Sócrates
afirma a natureza sagrada da poesia descompromissada do utilitarismo
da técnica, compara a arte do rapsodo à habilidade do retórico,
louva a natureza divina da arte e demonstra o caráter técnico da
ciência como ferramenta de dominação, questiona sobre a prevalência de
uma ou de outra, ao fim afirma que é uma escolha ética valorizar o
dom artístico.
O
diálogo platônico Íon investiga a arte da rapsódia,
inquire sobre esta ser uma dádiva divina, única e inspirada, ou uma
técnica discursiva com finalidades meramente sociais.
Íon
é um rapsodo especializado em Homero, mas incapaz de interpretar
outros poetas.
Sócrates
afirma invejar a técnica de Íon por seu repertório, memória e
conhecimento em relação à poesia de Homero, e observa que sua
habilidade consiste em
“saber
de cor seu pensamento, não apenas suas palavras” (530c)
Sócrates
elogia como “terrível” (531a) a habilidade de Íon,
por seu profundo e especializado conhecimento a respeito de Homero
para descrever o sentido técnico de tal domínio do conhecimento
especializado:
“Mas, então, em suma, digamos, que a mesma pessoa reconhecerá, sempre, muitos falando das mesmas coisas, tanto quem fala bem quanto quem fala mal; ou, se ela não reconhecer aquele que fala mal, é evidente que nem o que fala bem, acerca da mesma coisa, ela reconhecerá” (532a).
A
“mesma pessoa será juiz suficiente de todos que falarem das
mesmas coisas” (532b) e “os poetas fazem poemas em
relação às mesmas coisas”.
Ora,
segundo Sócrates, dado o domínio da arte exercido por Íon este
deveria ser um especialista em todos os poetas, e não somente em
Homero, o que motiva o rapsodo a questionar:
“Mas, então, qual é a causa, Sócrates, de eu, quando alguém discorre acerca de outro poeta, nem prestar atenção, nem ser capaz de contribuir com algo digno de ser dito, mas simplesmente cair no sono, ao passo que, se alguém faz menção a Homero, eu acordo imediatamente e presto atenção e sou desembaraçado para falar?” (532c)
Sócrates,
então, saca a hipótese de que Íon é objeto de possessão divina,
e se dominasse a técnica e ciência poderia tratar “acerca
de todos os outros poetas”, pois uma:
“técnica
poética leva em consideração o todo” (532c).
Toda
técnica é objeto do “mesmo tipo de investigação”
(532d), pois a técnica em geral sempre considera o todo (532e).
Por analogia ao processo imantação a Musa:
“cria
entusiasmados, e através desses entusiasmados uma série de outros
entusiastas é suspensa” (loc.cit.).
Bons
poetas despontam não por sua técnica, mas por serem possuídos
pelos deuses, e por isso são criados “belos poemas”
(534a), e assim Sócrates declama:
“Pois coisa leve é o poeta, e alada e sacra, e incapaz de fazer poemas antes que se tenha tornado entusiasmado e ficado fora de seu juízo e o senso não esteja mais nele. Enquanto mantiver esse bem, o bom senso, todo homem é incapaz de fazer poemas e de cantar oráculos” (534b)
A
arte poética é, portanto, uma “concessão divina”,
e se os poetas
“tivessem, em virtude de uma técnica, a ciência de falar
belamente em um gênero, também teriam em todos os outros”
(534c), seriam, então, técnicos e dominadores de todos os gêneros
literários.
Uma
vez dominadores da técnica e da ciência do discurso, os poetas
seriam retóricos e sofistas, não mais belos e divinos, pois:
“os
poetas não são nada além de intérpretes dos deuses”
(534e).
Sócrates
afirma que o rapsodo no exercício de sua arte se torna fora de seu
juízo, como ocorre com Íon ao ficar entusiasmado que ao ser
possuído pela Musa:
“acredita
estar junto das coisas de que tu falas” (534c).
A
função do rapsodo é ser o elo entre o poeta e o espectador, no
processo magnético de suspensão do juízo e de penetração no
entusiasmo e na possessão divina.
Sócrates
comenta que Íon, ao ouvir quando alguém canta uma canção de
Homero:
"...imediatamente
ficas desperto e a tua alma dança e te tornas desembaraçado em
relação ao que dizes” (536c).
Sócrates
lembra Íon que a poesia também trata de conhecimentos compreendidos
dentro do âmbito de técnicas específicas, e afirma que há uma
forte tendência à especialização, pois “a cada uma das
técnicas foi atribuído pelo deus o poder de conhecer uma certa
obra”. Sócrates então questiona sobre a natureza do
conhecimento técnico:
“as coisas que conhecemos por uma técnica, não conheceremos por outra?” (537c).
“as mesmas coisas devem necessariamente ser conhecidas pela mesma técnica, e não as mesmas por outra técnica, mas se é outra, necessariamente também outras serão as coisas conhecidas” (538a).
“aquele que não tiver uma técnica não será capaz de avaliar as coisas bem ditas ou feitas em virtude dessa técnica?” (538b).
Íon
é estimulado a ler uma passagem de Homero, que descreve a técnica
da Muromaquia, ocasião em que este concorda que Sócrates fala a
verdade a respeito de ser uma técnica, na qual o adivinho é o
melhor juiz, e assim Sócrates se manifesta sobre verdade poética:
“E tu também, Íon, tu dizes a verdade ao dizer essas
coisas” (538d).
Logo
em seguida, Sócrates questiona sobre “a técnica rapsódica”
(538e).
Após
muitas armadilhas dialéticas, que demonstram que “a técnica
rapsódica não conhecerá todas as coisas, nem o rapsodo”
(539a), Íon afirma que se trata de uma técnica militar, pois ele
saberia “quais coisas convém a um general dizer”
(539d).
Íon
acaba por declarar que detém uma técnica rapsódica, que segundo
Sócrates poderia habilitá-lo a ser escolhido como general, como já
ocorrera dos atenienses em outras ocasiões escolher estrangeiros
como Íon para tal nobre função:
“Mas
tu, simplesmente, como Proteu, te transformas em todo tipo de formas,
girando para cima e para baixo, até que, terminando por escapar-me,
surges como um general, para que não me exibas como és terrível na
sabedoria acerca de Homero. E se então, tu és técnico, como eu
acabei de dizer, garantindo se exibir acerca de Homero, tu me enganas
completamente, e é injusto; e se não és técnico, mas, por uma
concessão divina, possúido por Homero, nada sabendo, tu falas
muitas e belas coisas acerca do poeta, como eu afirmei acerca de ti,
não és nada injusto. Escolhe então se preferes ser considerado um
homem justo ou divino” (542a).
Assim
Íon confessa que “é muito mais belo o ser considerado
divino” e Sócrates conclui:
“Isso,
então, a coisa mais bela, te é concedida por nós, Íon: ser
divino, e não um louvador técnico de Homero” (542b).
Referência:
PLATÃO.
Íon. Introdução, tradução e notas Victor Jabouille. Lisboa:
Inquérito, 1988