sexta-feira, 29 de abril de 2016

KANT, CIÊNCIA MODERNA E LIBERDADE HUMANA


RESUMO: Kant propôs seu sistema sobre uma base de positivismo científico, empirista e solipsista, ao definir espaço e tempo como condições formais a priori e invariáveis da realidade na forma de “intuição pura”, oriundos da subjetividade do sujeito, e, assim, garantidores da objetividade dos dados físicos, como justificativa transcendental da objetividade científica, percebida por um sujeito portador da dádiva natural da percepção empírica dos fenômenos físicos, todavia, a física contemporânea demonstra a relatividade e fluidez do espaço e do tempo, constatação que levanta questionamentos sobre a validade da visão kantiana de espaço e tempo como formas a priori, sobretudo depois das descobertas da física quântica que permitem uma percepção mais adequada da objetividade do universo e da liberdade humana inerente ao indeterminismo do real.


1. A teoria do conhecimento de Kant: “intuição purae percepção empírica.

Immanuel Kant (22/04/1724-12/02/1804) arquitetou sua teoria do conhecimento segundo o modelo empírico-lógico, que o mantém no centro dos debates teóricos até o presente, em grande parte devido ao divórcio entre as grandes áreas das ciências humanas e das ciências naturais.


A objetividade científica, segundo o método kantiano, é fundada na subjetividade do sujeito, conforme o “dogma” da ciência moderna de que o conhecimento teórico tem origem na abstração reducionista, que exclui os atributos qualitativos e considera somente os aspectos quantitativos, e é validado pela prova empírica mental, pois esta forma de validação é considerada somente em seu aspecto abstrato e matemático.

Esta objetivação simplificadora do objeto se apossa dos dados quantitativos, tomando a parte pelo todo, como se o objeto de estudo fosse somente uma matéria inerte e submissa ao agente pensante, numa postura de supremacia do sujeito pensante por sobre o objeto pensado, pois o objeto seria separado do sujeito, e este deveria agir como dominador daquele.

Kant prosseguiu a justificação do método cartesiano que vigorou de forma imperativa entre os séculos XVII e XIX, e propôs uma espécie de empirismo idealista para sustentar esta forma de imperialismo do pensamento e da idéia, numa postura de crítica da racionalidade reducionista sobre o mundo incrivelmente complexo e irredutível percebida pelo sujeito que é dotado do senso comum e do realismo ingênuo.


Assim a possibilidade do conhecimento científico-filosófico para Kant está no “âmbito do conhecimento teórico da razão pura não se estende além dos objetos dos sentidos” (1995, p. 35), tal proposição, também, trata da possibilidade de um conhecimento a priori dos objetos dos sentidos.

O conhecimento, assim, deverá ser confirmado pela intuição pura, portadora de um “esquemaa priori de espaço e tempo “ambos representando os objectos apenas como objectos dos sentidos e não como coisas em geral” (KANT, 1995, p. 36).


O sábio de Königsberg define o espaço e o tempo como intuições puras, pois:
"Eliminai, pouco a pouco, do vosso conceito de experiência de um corpo tudo o que nele é empírico, a cor, a rugosidade ou macieza, o peso, a própria impenetrabilidade: restará, por fim, o espaço que esse corpo agora totalmente desaparecido ocupava e que não podereis eliminar" (KANT, 2001, p. 65, itálicos no original).
O tempo não é um conceito empírico que derive de uma experiência qualquer. Porque nem a simultaneidade nem a sucessão surgiriam na percepção se a representação do tempo não fosse o seu fundamento a priori. Só pressupondo-a podemos representar-nos que uma coisa existe num só e mesmo tempo (simultaneamente), ou em tempos diferentes (sucessivamente)" (KANT, 2001, p. 96, itálicos no original).


Logo, segundo a proposta kantiana, as formas a priori do espaço e do tempo fazem parte de nossa estrutura cognitiva, e são condições de possibilidade para pensar, e perceber, os fenômenos sensíveis em geral.

O modo de pensar kantiano, sobre o tempo e o espaço é considerado a forma de “intuição pura” e esta seria o limite do conhecimento teórico.


Assim, tempo e espaço, como manifestações da “intuição pura” se tornam o pressuposto formal para a existência da própria percepção sensível, e, assim, funda-se o método “dogmático no interior desse âmbito, mediante leis que ele prescreve a priori à natureza enquanto totalidade dos objectos dos sentidos, mas sem jamais ir além desta esfera, para se alargar teoricamente com os seus conceitos” (KANT, 1995, p. 37, g.n.). 


Em resumo, o processo de validação da prova científica empírica é imanente ao sujeito portador de razão pura, pois: 


a) o sujeito possui a representação do conceito, denominada de razão pura ou teórica;


b) a razão pura é validada pela prova empírica, com a participação do sujeito dotado de “intuição pura”;


c) o sujeito, por uma dádiva da natureza, possui a percepção dos sentidos, cujo suporte está no esquema a priori fornecido pela “intuição pura” de espaço e tempo;


d) desta dádiva natural deriva a operação de subsunção entre a razão pura e o dado empírico, como forma de conferir certeza sobre a realidade percebida, num processo de aplicação (método) de leis abstratas e gerais (conceitos puros do entendimento) sobre casos concretos (fenômenos).


Com fundamento nesta perspectiva dogmática, na qual o dado fixo e referencial é a própria “intuição pura” de espaço e tempo, oriunda da subjetividade do sujeito como um dado apriorístico misteriosamente presente de forma pressuposta na mente do mesmo, uma intuição portanto, erige-se o sistema kantiano, e sua teoria do conhecimento, pois é a “intuição pura” que dá suporte à “razão pura”, base do conhecimento de conceitos puros do entendimento, que fundamenta os princípios e leis prescritas a priori para a totalidade dos objetos dos sentidos, que se manifestam em fenômenos.


A proposta filosófica kantiana, ao definir uma teoria do conhecimento com base em pressupostos da física newtoniana, e propor que a realidade é regida por dados fixos e imutáveis relativos ao espaço e ao tempo, supõe que o real possui uma estrutura conceitual que implica na aceitação do determinismo, o que por sua vez exclui qualquer concepção de livre-arbítrio, filosofia esta cuja influência e repercussões sentimos até hoje.


2. Stephen Hawking: o domínio da lei e a morte da filosofia.
 
 
Stephen Hawking, em sua obra “O Grande Projeto”, nos oferece uma filosofia da ciência com sabor kantiano ao afirmar que a “filosofia está morta” (2011, p. 07), pois alega que esta não se manteve a par dos desenvolvimentos modernos da ciência, especialmente da física.


Não obstante o obituário da filosofia feito por Hawking, este nos brinda com um argumento digno do racionalismo empirista kantiano, ao afirmar “o domínio da lei” soberana do determinismo, socorrendo-se de Galileu ao referir que “a observação é a base da ciência e de que o propósito da ciência é investigar as relações quantitativas existentes entre os fenômenos físicos” (2011, p. 20).


Nesta linha de raciocínio é feita a afirmação do determinismo científico como base de toda a ciência possível, uma vez que o domínio da lei não admite exceções.


Inclusive no que concerne ao estudo das relações humanas sociais, visto que os seres humanos “vivem no universo e interagem com objetos dentro dele, o determinismo científico deve valer igualmente para as pessoas” (HAWKING, 2011, p. 24), afinal “parece que somos apenas máquinas biológicas e que o livre arbítrio não passa de uma ilusão” (op.cit., p. 25).


Assim sendo, Stephen Hawking mesmo afirmando a morte da filosofia vitaliza a filosofia kantiana, cujo caráter dogmático funda-se no domínio da lei que julga a realidade, incluída a vida humana, sob o mais feroz determinismo científico.


3. O tempo e espaço sob a perspectiva da física contemporânea.





A física contemporânea demonstrou a relatividade e fluidez do espaço e do tempo, o que nos faz perguntar qual a validade do esquema a priori, pressuposto na intuição pura propugnada por Kant.


Hans-Peter Dürr (7/10/1929-18/05/2014) relata que a mecânica clássica não mais serve para explicar inúmeros fenômenos físicos, como os elétrons e o magnetismo.


A formulação da mecânica quântica revelou aos cientistas “para sua surpresa que os seus conhecimentos de, e o seu saber sobre, a realidade por eles imaginada em abstracto têm muito a ver com os métodos com os quais investigam a natureza” (DÜRR, p. 40).


Para esclarecer a afirmação supramencionada, lanço mão de uma versão resumida da parábola de Sir Arthur Eddington, citada por Dürr, ao descrever uma rede feita para pescar peixes de 05 centímetros ou mais.


Evidentemente, referida rede, somente pode pegar peixes dentro de seu limite de mensuração.


O cientista considera-se livre de recorrer ao que considera como vagas especulações, pois contenta-se com o que consegue apanhar com base nos limites possíveis de mensuração eleito por seu método de pesquisa.


Um metafísico, que aceite a objetividade do mundo, considerará tal método inadequado para abarcar toda a realidade dos peixes, pois o universo de peixes é muito mais amplo que os limites subjetivos da rede.


O epistemólogo, dá razão ao metafísico, sobre o caráter subjetivo e parcial da afirmação do cientista, acerca do tamanho mínimo dos peixes possíveis de captura, mas, afirma que não se deve perder tempo medindo todos os peixes, para determinar o tamanho mínimo desta categoria de ser, basta medir a própria rede, aquilo que não for observável e mensurável não será objeto de análise científica:


"Este modo epistemológico de encarar o problema confere validade absoluta à lei. Isto corresponde ao enunciado de Kant, segundo o qual as descobertas gerais fundamentais da Física dão bons resultados na experiência porque estabelecem condições necessárias para a experiência" (DÜRR, p. 42, itálicos no original)


A rede simboliza o estreitamento da realidade, e a alteração qualitativa operada pelo nosso pensamento, e relaciona-se à possibilidade de se conhecer cada vez melhor a “estrutura” e não o conteúdo da realidade, o que implica no risco de “descurar das coisas” (DÜRR, p. 44).


Compreender algo, segundo o método científico, “significa, em primeiro lugar, desmontá-lo aos ‘componentes’ respectivos, analisá-lo, ao todo volta-se fazendo a soma das suas partes” (DÜRR, p. 47).


As relações inerentes ao todo implicam numa totalidade maior que a soma das partes, tal como acontece com um ser vivo, afinal, não se realiza uma vivissecção de uma cobaia, com a separação de todos os órgãos vitais do objeto de estudo, para depois o método científico devolver a vida, que preliminarmente foi extirpada, com a simples junção das partes anteriormente separadas.


Assim, deve-se contrapor ao desejo de poder e predomínio inerente ao método cientifico a “difusão de um novo paradigma que já não se orienta pelo termo estático de ‘estado’, mas sim pelo termo dinâmico de ‘processo” (DÜRR, p. 57), que reconhece a impossibilidade da predominância de tal método, quando este abstrai aspectos fundamentais da realidade, e acaba por tomar a abstração pela própria realidade.


A visão mecanicista clássica nega o acaso, tudo obedece ao pressuposto formal da “intuição pura” determinística inerente à fixidez de espaço e tempo, que implica para o ser humano não possuir “espaço para qualquer liberdade de acção! A História mundial iria decorrer tão inamovível como um relógio! Também não haveria qualquer compreensão em princípio do que distingue o ‘presente’ e do que este significa” (DÜRR, p. 48).
O indeterminismo quântico torna o presente “o momento em que a possibilidade cristaliza em facticidade, em realidade” (p. 50), pois:


"O decorrer do tempo reflecte um processo evolucionário constante. A evolução, com isso, no fundo, não se situa no tempo, antes tempo e evolução são, pelo seu carácter mais íntimo, a mesma coisa. O respectivo presente designa a constante concretização de possibilidades em realidades, correspondendo a um contínuo processo de ordenamento" (DÜRR, p. 54).


A mecânica quântica descreve os fenômenos naturais fora dos parâmetros mecanicistas clássicos, com um caráter de desenvolvimento contínuo em função da essência probabilística intrínseca à realidade, e, assim, Dürr é enfático ao afirmar que a “Criação não terminou, o mundo acontece de uma forma nova a cada momento” (p. 47).


O debate científico contemporâneo afirma que o termo “física de partículas” tem se revelado inadequado, pois o que os físicos insistem em denominar “partículas” não existe:


"Deveríamos adotar o termo “partícula quântica, mas o que justifica o uso da palavra partícula? É melhor enfrentar os fatos e abandonar o conceito para sempre. Alguns consideram essas dificuldades como evidências indiretas para interpretação pura de campo na teoria quântica de campos. Segundo esse raciocínio, partículas nada mais são que ondulações de um campo que preenche todo o espaço como fluído invisível" (KULMANN, 2014, g.n.)


A ciência em seu atual estágio de desenvolvimento não mais reconhece o tempo e o espaço como intuições puras a priori, que conformam os demais fenômenos, pois passam a manifestar condições indeterminadas, porque probabilísticas, e, não locais, dado que as partículas inexistem como tais, pois são ondas dentro de um campo, fluído e invisível, num total contraponto ao atomismo preconizado na física newtoniana, pois passam à condição de intuições impuras a posteriori.


4. O indeterminismo como aceitação da objetividade do mundo e como fundamento da ética da liberdade humana.


Reverbero Dürr, quando este afirma que precisamos retomar uma ontologia e uma antropologia que considerem a experiência pessoal e individual, integrada numa realidade total: “onde ainda não começamos a separar-nos como sujeito do objeto, onde ainda não começamos a contrapor ao nosso Eu existencial um mundo exterior objectivamente examinável” (p. 43).


Neste diapasão Dürr propõe que as experiências religiosas e artísticas devem ser consideradas, mesmo que não preencham os critérios das ciências naturais para uma abordagem científica, e “por isso não podem ser confrontadas com as ciências naturais, nem podem entrar em contradição com estas – para voltarmos à imagem da parábola, relacionam-se aos peixes que não podem ser apanhados” (p. 43).

Wolfgang Smith


Para não deixar sem resposta a afirmação da morte da filosofia enunciada por Hawking, adoto o argumento de Wolfgang Smith, que em sua obra “Ciência e Mito” distingue, categoricamente, entre pensamento e linguagem, sendo que “o pensamento é um ato intencional que busca apreender um objeto por meio de um conceito”, enquanto que a linguagem “é algo subsidiário ao pensamento: trata-se de seu veículo – aquilo que serve para expressar e comunicar o pensamento”, para então afirmar que quando se fala de filosofia há a primazia do pensamento sobre a linguagem, ao passo que para a ciência a relação é invertida (2014, p. 224).


O “modus operandi do cientista é o oposto ao filosófico: em vez de ‘abrir’ o conceito na busca por um objeto transcendente, ele o fecha, para consolidar sua apreensão sobre os fenômenos”, e, é neste momento decisivo que a linguagem adquire sua função fundadora, em que Smith, citando Jean Borella, esclarece que a ciência, por meio da linguagem científica, realiza o “fechamento epistêmico do conceito, pelo qual a ciência se define, é efetuado por meio de um critério de cientificidade que é especificado no nível da expressão formal ou linguística” (2014, p. 225, destaques no original).


A liberdade humana é intimamente vinculada à liberdade de pensamento, quando tratamos de filosofia lidamos com o ato de liberdade fundamental de abertura ao conhecimento, em todas as suas formas de manifestação.


A postura determinista é a consequência do corte metodológico típico do fechamento epistêmico que cria a própria linguagem científica, o que é irônico, pois a possibilidade da existência da proposta filosófica do determinismo está no fato de que o seu proponente tem, necessariamente, o conhecimento da proposta oposta, isto é, o indeterminismo, e, assim, o defensor do mecanicismo tem a liberdade de negar a própria liberdade, com base em sua proposta reducionista autoimposta por uma metodologia eleita pelo pesquisador.


A possibilidade de abertura epistêmica do pensamento é a base da liberdade humana mais íntima, da qual todas as outras emergem no mundo, esta possibilidade humana tem seu fundamento físico na natureza indeterminística presente na objetividade do real, tão bem demonstrada cientificamente pela física contemporânea, que descreve partículas tal qual os pensamentos que percorrem o espírito humano, pois o pensar também gera na mente humana "ondulações de um campo que preenche todo o espaço como fluído invisível".


5. Considerações finais.


A proposta kantiana de tempo e espaço, como “intuição pura”, que forneceria o esquema formal que pressupõe a possibilidade de existência da percepção, participa do fechamento epistêmico do conceito de realidade, por abordar a filosofia com base em pressupostos do método científico observacional empírico naturalista, que necessariamente abstrai o que não pode ser mensurado quantitativamente.


Ocorre que os objetos físicos, tratados em nível quântico, não são “observáveis” pela intuição sensível, e, embora sejam mensuráveis, somente o são em aspectos parciais e específicos, conforme o método de pesquisa eleito pelo cientista, se este buscar partículas as achará, se buscar ondas as encontrará, mas, algo escapa à pesquisa, pois os mesmos objetos podem responder ora como onda ora como partícula, e esta realidade constrange o universo da ideologia científica em vigor, que se propõe defensora do determinismo cartesiano de viés kantiano, como portador da certeza científica segundo o método da mensuração quantitativa.


Em suma, a filosofia está viva, e não se confunde com a ciência, pois esta é refém de seu método, e está presa aos seus modelos de validação (a priori), aquela é o exercício da liberdade, diante de um universo enigmático e espantoso, no infinito exercício de buscar respostas que aplaquem a sede de saber humano, e, na tentativa de obter a solução de tais enigmas, é a filosofia que cria os modelos, posteriormente adotados pela própria ciência, mesmo que seja para negar a liberdade e a própria filosofia.


Referências
DÜRR, Hans-Peter. Da ciência à ética: a física moderna e a responsabilidade do cientista; tradução de Lumir Nahodil. – 1.ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
HAWKING, Stephen; MLODINOW, Leonard. O grande projeto. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2011.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão; introdução e notas Alexandre Fradique Morujão. 5.ed. Fundação Calouste Goubenkian: Lisboa, 2001.
______________. Os progressos da metafísica. Tradução Artur Morão. Edições 70: Lisboa. 1995.
KULMANN, Meinard. O que é real? in Scientific American Brasil – Edição Especial Física e Astronomia 1; Ediouro: São Paulo. 2014.
SMITH, Wolfgang. Ciência e mito: com uma resposta a O Grande Projeto, de Stephen Hawking. Tradução Pedro Cava. 1.ed. CEDET: Campinas, 2014.

A IDENTIDADE SUPREMA


A Identidade Suprema é Infinita porque é Deus.
Logo é possível afirmar que o princípio da identidade é fundamentado na realidade de Deus, e a fé e a ciência são abastecidos pelo mesmo princípio.
Não há como refutar o princípio da identidade, pois ele é o termo lógico que serve de critério de veracidade de qualquer coisa.
Defendo o realismo ingênuo, ou realismo não-crítico, postulo que a realidade objetiva é o dado absoluto, diante do qual a percepção subjetiva promove os diversos graus de conhecimento relativo, e essa relatividade é oriunda de nossas limitações perceptivas.
Não sei se existe a partícula de Deus, mas posso afirmar que existe o princípio da identidade.
A identidade é o símbolo discursivo que representa Deus na linguagem da lógica, pois o Uno é idêntico a Ele mesmo.
A realidade contingente é somente uma janela para vislumbrarmos o infinito, pois o conceito de absoluto é necessário para haver qualquer noção de algo relativo.
"O Sono da Razão produz monstros", de Francisco Goya.
A razão é um fenômeno irracional?
A linguagem é oriunda de algo irracional e é instintiva?
Então, por uma relação de causa e efeito a razão é instintiva e irracional em sua raiz, tal conclusão é o resultado do bruto materialismo cético.
  O ceticismo, seja em suas origens clássicas, seja em sua versão moderna cartesiana, é uma forma deficiente de encarar o mundo, pois castra voluntariamente a percepção humana, ao considerar a eventual limitação do poder do conhecimento humano como um dado absoluto, não como apenas uma parte do problema da realidade.
Não é crível que algo que exista seja simplesmente "irracional" ou "instintivo", há uma razão inerente à ordem do mundo, e nada é simplesmente um resultado de uma "irrazão", há mistérios, mas não mistérios irracionais no sentido da expressão: "sem razão de ser", estamos imersos em um Ser Supremo, dotado da sabedoria absoluta, numa realidade da qual participamos. 
Catarina de Médicis observa os mortos do Massacre de São Bartolomeu
 
É interessante que o drama existencial do filósofo Descartes transcorreu no período mais cruento das guerras de religião, entre reforma e contrarreforma, um fato que estimulou a opção pelo solipsismo filosófico como uma fuga, uma evasão, para o único ambiente na qual o fundador da filosofia moderna se achava psicologicamente seguro, sua própria mente.
  É irônico que nesta fuga cartesiana para o ceticismo elegeu-se o método da dúvida sistemática contra a objetividade do mundo, em favor de um criticismo subjetivista.
Ao contrário da topografia da ignorância socrática (termo que aprendi com o Olavo de Carvalho), Descartes desenvolveu o método da ignorância sistemática como fundamento da ciência e da ética.
Na Idade Moderna passou-se a ensinar que somos a própria “sarça sagrada” subjetiva, e se proclamou que todos somos dotados de uma subjetividade absoluta, de um "EU SOU" subjetivista criador do mundo das idéias verificáveis matematicamente.
O materialismo matematizante intelectualmente concatenado é única certeza capaz de suprir a proposta do ceticismo radical, perante a objetividade do mundo.
Assim, em nome da idéia solipsista, Descartes se julgou armado para cortar da perspectiva filosófica e científica Ocidental tudo o que fosse complicado demais para compreender somente com a mente calculadora, em um materialismo quantitativo que, por sinal, passou a ser para o cartesianismo o sinônimo de racionalidade, só aquilo que é mensurável é racional desde então.

Êxodo 3:14

Tentar provar que Deus não existe é o mesmo que tentar negar a existência da verdade ou do princípio da identidade, é tudo uma coisa só!
Coloquemos em poucas palavras: o princípio para que exista a ciência, é que seja afirmada a fé no princípio da identidade, na qual 01 (um) sempre é igual a 01 (um), ou seja, a identidade é a base para o princípio da mensuração, sem a qual não há como defender qualquer tipo de materialidade.
Para que o princípio da identidade seja eficaz ele precisa ser verdadeiro.
Para que a verdade seja real ela precisa ser dotada de um caráter de perenidade.
Logo, se há verdade, ela é eterna.
Assim sendo, se há eternidade então há algo eterno que dá sustentação à verdade, à identidade e à ciência, e isso caro amigo é a manifestação da fé nestes elementos, inclusive, todo o cientista guarda a mais pia fé em seu cabedal de conhecimentos, fé esta que é mais profunda do que aquela que o cientista tem na própria existência pessoal.
É o suficiente?
Agora fale o inverso...
Werner Nabiça Coêlho

quinta-feira, 28 de abril de 2016

O discurso jurídico é um ritual: teoria mimética e linguagem jurídica, a possibilidade da mediação externa

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Girard define o “mecanismo mimético” de forma ampla no sentido de incluir o “desejo mimético, a rivalidade mimética, a crise mimética e a sua resolução pelo bode expiatório” (s/d , p. 84), pois a “expressão 'desejo mimético' refere-se apenas ao desejo que é sugerido por um modelo” ( Loc. cit.).
O desejo mimético é classificado como um ente “real”, distinto de simples apetites, pois estes envolvem necessidades cujo fundamento é biológico (comida e sexo, v.g.), que não são necessariamente ligados aos desejos miméticos.
Todavia, todo apetite é passível de ser contaminado pelo desejo mimético a partir do momento que exista um modelo, pois “a presença do modelo é o elemento decisivo na definição do desejo mimético” ( Loc. cit. ).
Se o desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais diferença entre instinto, apetite e desejo, por sua vez, em contraste com a fixidez dos apetites ou instintos, verificamos a mobilidade do desejo, e esta mobilidade decorre da imitação, pois, conforme Girard:

Aí reside a grande diferença: todos temos sempre um modelo que imitamos. Só o desejo mimético pode ser livre, ser de fato desejo, pois tem de escolher um modelo. Não compreendemos isso, porque, para tanto, nunca recorremos ao primeiro estágio do desenvolvimento humano. Toda criança tem apetites, instintos e um ambiente cultural no qual aprende imitando. Imitação e aprendizagem são inseparáveis. A rivalidade mimética se evidencia assim que a criança começa a interagir com outras. A criança tem uma relação de mediação externa, isto é, de imitação com os adultos, e uma relação de mediação interna, isto é, de imitação e rivalidade, com seus pares ( Op. cit., p. 85).
O desejo mimético gera duas possibilidades de mediação com o modelo a ser imitado, ou o sujeito se encontra no mesmo mundo que o modelo, ou pertence a outro mundo.
Na hipótese de imitador e modelo não estarem no mesmo nível, numa situação em que o modelo é considerado superior e/ou distante como que numa relação hierárquica, gera-se a mediação externa.
Quando não podemos possuir o objeto pertencente ao modelo ou por ele desejado, com isso, um conflito direto entre o sujeito e o seu modelo está fora de questão, e a mediação externa acaba sendo uma mediação positiva, pois assume valor pedagógico, por impossibilidade de conflito direto com o modelo.
Se no achamos no mesmo mundo que o modelo, não há nenhum distinção hierárquica por exemplo, então o objeto que ele deseja está ao nosso alcance e a rivalidade irrompe.
Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simétrica, pois ambas as partes passam a concorrer pelo mesmo objeto.
À proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo.
Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo e imitador de seu imitador.
Em tal situação os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados e idênticos em seu conflito crescente.
A crise mimética é sempre uma crise de indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de rivais, e, assim:
[...] Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armazenando energia conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as direções, porque, uma vez em marcha, o mecanismo mimético só se torna mais atraente para os observadores: se duas pessoas estão disputando um mesmo objeto, então deve tratar-se de alguma coisa pela qual vale a pena lutar, pensam os observadores, a quem tal objeto fica parecendo mais valioso. O objeto valorizado tende a provocar mais e mais cobiça, e, ao fazê-lo, a sua atratividade mimética somente cresce. Enquanto isso acontece, o objeto também tende a desaparecer, a ser dilacerado e destruído no conflito. Para que a mimesis se torne puramente antagonística, o objeto precisa desaparecer. Quando isso ocorre , temos [...] a emergência da crise mimética, pois quando o objeto desaparece, não há mais mediação entre os rivais: o conflito é iminente. À medida que mimesis se converte em antagonismo, a tendência é que ela se torne acumulativa, passando a envolver vários membros de uma dada comunidade, até que o processo leve à violência contra o único antagonista remanescente – o “bode expiatório”. [...] A importância desse mecanismo reside no fato de direcionar a violência coletiva contra um único membro da comunidade arbitrariamente escolhido. Essa última vítima se converte no inimigo comum da comunidade, que então se reconcilia em virtude da canalização da violência contra a vítima. ( Op. cit., p. 87-8).
A crise sacrificial, e seu desenlace, na criação do bode expiatório, consolida-se em ritos, fenômeno que se encontra enraizado no início de todas as culturas, em sua fase primitiva.
O rito atualiza o sacrifício original do bode expiatório, é a violência sacralizada, transformada em meio de mediação externa a canalizar a violência coletiva, possibilitando a criação da estabilidade social necessária para a evolução social. Girard disserta sobre o rito que:
O rito equivale a uma escola, repetindo indefinidamente o mecanismo do bode expiatório com vítimas substitutas. Por corresponder à resolução de uma crise, o rito intervém sempre nesses momentos críticos e sempre estará presente quando suceder o mesmo tipo de situação. [...] (p. 96)
Há duas maneiras possíveis de ver o rito. A primeira delas, a visão iluminista, segundo a qual a religião é superstição, esvazia o rito de significado. A visão alternativa baseia-se no fato de que o rito pode ser encontrado em toda parte [...] e, da constatação dessa “onipresença”, conclui-se que deve gerar todas as instituições culturais. Pesquisando-se cuidadosamente, verifica-se que todos os grandes espaços públicos são espaços ritualísticos e têm sua origem no rito [...] (p. 97)
Frisamos que segundo o modelo de explicação derivado do mecanismo do bode expiatório , enquanto evento fundador da cultura, precede qualquer espécie de ordem cultural, inclusive, atuando no princípio sob “formas de associação não lingüísticas, intermediárias entre o animal e o humano – se não quisermos dizer próprias do 'homem antes do surgimento da linguagem'” (GIRARD, s/d, p. 124).
Como vimos acima, a teoria mimética reconhece o ritual como a forma primária de resolução de conflitos desde a gênese do acontecer humano, mediante o estabelecimento do discurso social criador de mediação externa pacificadora, em contraste com os conflitos gerados pela mediação interna.
Constatamos que ao ser aplicada teoria mimética no âmbito do Direito, é possível classificar o discurso jurídico como uma forma de mediação externa, que se operacionaliza com base no sofisticado mito da legalidade.
O mito da legalidade de forma pragmática estabelece o império da razão pela adoção de procedimentos criadores de condutas hierarquizantes, cuja finalidade é suspender o conflito mimético mediante a intervenção de uma situação comunicativa peculiar.
Ferraz (1997) compreende por discurso uma “ação lingüística dirigida a outrem, donde o seu caráter de discussão, em que alguém fala, alguém ouve e algo é dito” (p. 57).
Uma situação comunicativa é composta de dois aspectos, externo e interno, este a estrutura do discurso, aquele, o mundo circundante.
A estrutura do discurso cumpre a função de reduzir a complexidade do meio, mas, o discurso jurídico diferencia-se, mediante a existência de uma “peculiar situação comunicativa” (p. 58).
Para Ferraz “a situação comunicativa jurídica se limita internamente também na forma de regras de atribuição e de diferenciação de papéis” (p. 59-60), tal diferenciação motiva a existência de uma estrutura hierárquica no próprio discurso proferido pelas partes presentes na situação comunicativa, na qual há o reconhecimento da faculdade de exigir a informação dentro da situação comunicativa jurídica, o diálogo se estabelece como regra, pois a legalidade é superior às partes em conflito, eis a mediação externa.
Com a exigibilidade formalmente estabelecida como faculdade das partes as “ações lingüísticas deixam de ser mera expressão subjetiva dos comunicadores, ganhando, igualmente, as suas reações uma certa 'coordenação objetiva'” (FERRAZ, p. 60); e, “amplia a situação comunicativa social, acrescendo-a de mais um comunicador: o árbitro, o juiz, o legislador, mais genericamente a norma. A situação comunicativa torna-se assim triádica” (Idem).
O princípio da legalidade implica na criação de uma coordenação objetiva, entre duas expressões subjetivas, com a finalidade de fazer valer a mediação externa garantida pelo comunicador, que se encontra como modelo de conduta e que representa a própria norma dentro da situação comunicativa triádica assim estabelecida.
A exigibilidade gera um momento de liberdade dentro da situação comunicativa lingüística, em que a mentira pode se fazer presente, durante o debate, como expressão da subjetividade das partes, implicando numa instabilidade inerente, que deverá ser corrigida pelo discurso jurídico organizado pela coordenação objetiva de um agente representante da norma, que serve de modelo criador de mediação externa capaz de conferir a objetividade necessária para o estabelecimento da verdade possível, com fundamento em elementos objetivos ou objetivantes.
Revela-se a estrutura de uma relação dialógica jurídicabasicamente como uma discussão-contra” que envolve uma questão típica, o “conflito” e uma função, também, típica, que é “possibilitar uma decisão” (p. 62):

O terceiro comunicador é quem garante a seriedade do conflito, fazendo do discurso um discurso racional, aquele em que as questões (no caso, conflitivas) não são fortuitas, mas se acham determinadas pelo dever de prova: elas ocorrem apenas em relação a uma conexão compreensiva já existente, mas que dada a participação peculiar do ouvinte, não mediatiza uma certeza, ao contrário, abre um leque de possibilidades [...].
Um conflito levado a sério, nesses termos, significa, pois, que nem tudo pode ser conflito [...].
E, além disso, significa sua ocorrência temporal, na medida em que, pela participação do terceiro comunicador, ele é ao mesmo tempo provisoriamente suspenso e mantido, o que dá tempo para que seja discutido: entre orador e ouvinte há, assim, uma distância temporal que lhes permite separar a emissão da ação lingüística da sua recepção, o que envolve o estabelecimento de regras temporais em termos de prazos. (p. 63) (grifos no original)
O Direito ao ser encarado com base no modelo da teoria mimética cumpre seu papel ritualizando o conflito, mediante a inserção de um terceiro comunicador, que pode ser encarado como a própria norma jurídica, que por sua vez suspenderá a rivalidade entre os contendores, criando elementos formais (rituais) possibilitadores de uma mediação externa, com o estabelecimento de prazos e a exigência de argumentações fundamentadas em provas.
Para que a exasperação do conflito seja substituída pelo debate ponderado, superando-se o conflito, pelo estabelecimento de um campo neutro, cria-se a mediação externa mediante a aceitação da superioridade do representante da lei, da superioridade da norma.
Neste sentido: “As normas jurídicas assim terminam conflitos no sentido de elas os institucionalizam” (FERRAZ, p. 65), significa dizermos que o mito da legalidade absorve para si o momento da violência em potencial, e o converte em ritual institucionalizado.
É a mediação externa, possibilitada pela superioridade hierárquica e ritualizada, que convida as partes à reflexão acerca do conflito, com a devida assistência material do representante sacerdotal da norma, que se personifica na figura do juiz, do mediador, do árbitro.
A natureza reflexiva ao discurso jurídico “na medida em que a constituição da alternativa em relação a uma norma pode ser de novo questionada” (FERRAZ, p. 67), em que a norma jurídica mesma surge como “uma ação lingüística racional, no sentido de discurso fundamentante” (p. 68), configurando-se o direito num discurso normativo cuja finalidade é criar a mediação externa capaz de afastar a violência inerente à ação da mediação interna criadora da violência mimética.
O ritual formalizado e estruturado na auto-referência do próprio discurso jurídico, fundado na metalinguagem que atualiza o mito da legalidade, mediante crescente processo de racionalização, teórica e pragmática do discurso, com a finalidade de operar a mediação externa, necessária para controlar, suprimir ou redirecionar a violência social mediante a inserção da objetividade da veracidade probatória em meio ao conflito intersubjetivo, é uma das conquistas mais profundas e importantes da linguagem para possibilitar a comunicação humana, linguagem esta, criadora de uma situação comunicativa triádica  que denominamos de Direito.
REFERÊNCIAS
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
GIRARD, René; ROCHA, João Cezar de Castro; e, ANTONELLO, Pierpaolo. Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.


O MITO DA LEGALIDADE É RAZÃO LIBERTA DO DESEJO!


 

Há quem afirme que a constituição é “a nova morada de Deus(CHAUÍ, apud NADAL, p. 129).

Ao considerarmos a constituição como mito, afirmamos que o próprio princípio da legalidade é um mito, pois simboliza a legalidade em alto grau normativo.

A idéia de constituição torna-se, portanto, um princípio basilar do pensamento jurídico, em seu nível poético, no sentido de fonte criativa de imagens inspiradoras da ação (princípios), ao ser compreendido como norma fundamental, para, em última análise, servir de base de sustentação ao discurso sagrado da legitimidade de uma espécie de religião civil à moda do contrato social iluminista.

A constituição, como símbolo que representa o mito da legalidade, numa perspectiva antropológica girardiana, possui estreita relação com a necessidade humana de prevenção da erupção da violência, e, portanto, é uma condição de possibilidade para a própria existência da vida em sociedade.

A doutrina do Direito Constitucional nos ensina que o Poder Constituinte é fruto de uma Revolução Política, cuja energia seria oriunda do Povo, que tanto pode assumir um caráter de crise violenta e imprevisível, como pode ser pacífica, e criada por meio de uma Assembleia Constituinte, incumbida de fundar uma nova ordem constitucional. 

A linguagem simbólica da ciência política trata o ser humano, vivo, espiritual e carnal, com base em abstrações: "Revolução", "Poder", "Povo" e "Assembleia", que convidam nossa imaginação a vislumbrar panoramas épicos, em que os heróis criam uma sociedade política impessoal e purificada dos males do passado, como se toda mudança política fosse resultado de uma evolução progressiva, para formas mais perfeitas de Estado.

Todavia, por mais mitológica que seja a construção da ideia de lei, tal imagem não é fruto de um processo irracional, pois há uma necessidade humana de estabilidade e segurança, que deve ser atendida, e esta necessidade é suprida pela criação de processos sociais fornecedores de mediação externa nas relações humanas. 

A mediação externa é operada por um terceiro situado simbolicamente acima das partes, superioridade que impõe uma ordem normativa incontestável, esta é a estrutura básica do mito, quando os heróis em conflito são punidos ou agraciados pelos deuses, ordem versus caos, uma vez que a violência é oriunda das mediações internas, em que os contendores estão no mesmo nível de desejo, e são potenciais competidores num processo autodestrutivo de vingança interminável.

Aristóteles renega a irracionalidade da idéia de lei, e, demonstra que o predomínio da emoção será afastado com a aceitação do princípio (mito) da legalidade, nestes termos:


Na verdade, tudo o que a lei parece ser incapaz de resolver, também não pode ser conhecido por um só indivíduo. A lei que formou adequadamente os magistrados, encarrega-os de dividir e resolver “do modo mais eqüitativo possível” as restantes questões. Ademais, concede-lhes o direito de corrigir o que, em resultado da experiência, lhes parece ser melhorável em relação às leis escritas. Assim, exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem; pelo contrário, exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal; o desejo cego é semelhante a um animal e o predomínio da paixão transtorna os que ocupam as magistraturas, mesmo se forem os melhores dos homens. A lei é, pois, a razão liberta do desejo. (ARISTÓTELES, 1998, p. 259) (destaques no original)

A mediação externa significa, pois:

Exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem,

porque, de outra forma, somente restará a danosa mediação interna, para a qual:
exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal,

pois o predomínio do desejo cego implica em conflitos diretos, num processo de mediação interna, que gera um crescendo de atos de violência nas relações interpessoais, até que estoure um crise de vinganças infinitas, a crise mimética.

Quando os participantes de uma relação social são colocados em conflitos de interesses, suas condutas podem ser transtornadas pela paixão.

Para conter o conflito, resultante da mediação interna inerente às partes, que estão emocionalmente envolvidas, deve-se criar uma situação contrabalanceada pela “razão liberta do desejo”, por meio da mediação externa.

A sacralidade da lei é o fundo mitológico-poético sobre a qual se erige a idéia de legalidade, e seus representantes, os agentes da ordem normativa, permite que o virtual conflito da rivalidade mimética encontre um limite objetivo, interposto entre os interesses subjetivos em conflito, mediante a presença um terceiro em posição simbólica superior.

O mito da legalidade, a idéia de que a lei é sagrada, se impõe para ordenar e mediar o fenômeno da universalidade do desejo, e da violência, existentes na presença de mediação interna, inerente aos conflitos de interesses do cotidiano social.

A universalização do mito da constituição, encarado como o símbolo da legalidade em último grau, que serve de princípio ordenador para toda a ordem legal normativa, gera a possibilidade de mediação externa nas relações sociais, estrutura simbólica que torna o exercício das magistraturas um dever sagrado para com a lei, que neste caso é erigida como a representação de Deus, da Razão e do Povo.

Assim sendo, a imaginação humana considera-se liberta da opressão, quando não mais se encontra sob a sujeição do ódio ou do medo, nem a este ou àquele poder pessoal.

O mito da legalidade é, assim, erigido como a base de sustentação da mediação externa, que opera institucionalmente, sobre os conflitos intersubjetivos, pois se estabelece a simbólica da superioridade e racionalidade da lei, e não da vontade pessoal de outrem, o agente da ordem não age em nome próprio, mas em nome da lei.


 

Maximiliano (1961, p. 20) assevera que:
 
O Direito precisa transformar-se em realidade eficiente, no interesse coletivo e também no individual”; sem esquecermos que “[...] toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não se verificarem com esmero, o sentido e alcance das suas prescrições”(MAXIMILIANO, p. 23)

A partir da prévia aceitação do mito da legalidade desenvolve-se os métodos hermenêuticos e interpretativos, pois sem a expressa aceitação deste pressuposto simbólico não é possível desenvolver o discurso poético fundador da ordem legal.


 

A poética do discurso sacraliza a idéia de constituição, que será o fundamento para estabelecer padrões (mediação externa) para os diversos discursos retóricos (mediação interna).

As retóricas, quando alicerçadas na ordem legal, são operadas pelas partes em conflito, passam a ser mediadas pela superioridade da "vontade da lei" ou "vontade dos legisladores", quando as retóricas não apelam para a superioridade lei, descambam para soluções violentas "fora da lei".

Quando o mito da legalidade está sedimentado socialmente, a legitimidade da ordem social daí decorrente é a condição suscetível de racionalizar o debate necessário ao discurso dialético interpessoal.

A aceitação de um referente externo e objetivo, criador de uma mediação externa a ser dirigida pela autoridade competente, eleita pela ordem legal como mediador, permite a criação do momento decisório típico da linguagem jurídica.

Este momento decisório, com base no princípio da legalidade, implica na dialética do devido processo legal, que se conclui na lógica da decisão jurídica.

Em suma, para que os quatro discursos humanos, interligados no fenômeno comunicacional (Olavo de Carvalho, 1996), sejam operados de forma eficiente pelo cidadão, pelo jurista e pelo político, estes devem sempre afirmar e reafirmar sua fé no mito da legalidade, ao aceitar a prevalência simbólica de seu livro sagrado: a constituição.



REFERÊNCIAS



ARISTÓTELES. Política . Edição bilíngüe. Lisboa: Vega, 1998.



CARVALHO, Olavo de, Aristóteles em nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos.Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.



MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito . 7ed., São Paulo: Freitas Bastos, 1961.



NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da constituição. São Paulo: Método, 2006.