizer essas coisas” (538d).

Logo em seguida, Sócrates questiona sobre “a técnica rapsódica” (538e).

Após muitas armadilhas dialéticas, que demonstram que “a técnica rapsódica não conhecerá todas as coisas, nem o rapsodo” (539a), Íon afirma que se trata de uma técnica militar, pois ele saberia “quais coisas convém a um general dizer” (539d).

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Íon acaba por declarar que detém uma técnica rapsódica, que segundo Sócrates poderia habilitá-lo a ser escolhido como general, como já ocorrera dos atenienses em outras ocasiões escolher estrangeiros como Íon para tal nobre função:


Mas tu, simplesmente, como Proteu, te transformas em todo tipo de formas, girando para cima e para baixo, até que, terminando por escapar-me, surges como um general, para que não me exibas como és terrível na sabedoria acerca de Homero. E se então, tu és técnico, como eu acabei de dizer, garantindo se exibir acerca de Homero, tu me enganas completamente, e é injusto; e se não és técnico, mas, por uma concessão divina, possúido por Homero, nada sabendo, tu falas muitas e belas coisas acerca do poeta, como eu afirmei acerca de ti, não és nada injusto. Escolhe então se preferes ser considerado um homem justo ou divino” (542a).


Assim Íon confessa que “é muito mais belo o ser considerado divino” e Sócrates conclui:


Isso, então, a coisa mais bela, te é concedida por nós, Íon: ser divino, e não um louvador técnico de Homero” (542b).
Referência:
PLATÃO. Íon. Introdução, tradução e notas Victor Jabouille. Lisboa: Inquérito, 1988

SER, CONHECER E SABER - PRINCÍPIO, MEIO E FIM DO HOMEM

Bombassaro (1993: 21-23) define saber como poder manusear, poder compreender, poder dispor[...] o saber está vinculado ao mundo prático[...]. Portanto, a investigação do saber como conceito epistêmico remete ao prático , enquanto que conhecer geralmente refere-se a algo com o qual temos uma experiência direta e até pessoal , e, que a diferença específica entre estas categorias reside no fato de que "conhecer" parece indicar uma convivência do falante com aquilo do qual se fala , enquanto que o saber é experiência indireta, pois é possível dizer que se sabe algo acerca de algo ou alguém sem que isto implique uma experiência direta com aquilo do qual se fala .

Em síntese, teremos que o conhecimento é apreensão cognitiva de natureza subjetiva, pessoal, direta e abrangente, que o sujeito realiza sobre a realidade, enquanto que o saber é um vínculo objetivo com a realidade, um saber fazer empírico, indireto e parcial que deve ser convertido em conhecimento.

Em outra perspectiva Giovanni Reale (1995: 55) firma a diferença entre metafísica e ciências particulares ao considerar que a metafísica considera o "inteiro" do ser, ao passo que as ciências particulares consideram apenas "partes" específicas do ser .

Com base na afirmação da existência do saber metafísico, definimos que o conhecimento parte da objetividade sensível, passa pela coleta de indícios e provas inteligíveis que descrevem e explicam esta realidade, e, ao fim, com a depuração dialética das diversas teses explicativas revelam-se os princípios ordenadores, que possibilitam a compreensão cada vez mais aprofundada do ser, possibilitando maiores conhecimentos, favorecendo, sobre tudo, que o amor ao saber frutifique em mais conhecimentos, pragmáticos e teóricos, estes destinados à contemplação do bom, do belo e do justo, e aqueles destinados a concretizar tais anseios e ideais.

Logo, o conhecimento é fruto da apreensão do ser inteligível, partindo-se inicialmente do sensível que tem por fim revelar as leis e princípios que aproximam o humano da sabedoria, filosofia e ciência, contemplação e ação. Portanto, para saber, devemos conhecer o ser.

Referências

BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da epistemologia – como se produz o conhecimento . 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992.

REALE, Giovanni. O saber dos antigos – terapia para os tempos atuais. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

Texto confeccionado por
(1)Werner Nabiça Coelho

Atuações e qualificações
(1)Advogado. Especialista em Direito Tributário e Professor da Faculdade Metropolitana da Amazônia - FAMAZ.
Bibliografia:

COELHO, Werner Nabiça. SER, CONHECER E SABER - PRINCÍPIO, MEIO E FIM DO HOMEM. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 22 de mar. de 2006.
Disponivel em: < http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/2517/ser_conhecer_e_saber__principio_meio_e_fim_do_homem >. Acesso em: 21 de abr. de 2016.

CULTURA MELANCÓLICA?




O litoral atlântico da Penísula Ibérica sempre foi um ponto de passagem das grandes civilizações ocidentais, por lá, sucessivamente, transitaram fenícios, gregos, celtas, romanos, godos e muçulmanos, resultando numa misceginação, não só biológica, mas, principalmente, e, num alto grau, de natureza cultural. 

Celtas 
D'entre todos os povos europeus, o que habitava a beira do atlântico da Ibéria, o futuro povo português, foi o mais permeável, pois absorveu todos os impactos culturais, e foi mais impertubável, pois por nenhuma das neoculturas consumou-se a absorção deste povo costeiro a ponto de eliminar uma certa identidade autárquica, uma certa identidade, uma certa "saudade" do solo da língua portuguesa, que como dizia o poeta Olavo Bilac, tem "o trom e o silvo da procela / e o arrôlo da saudade e da ternura".


E, assim, no decorrer dos séculos e milênios de intercâmbio, livre ou forçado, o povo português desenvolveu uma cultura capaz de absorver as energias culturais de todos os povos com os quais manteve contato, sem que com isso se tornasse um espelho, um mero reflexo, pois ao receber as cores culturais alheias, transmutou-as a tal ponto que aportuguesadas tornaram-se. 

Em síntese, a cultura que se originou em Portugal padece de um caso incurável de abertura e síntese, pois não discrimina nada e por nada se sujeita, a todos acolhe e a nenhum rejeita, mas, tudo o que absorve definitivamente, de uma vez por todas, torna-se parte da cultura portuguesa. 



Com este pano de fundo, podemos analisar a cultura forjada na velha Portugal, como sendo uma cultura melancólica, que sente saudades, mas não sabe por que. 

Leve-se em conta que apesar de sempre haver permanecido um núcleo mínimo de identidade da nação portuguesa, não há que se negar que em certa medida, o homen português, sofreu infinitas mutações culturais em sua formação, o que, paulatinamente, forjou um tipo humano inconstante, dado a extremos de exaltação e de depressão. 

Aristóteles 
Em termos aristotélicos a nação portuguêsa, aí se incluindo todos os falantes da "última flor do lácio", é, ela inteira, em maior ou menor grau, uma "civilização melancólica". 

Colacionamos o diagnóstico presente no problema número trinta do Sábio de Estagira, em que Aristóteles se pergunta: 

"Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem" (935, a, 10). . 

Parafraseando esta célebre questão, afirmo que a nação portuguesa, enquanto civilização milenar que é, é melancólica, porque é dotada de uma genialidade, de uma sabedoria prática, de uma "phronesis", que a torna individualmente um universo próprio, aberto enquanto sistema, a todas as influências, e fechado enquanto cultura, pois esse sistema aberto funciona como um "corpo negro ideal" como descrito pela física, ou seja, absorve todas as energias e cores circundantes, mas, continua inabalável, continua sendo português, por sinal, toda e qualquer cultura viva tem esta qualidade em certo grau, ocorre que a nossa a tem em grau exacerbado. 

O indivíduo médio pertencente ao universo cultural que se originou em Portugal, e, que forjou o núcleo da nacionalidade brasileira, é um ser ambíguo, pois participa de todas as culturas e não pertence a nenhuma, é como se o tipo humano português transitasse das culturas mais "quentes" até as mais "frias", e vice-versa, sem grandes dificuldades. 


Pode-se dizer que a marca indelével dos povos de língua portuguesa é exatamente esta presença de uma certa constante da inconstância, de estabilidade de um quadro de instabilidade, em suma, o homem gerado pela cultura portuguesa, incluindo-se aí o brasileiro e demais falantes do inculto e belo português, participam, potencialmente, de todas as variáveis culturais identificáveis, pois a todos se assemelha, sem que se converta em nenhum outro, é um paradoxo que muito desvela, pois indica uma vitalidade essencial à sobrevivência de um povo em tempos de homogeneização mundial das culturas.

Bibliografia:

COELHO, Werner Nabiça. Cultura Melancólica?. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 27 de jun. de 2003.

Disponivel em: < http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/1391/cultura_melancolica >. Acesso em: 21 de abr. de 2016.

sábado, 16 de abril de 2016

PLATÃO O CRIADOR DO ARGUMENTO DE “O SENHOR DOS ANÉIS” E O LIBERALISMO EM ESTADO BRUTO.



Estava a ler o Livro II da República de Platão, e, de repente não mais que de repente, dou de cara com o enredo básico do “Um Anel” e com o mito fundador do liberalismo em seu estado mais bruto.


Então quando Glauco questiona Sócrates sobre o conceito da justiça e da injustiça, passa a desenvolver uma hipótese na qual a liberdade de fazer o que bem lhe parecer deveria ser conferida para o homem, e, em seguida, seria possível verificar aonde esta liberdade vai os conduzir “pois é apenas a força da lei que os obriga a respeitar a igualdade” (359c), e, assim, Platão, pela boca de Glauco cria uma parábola, ou mito, do anel da invisibilidade:
A melhor maneira de alcançar a liberdade a que me refiro seria dar-lhes o poder que outrora teve Giges [...] era um pastor a serviço do rei da Lídia. Por ocasião de um grande temporal acompanhado de tremor de terra, o solo se abriu formando-se uma fenda no lugar em que ele levara a pastar o seu rebanho. Ao ver isso, tomado de admiração, penetrou na abertura, tendo percebido, segundo contam, entre outras maravilhas, um cavalo de bronze, oco e provido de pequenas janelas, através das quais, enfiando a cabeça, notou um cadáver que se lhe afigurou de proporções mais do que humanas: inteiramente despido, deixava apenas ver um anel de ouro numa das mãos. Retirando-o, voltou Giges para cima. Na reunião habitual dos pastores, para apresentarem ao rei o relatório mensal do estado do rebanho, compareceu também Giges com o anel no dedo. Como estivesse sentado no meio dos outros, aconteceu de virar casualmente a pedra do anel para a palma da mão, com o que imediatamente se tornou invisível para os circunstantes, que passaram a referir-se a ele como se já não se encontrasse ali presente. Cheio de admiração, tornou a mexer o anel e virou o engaste para o lado de fora, depois do que voltou a ficar visível. Tendo percebido o que se dera, fez várias experiências para ver se, de fato, era o anel dotado de tão extraordinária virtude, e sempre com o mesmo resultado: tornava-se invisível quando a pedra era virada para dentro, voltando a aparecer quando a dirigia para fora. De posse desse conhecimento, trabalhou para ser um dos mensageiros para o rei, e, chegado à corte, seduziu a rainha, com a sua ajuda atacou o rei, assassinou-o e apoderou-se do trono”. (359d-360b)


Glauco prossegue argumentando que este nível de liberdade de ação é capaz de corromper qualquer pessoa, mesmo o homem justo, pois o nível da liberdade seria o de “fazer tudo o mais, tal qual um deus entre os humanos” (360c).


Pois bem, de uma só tacada temos a semente milenar de O Senhor dos Anéis e, também, o argumento definitivo acerca da imoralidade da liberdade sem freios, que é o liberalismo sem moral, que se pretende politicamente correto com base em relativismos que desconsideram os valores que são verdadeiros e devem ser conservados.



Por enquanto é isso pessoal.



WERNER NABIÇA COÊLHO


A REPUBLICA DE PLATÃO: O JUSTO E O INJUSTO PERFEITOS

Platão criou duas hipóteses interessantes sobre o ato de ser justo, uma que antecipou o advento de Cristo, outra que forneceu o argumento da obra "O Príncipe" de Maquiavel.

Estava Sócrates a discutir com Glauco acerca da encarnação da justiça perfeita e de seu contrário, e assim prossegue o diálogo, que transcrevo em diversas linhas separadas para realçar o valor poético do texto:

"Para podermos, agora, formar juízo sobre a vida desses dois tipos de que falamos, o justo e o injusto no grau mais elevado, será preciso isolá-los completamente

...imaginemos cada um deles como perfeito na sua maneira de viver.

Para começar, façamos do homem injusto um profissional completo em sua atividade.

Um hábil piloto ou um médico sabem distinguir perfeitamente o que é ou não possível nas respectivas profissões, empreendendo aquilo e abandonando o resto.

No caso de cometer algum engano são suficientemente hábeis para repará-lo.

Da mesma forma deverá proceder o homem injusto, que praticará com todas as regras da arte as suas malfeitorias, sem nunca se deixar colher em flagrante; caso queira, de fato, apresentar-se como mestre consumado de injustiça, sem de nada privá-lo...

...à prática dos piores crimes alie a mais elevada reputação de justiça; se chegar a dar algum passo em falso, seja capaz de corrigi-lo;

no caso de vir a ser conhecido algum dos seus atos, terá de dispor de dotes oratórios para justificar-se, além de poder decidir-se pela violência, sempre que esta se fizer necessária, ora com o emprego da coragem pessoal e da força, ora com os recursos materiais e a influência de amigos que tenha sabido angariar.

O justo como verdadeiro homem de bem, se for despojado de todas as honrarias e bens materiais com exceção da justiça, para que venha a formar perfeito contraste com o anteriormente concebido:

sem haver cometido a menor falta, passa a ser o tipo acabado do criminoso.

Posta, assim, à prova sua justiça, vejamos se se deixa abalar da má reputação e das suas consequências.

Mostra-se firme até à morte;

sendo justo, pareça injusto enquanto viver, para que, tendo ambos atingido a meta extrema,
um da justiça e o outro da injustiça,

seja possível decidirmos qual deles foi o mais feliz."
(360e-361b)


(Platão, A República, UFPA, p. 97-9)


Como bem se pode observar, com o dito por Sócrates, o homem justo, ao atingir a perfeição da justiça, será tratado como criminoso, sendo levado a enfrentar a morte e a solidão, será execrado em vida e considerado um pária.

O homem injusto, no ápice da maestria de sua arte do mal, terá todos os recursos possíveis em seu favor, terá reputação, amigos, dinheiro e poder, para agir como bem entender, e, assim, iludir a todos ao seu redor com uma boa reputação imerecida, fruto da própria injustiça.

Apesar de a descrição da vítima perfeita também ser aplicável ao próprio Sócrates, com mais razão ainda tal descrição do portador da justiça perfeita se aplica ao Cristo, o cordeiro de Deus, despojado e dotado de mansidão até o amargo fim.

Enquanto que o homem dotado da injustiça, no mais alto grau, é o paradigma daquilo que Maquiavel descreveu, um senhor deste mundo, um sacrificador que lava suas culpas com o sangue alheio e não mede esforços para triunfar sobre o próximo.
WERNER NABIÇA COÊLHO