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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

AFORISMOS E PENSAMENTOS VÁRIOS



Tenho uma certa desconfiança de que a filosofia grega foi mais um resultado da perda de sentido da religião pagã, em meio ao desenvolvimento econômico e cultural do mundo helênico, do que propriamente uma busca meramente intelectual, a filosofia quando bem operada destina-se a ser uma ferramenta de busca de sentido, mesmo que seja para negar o próprio sentido como fazia o Nietzsche, em suma, o amor à sabedoria decorre de uma busca do sentido inerente ao próprio saber.



***





Liberdade não é uma realidade ontologicamente autônoma, é um direito vinculado a muitos e variados condicionamentos prévios, por isso que sua defesa implica em eterna vigilância



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A verdade é algo que possui uma essência própria, ou é somente o nome que se dá para uma opinião predominante? 

Um consenso coletivamente partilhado é a fonte da verdade, ou uma única pessoa pode ser o repositório de toda a verdade, não por ela possuir à verdade, mas por ser possuída por esta? 

Um conjunto de interesses parciais e organizados pode estabelecer algum nível de verdade, ou a verdade não está sujeita a nenhuma vontade? 

Podemos considerar que há uma postura mais ou menos conveniente em relação à verdade, ou esta não admite se objeto da vontade alheia? 

Afinal existe alguma verdade que seja validada somente por conveniências políticas, de grupos ou de pessoas, ou a verdade somente possui a conveniência de ser verdadeira para toda a eternidade?

A verdade é um princípio da realidade, ou ela é criada pelas circunstâncias de cada momento?

Só sei que a verdade é verdadeira, porque afirmar que a verdade em essência, ou em acidente, é uma mentira resulta numa petição de princípio, numa aporia lógica, isto é, se for válida a negação da existência da verdade, esta negação será verdadeira.

Como diria o poeta espanhol Antônio Machado (que conheci graças ao Olavo de Carvalho):


"La verdad es lo que es

y sigue siendo verdad,

aunque se piense al revés"



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O AMOR A DEUS É O MODELO DO AMOR FRATERNAL

Uma anotação que deixo a respeito do Diálogo Fedro, é que o amor definido por Sócrates, em seu mais alto nível, é o amor que se deve guardar pela contemplação da verdade, do bem, do justo e do belo no grau da pureza divina, e, que o eventual amor carnal entre os amantes do saber, é uma forma de apequenar e dessacralizar o amor ao saber, cuja origem é divinal, que deve ser cultivado e resguardado entre amigos, em suma, o saber é muito mais profundo quando associado à castidade, por ser um dever sagrado perante Deus.

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A TEORIA MIMÉTICA E O FEDRO DE PLATÃO.

Sócrates discorre a respeito do mito, e de sua natureza questionável do ponto de vista racional, o que dá a entender que naquele tempo histórico contemporâneo ao nosso filósofo, as verdades religiosas tradicionais estavam sendo duramente criticadas, vejamos:

"IV - Sócrates - Se, a exemplo dos sábios, eu não acreditasse, não seria de estranhar. Interpretação sutil da lenda fora dizer que o ímpeto de Bóreas a derrubou dos rochedos próximos, quando ela brincava com Farmaceia, e que as próprias circunstâncias de sua morte deram azo a dizerem que Bóreas a havia raptado." (229d) (p. 36)

Ora, este trecho revela-se perfeito, para análise com a utilização da chave explicativa de René Girard, pois descreve um mito em que há um bode expiatório (Oritia), e um deus (Bóreas) que personifica, neste caso, a multidão, que em sua fúria lança a vítima do rochedo, sem contaminar-se ritualmente com a violência bruta, pois utiliza-se de meios sagrados de imolação, e, por outro lado, a própria explicação dos sábios referidos por Sócrates, são um claro indício de um forte processo de dessacralização da religião ateniense, submetida à crítica racionalista que busca razões humanas para o surgimento das lendas.


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A MITOLOGIA DA ABSOLUTA AUTONOMIA DO EGO

Vivemos uma cultura fundada na mitologia da absoluta autonomia do ego, que resulta na autodestruição egocêntrica, e, na minha opinião descalça e nua, o remédio para esse mal está na busca da verdade religiosa e filosófica, preferencialmente ambas, mas cada uma destas buscas por si mesmas resultam nas únicas terapias eficazes, pois são meios de mirar corretamente no alvo do autoconhecimento que possibilita a autoconsciência, que por fim são os instrumentos para refinar a percepção objetiva do mundo e de sua beleza e bondade, com a reconquista da linguagem que possui a capacidade de comunicar verdades da vida, pois hoje a juventude é um estrangeiro em sua própria consciência.

 

domingo, 15 de janeiro de 2017

Cooperatoris Veritatis: algumas considerações sobre o diálogo platônico Fedro



Seguindo a trilha aberta de Carlos Alberto Nunes, cujos comentários destacam a natureza teatral da obra platônica, e, após a reunião do grupo de estudos relativo ao diálogo platônico Fedro, considero ser útil guardar a memória de alguns pontos objeto de discussão.

Carlos Alberto Nunes (1897-1990)
Ao ser encontrado por Sócrates, fora dos muros de Atenas, às proximidades do Rio Ilisso,  Fedro afirma estar a "passear nas estradas" por recomendação do amigo comum Acumeno por ser uma forma de repouso melhor que descansar "em galerias cobertas" (227a) (p. 33)

Fedro relata a Sócrates que Lísias discursara em torno do amor, e defendera "que é preferível alguém ceder às instâncias de quem não lhe dedica amor, a entregar-se a quem o ama de verdade" (227c) (p. 33-4), ao que Sócrates ironiza que então "o pobre é de preferir ao rico e o velho ao moço, ou falasse das misérias que me são peculiares e à maioria dos homens, teria o mesmo feito um discurso civil e verdadeiramente democrático" (idem).

Diante da afirmação de Fedro, de que não poderia declamar o discurso de Lísias, Sócrates se sai com mais uma tirada irônica, e descreve o método de estudo de Fedro, descrição esta que por si só tem seu valor pedagógico:

II - Sócrates - Fedro! Fedro! Se eu não conhecesse o Fedro é que já me teria esquecido de mim mesmo. Porém nada disso é verdade. Tenho absoluta certeza de que, por tratar-se de um discurso de Lísias, ele não se satisfez com uma audição apenas, mas insistiu junto do autor para que o lesse várias vezes, ao que o outro acedeu de muito bom grado. Mas, nem isso lhe bastou; tomando do livro, mergulhou na lição dos trechos mais interessantes. Nesse estudo passou sentado a manhã toda, até que, vencido da fadiga, saiu a espairecer cá fora, porém já com o discurso de cor, como tenho que de fato aconteceu [...] Só veio passear fora dos muros para declamá-lo, e, ao topar com um tipo doente por discursos, exultou por haver encontrado um parceiro para seus delírios coribânticos e o convidou a acompanhá-lo. Depois, instado por esse amante de discursos par que o lesse, fez-se rogado, como se não tivesse o menor desejo disso" (288b a 288c) (p. 34)

Fedro é apanhado em outra malandragem estudantil, pois quando já iria começar um exercício de declamação do texto memorizado, com base em seus estudos acima descritos, Sócrates percebe que seu companheiro de diálogo escondia o texto escrito do discurso de Lísias, e, certamente, com um meio sorriso no rosto, e um tom de divertida admoestação se dirige ao jovem efebo:

"Sócrates - Pois não, amor; mas, antes disso mostra-me o que trazes na mão esquerda, debaixo do manto. Suspeito que seja o tal discurso. Se for o caso, podes ter a certeza de que, embora eu te dedique muita estima, uma vez que Lísias se acha presente, não deixarei que te exercites à minha custa. Vamos, descobre-o logo." (228e) (p. 35)

Esta colocação de Sócrates, de que "Lísias se acha presente", é muito interessante, como uma antecipação da noção posterior apresentada de que há um risco em potencial, relacionado ao culto do texto, sem levar em conta que as idéias escritas, também, possuem uma vida para além dos livros, o que torna relacionarmos esta passagem com a discussão posterior, neste mesmo diálogo, em que se destaca a natureza "muito perigosa" da palavra escrita:

"LX – Sócrates – Logo, quem presume ter deixado num livro uma arte em caracteres escritos, ou quem a recebe, na suposição de que desses caracteres virá a sair algum conhecimento claro e duradouro, revela muita ingenuidade e o desconhecimento total do oráculo de Amão, dado que imagine ser o discurso escrito mais do que um meio para quem sabe, a fim de lembrar-se do assunto de que trata o documento.
Fedro – É muito certo.
Sócrates – É que a escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto, parecidíssima com a pintura, pois esta, em verdade, apresenta seus produtos como vivos; mas, se alguém lhe formula perguntas, cala-se cheia de dignidade. O mesmo passa com os escritos. És inclinado a pensar que conversas com seres inteligentes; mas se, com o teu desejo de aprender, os interpelares acerca do que eles mesmos dizem, só respondem de um único modo e sempre a mesma coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita, rolam daqui dali os discursos, sem o menor descrime, tanto por entre os conhecedores da matéria como os que nada têm a ver com o assunto de que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não. E no caso de serem agredidos ou menoscabados injustamente, nunca prescindirão da ajuda paterna, pois por si mesmos são tão incapazes de se defenderem como de socorrer alguém." (275c a 275e) (p. 93-4)
Retornemos ao contexto inicial, em que Fedro e Sócrates acabaram de se encontrar, e buscam um local de descanso enquanto passeiam, cenas cujo caráter bucólico é ressaltado pela descrição de cenários idílicos, muito favoráveis à discussão dos conceitos relacionados ao sumo bem.

Após Fedro ser apanhado em suas artimanhas estudantis, e ser forçado a concordar em ler o discurso de Lísias, nossos amigos do saber prosseguem seu caminho em direção à uma localidade encimada por um plátano, uma árvore frondosa, cujas forma característica da folha está desenhada na bandeira do Canadá.

Ao caminhar na direção de seu local primaveril, em que se travará a parte principal do diálogo, Fedro observa que fez bem em sair sem sandálias, que é como Sócrates sempre anda (229a) (p. 35), o que me remete à etimologia da palavra humildade, derivada do latim "humus", e a expressão significa "estar com os pés descalços sobre o chão".

E, a propósito da descrição do local, em que a conversa de desenvolve, destaco alguns elementos descritivos, para depois prosseguir tratando de alguns passagens outras, que me remeteram à teoria mimética de René Girard, mas, enquanto isso, surpreendamos os amigos tratando do local em que o diálogo realmente iniciar-se-á:

Plátanos

Fedro - Estás vendo aquele plátano alto?
Sócrates - Como não?
Fedro - Ali há boa sombra, brisa agradável e relva suficiente para nos sentarmos e até mesmo para deitar, se assim nos aprouver.
Sócrates - Então sigamos. (229b) (p. 35)
[...]
IV - Sócrates [...] E, por falar nisso, companheiro, não é esta a árvore para onde querias conduzir-nos?
Fedro - É essa mesmo.
V - Sócrates - Por Hera! Que belo sítio para descansar! Este Plátano, realmente, é tão copado quanto alto, e aquele pé de agnocasto além de sombra agradabilíssima que sua altura proporciona, embalsama toda a redondeza, por estar em plena florescência. E sob o plátano, também, que fonte encantadora! A água é bastante fria, o que os pés nos confirmam. Deve ser consagrada às Ninfas e a Aquelôo, a julgarmos por estas imagens e figurinhas. Observa também como aqui a brisa é delicada e aprazível; sua melodia clara e estival acompanha o coro das cigarras. Porém, o mais admirável de tudo é a relva, que se eleva gradualmente para formar uma camada espessa. Se nos deitarmos neste ponto, disporemos de travesseiro em tudo cômodo. Revelaste-te excelente guia, amigo Fedro. (230a a 230 c) (p. 36-7)
Agnocasto 

Percebo que um dos mais importantes aspectos relacionados ao exercício de uma boa leitura, por vezes, é o tempo decorrido entre os anos que medeiam as visitas a um texto, pois da primeira vez que li este diálogo, e já fazem quase 20 anos, pouco me importei com aspectos lúdicos ou com o cenário, mas, após reler este trecho, pude perceber que o contexto bucólico descrito, pode ter sido uma rica fonte de referencias literárias aos irlandeses (1), quando salvaram a cultura ocidental, pois foi sob plátanos e outros locais análogos (2), conforme descrito por Platão nesta peça literário-filosófica, que os monastérios irlandeses do século V surgiram, como centros de preservação e divulgação da herança milenar greco-romana e judaico-cristã.

Agora, retomando o fio da meada, faço algumas indicações de elementos relacionados à teoria mimética (3) apanhados no texto, com a finalidade de registro para futuras elucubrações deste escriba, e, quem sabe, inspirar terceiros, a respeito da violência sagrada, presente no texto deste diálogo segundo a chave explicativa da teoria girardiana.

Rio Ilisso
Antes de chegar ao plátano, cujos arredores são poeticamente descritos no diálogo, Fedro comenta que estavam passando pelas margens do Ilisso, local em que Bóreas raptou Oritia, ao que Sócrates indica que o local certo ser um pouco mais adiante (229b) (p. 36-7), e neste ensejo Fedro questiona de forma cética a respeito do mencionado mito: "acreditas nessa história?" (229c) (p. 36).

Sócrates, então, discorre a respeito do mito, e de sua natureza questionável do ponto de vista racional, o que dá a entender que naquele tempo histórico contemporâneo ao nosso filósofo, as verdades religiosas tradicionais estavam sendo duramente criticadas, vejamos:

IV - Sócrates - Se, a exemplo dos sábios, eu não acreditasse, não seria de estranhar. Interpretação sutil da lenda fora dizer que o ímpeto de Bóreas a derrubou dos rochedos próximos, quando ela brincava com Farmaceia, e que as próprias circunstâncias de sua morte deram azo a dizerem que Bóreas a havia raptado. (229d) (p. 36)

Ora, este trecho revela-se perfeito, para análise com a utilização da chave explicativa de René Girard (4), pois descreve um mito em que há um bode expiatório (Oritia), e um deus (Bóreas) que personifica, neste caso, a multidão, que em sua fúria lança a vítima do rochedo, sem contaminar-se ritualmente com a violência bruta, pois utiliza-se de meios sagrados de imolação, e, por outro lado, a própria explicação dos sábios referidos por Sócrates, são um claro indício de um forte processo de dessacralização da religião ateniense, submetida à crítica racionalista que busca razões humanas para o surgimento das lendas.

Como o tempo urge, e o texto tem que ser concluído, indico que no trecho de 231a -234c está contido o discurso integral de Lísias, ao qual Sócrates qualifica de "demoníaco", e refere como ficou contagiado "do mesmo furor báquico" de Fedro enquanto este declamava a leitura de tal discurso (234d) (p. 41), o que me remete à lembrança das descrições sobre o magnetismo da arte no diálogo Íon (5), ou Ião como na tradução de Carlos Alberto Nunes.

Em seguida, há o discurso retórico que Sócrates é levado a fazer, pois Fedro impõe tal dever, inicialmente, por uma coação,  manifestada nestes termos: "Resolve-te, pois, a falar, antes que eu recorra à violência" (236d), e, finalmente, de forma eficaz, mediante a oração ritual em que faz o seguinte juramento:

Fedro - [...] Juro... Por qual divindade hei de jurar? Por qual? Aceitas este Plátano? Pois bem: se não declamares teu discurso diante deste plátano, juro que nunca mais te mostrarei nem indicarei discurso de nenhuma pessoa. (p. 236e) (p. 45)

E, mesmo sem ter tocado no assunto relativo à iniciação de natureza pitagórica cujos indícios surgem ao longo do texto, nem me deter nos aspectos concernentes às classificações sobre as virtudes e vícios do desejo amoroso, presentes no discurso retórico de 237b-241d, em que Sócrates discursa de rosto velado de vergonha (237a)(p. 44), e, muito menos, sem tocar nas profundas digressões sobre os conceitos platônicos que principiam pela descrição dos delírios sagrados da divinação, das musas e do amor, passa pela descrição mitológica do mundo das idéias, e prossegue pela metempsicose, que surgem a partir de 244a (p. 53 e seguintes), quando Sócrates declama:

Sócrates - De vergonha, pois, dessa pessoa e de medo de Eros, pretendo limpar-me com a boa água de um novo discurso de toda a salsugem dos conceitos há pouco enunciados. Aconselho também Lísias a escrever quanto antes que, em iguais circunstâncias, um jovem deve preferir quem o ama, não quem não lhe dedique amor. (243d) (p. 53)

Uma anotação final que deixo, é que o amor definido por Sócrates, no prosseguimento do diálogo, em seu mais alto nível, é o amor que se deve guardar pela contemplação da verdade, do bem, do justo e do belo no grau da pureza divina, e, que o eventual amor carnal entre os amantes do saber, é uma forma de apequenar e dessacralizar o amor ao saber, cuja origem é divinal, que deve ser cultivado e resguardado entre amigos, em suma, o saber é muito mais profundo quando associado à castidade, por ser um dever sagrado perante Deus.


Fonte:


Platão, Diálogos de Platão: Fedro, Cartas e O primeiro Alcebíades, Coleção Amazônia, Série Farias Brito, vol. V, tradução de Carlos Alberto Nunes, UFPA, Belém, 1975





quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

RENÉ GIRARD: O RISO E AS LÁGRIMAS

Abaixo transcrevo uma passagem do artigo "Um equilíbrio perigoso", no qual René Girard tece considerações muito interessantes a respeito do papel do riso e do choro como elementos catárticos, tanto na tragédia como na comédia, e, como ambos são fenômenos fisiologicamente semelhantes, e, como, psicologicamente, cumprem o mesmo papel. 

"O esquema fundamental de um presunçoso vítima da sua presunção aparece constantemente. Mas se esta proximidade é real, porque é que os efeitos da tragédia são diferentes dos da comédia? 

Quando se assiste a uma tragédia, ou, mais geralmente, ao que se chama um "melodrama", podemos reagir derramando lágrimas - metafóricas ou mesmo reais. Com a comédia reage-se com o riso. O riso e as lágrimas opõem-se como dois contrários, duas emoções no mais alto grau distintas uma da outra.
 


Os dois são fenômenos físicos; neste plano a comparação é fácil. Revela bem depressa que a oposição entre o riso e as lágrimas é muito exagerada, ou antes, como para tantas oposições culturais, estabelecida a partir de uma base comum, o que se abandona geralmente quando prevalecem as considerações de gênero e de técnica literárias. Quando, fora do estreito contexto literário, se põe a pergunta: "O que é o riso?", é preciso descobrir esta base comum ainda escondida, sob pena de limitar o alcance da resposta.

 


Os fisiologistas dizem que a função normal das lágrimas é lubrificar os olhos. Mas deitam-se lágrimas mais abundantes que habitualmente, sobretudo em duas ocasiões. Em  primeiro lugar, quando acontecimentos considerados como "tristes", quer sejam reais ou representados, provocam este estado emocional de que acabámos de falar; depois, quando entra  para um olho um corpo estranho, um grão de pó, por exemplo, que irrita. Estas lágrimas, de ordem puramente física, têm como evidente função de afastar o intruso, expulsá-lo do órgão que ele insiste querer irritar. (p. 201)

Sabe-se que Aristóteles,  na sua Poética, empregava a palavra catarse para representar o efeito produzido pela tragédia nos espectadores. A palavra significa ao mesmo tempo purificação religiosa e purga médica. Uma medicina catártica purga o corpo de seus maus humores.
 
[...]
 
Quando o corpo humano reage a uma representação trágica com lágrimas, parece comportar-se segundo Aristóteles. Apesar de o olho não ter nenhum grão de pó para eliminar, funciona contudo como se tivesse que expulsar qualquer coisa. Deve existir, em qualquer lado no complexo alma/corpo, uma necessidade de expulsar, uma vez que dispomos desse órgão expulsivo. A objeção que as lágrimas não são feitas para isso é inaceitável. Porque o olho funciona metaforicamente. Face a uma necessidade do corpo, o corpo, muito frequentemente, reage como um todo; mobiliza diversos órgãos que, apesar de completamente inaptos para responderem à função pedida, não deixam de tentar trazer a sua ajuda. E pode acontecer que esta reacção aparentemente excessiva seja reveladora da natureza da necessidade em questão.


William James



Não é minha intenção voltar a William James e à sua teoria fisiológica. Não considero o corpo como origem da emoção mas, mais convencionalmente, como um acompanhamento, quase no sentido musical do termo. Assim como um solista, aqui invisível e inaudível, em todo o caso para nós, se acompanha ao piano, da mesma maneira o sentimento trágico se acompanha com lágrimas. (p. 201-2)
 
[...]
 
Para voltarmos agora ao rito, notar-se-á que as lágrimas fazem parte integrante dele. Trata-se de um detalhe que conta mas que se minimiza ou abandona muitas vezes. Porque queremos à viva força opor o riso e as lágrimas como dois contrários, somos levados a pôr o acento nos únicos aspectos do riso que parecem diferenciá-lo do choro. Mas aqui as considerações teóricas importam muito menos do que aquilo que se poderia chamar a praxis moderna do riso. O homem moderno ri constantemente quando não há razão para isso. O riso é a única forma socialmente aceite de cartase. Por conseguinte, todas as espécies de riso que não têm nada a ver com o riso são confundidas com ele: o riso de cortesia, o riso sofisticado, o riso mudano. Todos estes falsos risos aumentam muitas vezes a tensão que devem aliviar e, naturalmente, não se acompanham com manifestações autênticas e involuntárias como as lágrimas.

 
Fonte: http://www.institutodafelicidade.org.br/?pg=riso


Apesar dos sintomas físicos do riso se imitarem mais facilmente do que os das lágrimas, tornam-se também involuntários e reprimíveis quando se trata do verdadeiro riso. O corpo inteiro é agitado por convulsões; o ar é rapidamente expulso para fora das vias respiratórias graças aos movimentos reflexos análogos à tosse ou ao espirro. Todas estas manifestações têm a mesma função que as lágrimas visto que o corpo age como se tivesse qualquer coisa de concreto a expulsar. A única diferença é que um número maior de órgãos entra em jogo no riso.
 
O que se aproxima mais de um riso puramente natural e físico é sem dúvida a reacção do nosso corpo a uma sensação de cócegas. Analisada só em função da sua intensidade, esta reacção parece fora de proporção com a fraqueza do estímulo mas pode muito bem acontecer que corresponda à verdadeira natureza da ameaça não ainda identificada. Num contexto de hostilidade natural, poderia acontecer que uma ameaça de morte iminente, uma mordedura de cobra, por exemplo, não fosse precedido por nenhum outro aviso a não ser umas ligeiras cócegas. O carácter desconhecido e não precisamente localizado do estímulo, pelo menos no imediato, aumenta a intensidade da reacção.
 
O riso, noutros termos, sobretudo nas formas menos "culturais", parece significar, exactamente como as lágrimas, que devemos livrar-nos de alguma coisa; mas essa qualquer coisa é aqui mais importante e deve ser eliminada mais depressa do que no caso de simples choros. Se o corpo é a orquestra, o solista invisível e inaudível é acompanhado por um número muito maior de instrumentos. (p. 203-4)

Note-se também que a partir de uma certa intensidade as lágrimas se transformam em soluços e acabam por se parecer cada vez mais com o riso. Diz-se de alguém cujo riso é incontrolável, que ri portanto verdadeiramente e não finge, que chora a rir. (p. 204-5)
 
Há por conseguinte entre o riso e as lágrimas uma diferença não de natureza mas de grau, residindo precisamente o verdadeiro paradoxo na maneira como se marca esta diferença. Ao inverso do que dita o senso comum, o elemento de crise é mais agudo no riso que nas lágrimas. O riso parece mais próximo de um paroxismo tendendo a traduzir-se por verdadeiras convulsões, mais próximo de um esforço frenético de rejeição e de expulsão. Mas do que as lágrimas, é assimilável a uma reacção negativa de todo o ser a um perigo que lhe parece intransponível. (p. 205)
 
[...]
 
Ri-se verdadeiramente de qualquer coisa que poderia e, num sentido, deveria acontecer a qualquer pessoa que ri, incluindo nós. Creio que isto mostra claramente a natureza da ameaça, despercebida mas sempre presente, contra a qual o riso não pára de se defender, a do objecto ainda não identificado que precisa de se expulsar. A pessoa que ri está prestes a ser anexada pela estrutura de que a sua vítima já faz parte. Enquanto ri, acolhe e rejeita ao mesmo tempo a percepção desta estrutura na qual o objecto do seu riso já está preso; acolhe-a de boa vontade na medida em que é outro que não ele que é apanhado na armadilha, mas ao mesmo tempo tenta mantê-la à distância. A estrutura, que nunca é individual, tende a fechar-se sobre a pessoa que ri. Compreende-se agora porque é que o riso, mais do que as lágrimas, tem as propriedades de uma crise; a estrutura é muito mais visível no cómico do que no trágico; a autonomia do espectador é nela mais imediatamente e mais gravemente ameaçada. (p. 209)
 
[...]
 
O riso físico, como dissemos, tem como objectivo repelir uma agressão vinda do exterior e de proteger o corpo contra uma eventual intrusão. mas as quase convulsões do riso, se se prolongam, acabam por resultar no desmoronamento desde domínio de si que deveriam preservar. O verdadeiro riso torna-nos fracos e reduz-nos quase a uma semi-impotência. (p. 210)

René Girard, A voz desconhecida do real: uma teoria dos mitos arcaicos e modernos, Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

domingo, 23 de outubro de 2016

A ORIGEM DA LINGUAGEM E A TEORIA MIMÉTICA


Eugen Rosenstock-Huessy e René Girard são desbravadores da origem mimética da linguagem.


Eugen Rosenstock-Huessy deduz a origem ritual da própria linguagem, e René Girard descobre o fundamento antropológico do rito.

Eugen Rosenstock-Huessy descreve a necessidade de um tamanho poder do rito, que este criou o tempo, a ordem, nomeou e vestiu de tradição o homem, e René Girard revela que este poder é fonte de nosso desconforto com a civilização, erigida sobre séculos e séculos de assassinatos rituais, de crimes que permitiram que com o sacrifício de poucos muitos prosperassem, o bode expiatório é o herói, o demônio e o deus da religião arcaica, que foi criada pelo ritual primário dos sacrificadores.

Eugen Rosenstock-Huessy percebe que linguagem e religião são um e mesmo fenômeno, origem criadora do que conhecemos e do que somos, René Girard descreve com a crise mimética, que esta origem está no pecado original do assassinato fundador, e na maturidade de sua obra revela que a verdade evangélica nos libertou da ilusão do poder da morte.

A revelação cristã ao ensinar que a vítima do sacrifício era a única inocente no drama do ritual, a religião antiga dos sacrificadores perdeu assim sua beleza estética sagrada, na qual os mitos e lendas sangrentas foram substituídos pela consciência da própria violência, é o início da condição de possibilidade para o sujeito não ser escravizado pelo mecanismo mimético e ser capaz de perdoar, ao custo de sacrificar a própria hibris, pois revelou-se com Cristo uma hubris que nega a solução sacrificadora.

Eugen Rosenstock-Huessy refere que a linguagem foi criada pela repetição de gritos, grunhidos, urros e choros, e René Girard descreve o processo genético desta transformação, com o modelo da Teoria Mimética, na qual a violência expulsa a violência, uma sagrada outra profana, mecanismo que se consolida por infinitas repetições rituais, que possibilitam a paz necessária para uma comunidade estabelecer um padrão de linguagem verbal, que supere as limitações da linguagem animal.

A origem da linguagem estudada por Eugen Rosenstock-Huessy se encontra com o mimetismo comunicacional, que cria e doma a violência, e nesse processo, a linguagem é criada pelo rito, que cria a religião, que com Cristo recria a linguagem mimética, cuja origem profana e violenta torna-se sagrada e poética não mais com a celebração da morte, mas com a afirmação da vida e da inocência do cordeiro sacrificado.

Werner Nabiça Coêlho - 02/09/2016

domingo, 19 de junho de 2016

SOBERANIA E MITO DA LEGALIDADE

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Interessa-nos discutir a natureza social (material) do Poder Político e seu desenvolvimento jurídico (formal) no caminho da institucionalização do Estado, razão pela qual trazemos à baila algumas questões candentes levantadas na República de Platão, que suscita questões recorrentes à legitimidade do exercício do Poder.

O Estado surge da manifestação do Poder que transforma uma coletividade em Povo, destacando-se este ser um fenômeno jurídico (MIRANDA, 2000, p. 165).

O Poder Político é o Poder Constituinte que molda o Estado segundo uma idéia, um projeto, um fim de organização, e, que o Estado não existe em si ou por si, efetivando-se em dois aspectos: autoridade e serviço ( Idem , p. 166).

Miranda socorre-se de Gustav Radbruch nos seguintes termos: “é ainda um direito suprapositivo e natural que obriga o Estado a manter-se sujeito às próprias leis. O preceito jurídico que isto determina é o mesmo que serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” ( Idem , p. 169).

Referido Autor destaca que para a sociologia o exercício do poder político pode ser objeto de análise como poder da comunidade estatal , e, como orientador da comunidade sobre a qual se exerce a orientação.

Todavia, em termos jurídicos, tal cisão seria inadmissível, sendo a titularidade do poder da própria comunidade, tendo uma explicação una e trina , una como fonte do poder, e, trina, pois é o Poder que auto-organiza a comunidade , é o substrato do Estado na forma de Pessoa Coletiva e manifesta-se em seus Órgãos e Agentes detentores de parcelas do poder político.

Esclarece que para os efeitos de sua obra é o mesmo falar em Poder Político e em Soberania ( Idem , 173).

Destas colocações deriva nossa grande questão acerca de qual a origem ideológica do fenômeno jurídico que possibilita ao poder unificar o povo; e, ao mesmo tempo, fornecer uma base de valores que obriga a autoridade a servir este mesmo povo; colocada em outros termos: qual a idéia que legitima o poder, e o transforma em objeto de consentimento popular, ao mesmo tempo em que limita o próprio exercício do poder?

Percebemos que as posições adotadas por Miranda ao invés de revelarem uma resposta clara à questão, simplesmente saltam por sobre o problema sem enfrentá-lo, ao definir corte metodológico, consistente na afirmação dogmática da existência de um direito suprapositivo e natural que teria o condão de obrigar o Estado à bem se comportar, mas, ao mesmo tempo, demonstra grande intuição que já principia a resposta que buscamos quando enfatiza ser este o mesmo preceito jurídico que “serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo” (MIRANDA, 2000, p. 169).

Consideramos de suma importância contextualizar o nascimento da idéia normativa fundamental do Estado de Direito Democrático que passaremos a denominar de mito da legalidade.

Quais os elementos conformadores do mito em exame?

Qual sua base histórico-social?

Que filosofia o sustenta?

Qual a sua realidade sob uma perspectiva antropológica e qual sua estrutura discursiva que dá a base ritualista do mencionado mito e que o atualiza?

Iniciaremos com o Livro I da República de Platão, na qual Sócrates questiona um próspero ancião de nome Céfalo acerca de “qual foi a maior vantagem que te proporcionou tua fortuna?” (330 d) (PLATÃO, 1976, p. 46), recebendo a resposta de que “a riqueza é de grande vantagem, porém não para todos; apenas para as pessoas equilibradas. Ela é que enseja a possibilidade de deixar a vida sem receio de haver mentido, embora involuntariamente, e de não ter ficado devendo” (331 b) (PLATÃO, 1976, p. 47).

Após, Sócrates questiona Céfalo sobre a inconstância do conceito de justiça, por este consistir apenas em falar a verdade e restituir o recebemos de outrem, quando coloca a seguinte hipótese: “de alguém receber para guardar a arma de um amigo que se encontre são do juízo, e este, depois, com manifesta perturbação de espírito, exigir que lha restitua, todo o mundo concordará que não se deve devolvê-la” (331 c-d) ( Idem , p. 47-8).

No seguimento do diálogo Céfalo é substituído por Polemarco, e, então, surge a célebre citação da máxima de Simônides “dar a cada um o que lhe é devido” (331e) ( Idem , p. 48), descrito como “enigma poético” (332 b) (Idem , p. 49), que vai suscitando diversidade de respostas proferidas por Polemarco, tais quais: “Tudo indica que para ele é justo dar a cada um o que convém” (332 c) ( Idem , p. 49); “Justiça, então, é fazer bem aos amigos e mal aos inimigos?” (332 d); sendo esta última afirmação refutada da seguinte forma: “a justiça é uma espécie de arte de furtar. Naturalmente: para beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos” (334 a) ( Idem , p. 54).

Reforçando sua contestação ao maniqueísmo como fundamento da justiça, Sócrates demonstra o subjetivismo dos conceitos de amigo e inimigo ao questionar Polemarco: “E porventura não se enganam os homens nisso, justamente, parecendo-lhes boa muita gente que não o é, e vice-versa?” (334 c) ( Idem , p. 52), e, após diversas colocações acerca da natureza da ética concernente à pessoa imbuída de justiça, concluí Sócrates que “não é próprio do justo causar dano nem aos amigos nem a quem quer seja, porém do seu contrário, o homem injusto.” (335 d) ( Idem , p. 54).

Neste ponto do diálogo surge o sofista Trasímaco defendendo a tese de que “o justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte” (336 c) ( Idem, p. 56).

Todavia, ao investigar todas as implicações da definição sofística de justiça, Sócrates acaba por inaugurar na filosofia e na ciência política, em nosso entender, a tese de origem popular do poder político quando diz: “é mais do que claro que nenhuma arte ou governo cuida do interesse próprio, porém, conforme há muito demonstramos, providencia e determina o que é de utilidade para o súdito, considerando apenas o interesse dos mais fracos, nunca o dos mais fortes” (346 e) (Idem, p. 69-70).

Assim, podemos identificar a genealogia da afirmação dogmática de Jorge Miranda, no sentido de encarar o Poder Político, manifestado na Soberania, como auto-organizado pela existência de um direito suprapositivo e natural, que como vimos com Platão é um fenômeno de multidão, e, por isso mesmo, tem em seu substrato e fundamento antropológico explicado cientificamente pela teoria do desejo mimético de René Girard.

A teoria do desejo mimético descreve a origem da cultura na superação da violência inerente às relações humanas, mediante a edificação de ritos e mitos criadores de mediação externa, cada vez mais sofisticada, conforme a cultura desenvolve-se, emergindo na construção do mito da legalidade capaz de legitimar o exercício do Poder lho fornecendo uma ritualística jurídica.

A mediação externa mais sofisticada é o rito jurídico, caracterizado por um discurso peculiar, em que o mito da legalidade é personalizado na autoridade que se apresenta como sujeito e objeto da representação mitológica da legalidade, isto é, a autoridade ao prestar seus serviços submete e é submetida pelo discurso alicerçado na força da idéia normativa (Jouvenel, 1978, p. 34-6) de lei, e assim, temos uma base para a descrição da soberania como resultado da racionalização do Poder da multidão de cidadãos mimeticamente vinculados por mitos que estabelecem padrões de mediação externa, que fomentam idéias normativas de justiça consideradas aceitáveis pelo corpo social.

REFERÊNCIAS

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

GIRARD, René. A violência e o sagrado ; trad. Martha Conceição Gambini; revisão técnica de Assis Carvalho. - São Paulo : Editora Universidade Estadual Paulista; 1998.

GIRARD, René;Rocha, João Cezar de Castro; e, Antonello, Pierpaolo. Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.

JOUVENEL, Bertrand de. As origens do estado moderno: uma história das idéias políticas no século XIX. Tradução de Mamede de Souza Freitas. Col. Biblioteca de Cultura Histórica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. t.III. Coimbra: Coimbra, 2000.

PLATÃO, A República. Diálogos, v. VI-VII. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Coleção Amazônia, Série Farias Brito. Belém: UFPA, 1976.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

O discurso jurídico é um ritual: teoria mimética e linguagem jurídica, a possibilidade da mediação externa

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Girard define o “mecanismo mimético” de forma ampla no sentido de incluir o “desejo mimético, a rivalidade mimética, a crise mimética e a sua resolução pelo bode expiatório” (s/d , p. 84), pois a “expressão 'desejo mimético' refere-se apenas ao desejo que é sugerido por um modelo” ( Loc. cit.).
O desejo mimético é classificado como um ente “real”, distinto de simples apetites, pois estes envolvem necessidades cujo fundamento é biológico (comida e sexo, v.g.), que não são necessariamente ligados aos desejos miméticos.
Todavia, todo apetite é passível de ser contaminado pelo desejo mimético a partir do momento que exista um modelo, pois “a presença do modelo é o elemento decisivo na definição do desejo mimético” ( Loc. cit. ).
Se o desejo é fixo, como em qualquer mecanismo biológico, não há mais diferença entre instinto, apetite e desejo, por sua vez, em contraste com a fixidez dos apetites ou instintos, verificamos a mobilidade do desejo, e esta mobilidade decorre da imitação, pois, conforme Girard:

Aí reside a grande diferença: todos temos sempre um modelo que imitamos. Só o desejo mimético pode ser livre, ser de fato desejo, pois tem de escolher um modelo. Não compreendemos isso, porque, para tanto, nunca recorremos ao primeiro estágio do desenvolvimento humano. Toda criança tem apetites, instintos e um ambiente cultural no qual aprende imitando. Imitação e aprendizagem são inseparáveis. A rivalidade mimética se evidencia assim que a criança começa a interagir com outras. A criança tem uma relação de mediação externa, isto é, de imitação com os adultos, e uma relação de mediação interna, isto é, de imitação e rivalidade, com seus pares ( Op. cit., p. 85).
O desejo mimético gera duas possibilidades de mediação com o modelo a ser imitado, ou o sujeito se encontra no mesmo mundo que o modelo, ou pertence a outro mundo.
Na hipótese de imitador e modelo não estarem no mesmo nível, numa situação em que o modelo é considerado superior e/ou distante como que numa relação hierárquica, gera-se a mediação externa.
Quando não podemos possuir o objeto pertencente ao modelo ou por ele desejado, com isso, um conflito direto entre o sujeito e o seu modelo está fora de questão, e a mediação externa acaba sendo uma mediação positiva, pois assume valor pedagógico, por impossibilidade de conflito direto com o modelo.
Se no achamos no mesmo mundo que o modelo, não há nenhum distinção hierárquica por exemplo, então o objeto que ele deseja está ao nosso alcance e a rivalidade irrompe.
Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simétrica, pois ambas as partes passam a concorrer pelo mesmo objeto.
À proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo.
Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo e imitador de seu imitador.
Em tal situação os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados e idênticos em seu conflito crescente.
A crise mimética é sempre uma crise de indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo são reduzidos aos de rivais, e, assim:
[...] Uma vez ativada, essa máquina mimética funciona armazenando energia conflituosa. E a tendência é essa energia propagar-se em todas as direções, porque, uma vez em marcha, o mecanismo mimético só se torna mais atraente para os observadores: se duas pessoas estão disputando um mesmo objeto, então deve tratar-se de alguma coisa pela qual vale a pena lutar, pensam os observadores, a quem tal objeto fica parecendo mais valioso. O objeto valorizado tende a provocar mais e mais cobiça, e, ao fazê-lo, a sua atratividade mimética somente cresce. Enquanto isso acontece, o objeto também tende a desaparecer, a ser dilacerado e destruído no conflito. Para que a mimesis se torne puramente antagonística, o objeto precisa desaparecer. Quando isso ocorre , temos [...] a emergência da crise mimética, pois quando o objeto desaparece, não há mais mediação entre os rivais: o conflito é iminente. À medida que mimesis se converte em antagonismo, a tendência é que ela se torne acumulativa, passando a envolver vários membros de uma dada comunidade, até que o processo leve à violência contra o único antagonista remanescente – o “bode expiatório”. [...] A importância desse mecanismo reside no fato de direcionar a violência coletiva contra um único membro da comunidade arbitrariamente escolhido. Essa última vítima se converte no inimigo comum da comunidade, que então se reconcilia em virtude da canalização da violência contra a vítima. ( Op. cit., p. 87-8).
A crise sacrificial, e seu desenlace, na criação do bode expiatório, consolida-se em ritos, fenômeno que se encontra enraizado no início de todas as culturas, em sua fase primitiva.
O rito atualiza o sacrifício original do bode expiatório, é a violência sacralizada, transformada em meio de mediação externa a canalizar a violência coletiva, possibilitando a criação da estabilidade social necessária para a evolução social. Girard disserta sobre o rito que:
O rito equivale a uma escola, repetindo indefinidamente o mecanismo do bode expiatório com vítimas substitutas. Por corresponder à resolução de uma crise, o rito intervém sempre nesses momentos críticos e sempre estará presente quando suceder o mesmo tipo de situação. [...] (p. 96)
Há duas maneiras possíveis de ver o rito. A primeira delas, a visão iluminista, segundo a qual a religião é superstição, esvazia o rito de significado. A visão alternativa baseia-se no fato de que o rito pode ser encontrado em toda parte [...] e, da constatação dessa “onipresença”, conclui-se que deve gerar todas as instituições culturais. Pesquisando-se cuidadosamente, verifica-se que todos os grandes espaços públicos são espaços ritualísticos e têm sua origem no rito [...] (p. 97)
Frisamos que segundo o modelo de explicação derivado do mecanismo do bode expiatório , enquanto evento fundador da cultura, precede qualquer espécie de ordem cultural, inclusive, atuando no princípio sob “formas de associação não lingüísticas, intermediárias entre o animal e o humano – se não quisermos dizer próprias do 'homem antes do surgimento da linguagem'” (GIRARD, s/d, p. 124).
Como vimos acima, a teoria mimética reconhece o ritual como a forma primária de resolução de conflitos desde a gênese do acontecer humano, mediante o estabelecimento do discurso social criador de mediação externa pacificadora, em contraste com os conflitos gerados pela mediação interna.
Constatamos que ao ser aplicada teoria mimética no âmbito do Direito, é possível classificar o discurso jurídico como uma forma de mediação externa, que se operacionaliza com base no sofisticado mito da legalidade.
O mito da legalidade de forma pragmática estabelece o império da razão pela adoção de procedimentos criadores de condutas hierarquizantes, cuja finalidade é suspender o conflito mimético mediante a intervenção de uma situação comunicativa peculiar.
Ferraz (1997) compreende por discurso uma “ação lingüística dirigida a outrem, donde o seu caráter de discussão, em que alguém fala, alguém ouve e algo é dito” (p. 57).
Uma situação comunicativa é composta de dois aspectos, externo e interno, este a estrutura do discurso, aquele, o mundo circundante.
A estrutura do discurso cumpre a função de reduzir a complexidade do meio, mas, o discurso jurídico diferencia-se, mediante a existência de uma “peculiar situação comunicativa” (p. 58).
Para Ferraz “a situação comunicativa jurídica se limita internamente também na forma de regras de atribuição e de diferenciação de papéis” (p. 59-60), tal diferenciação motiva a existência de uma estrutura hierárquica no próprio discurso proferido pelas partes presentes na situação comunicativa, na qual há o reconhecimento da faculdade de exigir a informação dentro da situação comunicativa jurídica, o diálogo se estabelece como regra, pois a legalidade é superior às partes em conflito, eis a mediação externa.
Com a exigibilidade formalmente estabelecida como faculdade das partes as “ações lingüísticas deixam de ser mera expressão subjetiva dos comunicadores, ganhando, igualmente, as suas reações uma certa 'coordenação objetiva'” (FERRAZ, p. 60); e, “amplia a situação comunicativa social, acrescendo-a de mais um comunicador: o árbitro, o juiz, o legislador, mais genericamente a norma. A situação comunicativa torna-se assim triádica” (Idem).
O princípio da legalidade implica na criação de uma coordenação objetiva, entre duas expressões subjetivas, com a finalidade de fazer valer a mediação externa garantida pelo comunicador, que se encontra como modelo de conduta e que representa a própria norma dentro da situação comunicativa triádica assim estabelecida.
A exigibilidade gera um momento de liberdade dentro da situação comunicativa lingüística, em que a mentira pode se fazer presente, durante o debate, como expressão da subjetividade das partes, implicando numa instabilidade inerente, que deverá ser corrigida pelo discurso jurídico organizado pela coordenação objetiva de um agente representante da norma, que serve de modelo criador de mediação externa capaz de conferir a objetividade necessária para o estabelecimento da verdade possível, com fundamento em elementos objetivos ou objetivantes.
Revela-se a estrutura de uma relação dialógica jurídicabasicamente como uma discussão-contra” que envolve uma questão típica, o “conflito” e uma função, também, típica, que é “possibilitar uma decisão” (p. 62):

O terceiro comunicador é quem garante a seriedade do conflito, fazendo do discurso um discurso racional, aquele em que as questões (no caso, conflitivas) não são fortuitas, mas se acham determinadas pelo dever de prova: elas ocorrem apenas em relação a uma conexão compreensiva já existente, mas que dada a participação peculiar do ouvinte, não mediatiza uma certeza, ao contrário, abre um leque de possibilidades [...].
Um conflito levado a sério, nesses termos, significa, pois, que nem tudo pode ser conflito [...].
E, além disso, significa sua ocorrência temporal, na medida em que, pela participação do terceiro comunicador, ele é ao mesmo tempo provisoriamente suspenso e mantido, o que dá tempo para que seja discutido: entre orador e ouvinte há, assim, uma distância temporal que lhes permite separar a emissão da ação lingüística da sua recepção, o que envolve o estabelecimento de regras temporais em termos de prazos. (p. 63) (grifos no original)
O Direito ao ser encarado com base no modelo da teoria mimética cumpre seu papel ritualizando o conflito, mediante a inserção de um terceiro comunicador, que pode ser encarado como a própria norma jurídica, que por sua vez suspenderá a rivalidade entre os contendores, criando elementos formais (rituais) possibilitadores de uma mediação externa, com o estabelecimento de prazos e a exigência de argumentações fundamentadas em provas.
Para que a exasperação do conflito seja substituída pelo debate ponderado, superando-se o conflito, pelo estabelecimento de um campo neutro, cria-se a mediação externa mediante a aceitação da superioridade do representante da lei, da superioridade da norma.
Neste sentido: “As normas jurídicas assim terminam conflitos no sentido de elas os institucionalizam” (FERRAZ, p. 65), significa dizermos que o mito da legalidade absorve para si o momento da violência em potencial, e o converte em ritual institucionalizado.
É a mediação externa, possibilitada pela superioridade hierárquica e ritualizada, que convida as partes à reflexão acerca do conflito, com a devida assistência material do representante sacerdotal da norma, que se personifica na figura do juiz, do mediador, do árbitro.
A natureza reflexiva ao discurso jurídico “na medida em que a constituição da alternativa em relação a uma norma pode ser de novo questionada” (FERRAZ, p. 67), em que a norma jurídica mesma surge como “uma ação lingüística racional, no sentido de discurso fundamentante” (p. 68), configurando-se o direito num discurso normativo cuja finalidade é criar a mediação externa capaz de afastar a violência inerente à ação da mediação interna criadora da violência mimética.
O ritual formalizado e estruturado na auto-referência do próprio discurso jurídico, fundado na metalinguagem que atualiza o mito da legalidade, mediante crescente processo de racionalização, teórica e pragmática do discurso, com a finalidade de operar a mediação externa, necessária para controlar, suprimir ou redirecionar a violência social mediante a inserção da objetividade da veracidade probatória em meio ao conflito intersubjetivo, é uma das conquistas mais profundas e importantes da linguagem para possibilitar a comunicação humana, linguagem esta, criadora de uma situação comunicativa triádica  que denominamos de Direito.
REFERÊNCIAS
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Direito, retórica e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
GIRARD, René; ROCHA, João Cezar de Castro; e, ANTONELLO, Pierpaolo. Um longo argumento do princípio ao fim: diálogos com João Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello , Rio de Janeiro: Topbooks, s/d.


O MITO DA LEGALIDADE É RAZÃO LIBERTA DO DESEJO!


 

Há quem afirme que a constituição é “a nova morada de Deus(CHAUÍ, apud NADAL, p. 129).

Ao considerarmos a constituição como mito, afirmamos que o próprio princípio da legalidade é um mito, pois simboliza a legalidade em alto grau normativo.

A idéia de constituição torna-se, portanto, um princípio basilar do pensamento jurídico, em seu nível poético, no sentido de fonte criativa de imagens inspiradoras da ação (princípios), ao ser compreendido como norma fundamental, para, em última análise, servir de base de sustentação ao discurso sagrado da legitimidade de uma espécie de religião civil à moda do contrato social iluminista.

A constituição, como símbolo que representa o mito da legalidade, numa perspectiva antropológica girardiana, possui estreita relação com a necessidade humana de prevenção da erupção da violência, e, portanto, é uma condição de possibilidade para a própria existência da vida em sociedade.

A doutrina do Direito Constitucional nos ensina que o Poder Constituinte é fruto de uma Revolução Política, cuja energia seria oriunda do Povo, que tanto pode assumir um caráter de crise violenta e imprevisível, como pode ser pacífica, e criada por meio de uma Assembleia Constituinte, incumbida de fundar uma nova ordem constitucional. 

A linguagem simbólica da ciência política trata o ser humano, vivo, espiritual e carnal, com base em abstrações: "Revolução", "Poder", "Povo" e "Assembleia", que convidam nossa imaginação a vislumbrar panoramas épicos, em que os heróis criam uma sociedade política impessoal e purificada dos males do passado, como se toda mudança política fosse resultado de uma evolução progressiva, para formas mais perfeitas de Estado.

Todavia, por mais mitológica que seja a construção da ideia de lei, tal imagem não é fruto de um processo irracional, pois há uma necessidade humana de estabilidade e segurança, que deve ser atendida, e esta necessidade é suprida pela criação de processos sociais fornecedores de mediação externa nas relações humanas. 

A mediação externa é operada por um terceiro situado simbolicamente acima das partes, superioridade que impõe uma ordem normativa incontestável, esta é a estrutura básica do mito, quando os heróis em conflito são punidos ou agraciados pelos deuses, ordem versus caos, uma vez que a violência é oriunda das mediações internas, em que os contendores estão no mesmo nível de desejo, e são potenciais competidores num processo autodestrutivo de vingança interminável.

Aristóteles renega a irracionalidade da idéia de lei, e, demonstra que o predomínio da emoção será afastado com a aceitação do princípio (mito) da legalidade, nestes termos:


Na verdade, tudo o que a lei parece ser incapaz de resolver, também não pode ser conhecido por um só indivíduo. A lei que formou adequadamente os magistrados, encarrega-os de dividir e resolver “do modo mais eqüitativo possível” as restantes questões. Ademais, concede-lhes o direito de corrigir o que, em resultado da experiência, lhes parece ser melhorável em relação às leis escritas. Assim, exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem; pelo contrário, exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal; o desejo cego é semelhante a um animal e o predomínio da paixão transtorna os que ocupam as magistraturas, mesmo se forem os melhores dos homens. A lei é, pois, a razão liberta do desejo. (ARISTÓTELES, 1998, p. 259) (destaques no original)

A mediação externa significa, pois:

Exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem,

porque, de outra forma, somente restará a danosa mediação interna, para a qual:
exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal,

pois o predomínio do desejo cego implica em conflitos diretos, num processo de mediação interna, que gera um crescendo de atos de violência nas relações interpessoais, até que estoure um crise de vinganças infinitas, a crise mimética.

Quando os participantes de uma relação social são colocados em conflitos de interesses, suas condutas podem ser transtornadas pela paixão.

Para conter o conflito, resultante da mediação interna inerente às partes, que estão emocionalmente envolvidas, deve-se criar uma situação contrabalanceada pela “razão liberta do desejo”, por meio da mediação externa.

A sacralidade da lei é o fundo mitológico-poético sobre a qual se erige a idéia de legalidade, e seus representantes, os agentes da ordem normativa, permite que o virtual conflito da rivalidade mimética encontre um limite objetivo, interposto entre os interesses subjetivos em conflito, mediante a presença um terceiro em posição simbólica superior.

O mito da legalidade, a idéia de que a lei é sagrada, se impõe para ordenar e mediar o fenômeno da universalidade do desejo, e da violência, existentes na presença de mediação interna, inerente aos conflitos de interesses do cotidiano social.

A universalização do mito da constituição, encarado como o símbolo da legalidade em último grau, que serve de princípio ordenador para toda a ordem legal normativa, gera a possibilidade de mediação externa nas relações sociais, estrutura simbólica que torna o exercício das magistraturas um dever sagrado para com a lei, que neste caso é erigida como a representação de Deus, da Razão e do Povo.

Assim sendo, a imaginação humana considera-se liberta da opressão, quando não mais se encontra sob a sujeição do ódio ou do medo, nem a este ou àquele poder pessoal.

O mito da legalidade é, assim, erigido como a base de sustentação da mediação externa, que opera institucionalmente, sobre os conflitos intersubjetivos, pois se estabelece a simbólica da superioridade e racionalidade da lei, e não da vontade pessoal de outrem, o agente da ordem não age em nome próprio, mas em nome da lei.


 

Maximiliano (1961, p. 20) assevera que:
 
O Direito precisa transformar-se em realidade eficiente, no interesse coletivo e também no individual”; sem esquecermos que “[...] toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não se verificarem com esmero, o sentido e alcance das suas prescrições”(MAXIMILIANO, p. 23)

A partir da prévia aceitação do mito da legalidade desenvolve-se os métodos hermenêuticos e interpretativos, pois sem a expressa aceitação deste pressuposto simbólico não é possível desenvolver o discurso poético fundador da ordem legal.


 

A poética do discurso sacraliza a idéia de constituição, que será o fundamento para estabelecer padrões (mediação externa) para os diversos discursos retóricos (mediação interna).

As retóricas, quando alicerçadas na ordem legal, são operadas pelas partes em conflito, passam a ser mediadas pela superioridade da "vontade da lei" ou "vontade dos legisladores", quando as retóricas não apelam para a superioridade lei, descambam para soluções violentas "fora da lei".

Quando o mito da legalidade está sedimentado socialmente, a legitimidade da ordem social daí decorrente é a condição suscetível de racionalizar o debate necessário ao discurso dialético interpessoal.

A aceitação de um referente externo e objetivo, criador de uma mediação externa a ser dirigida pela autoridade competente, eleita pela ordem legal como mediador, permite a criação do momento decisório típico da linguagem jurídica.

Este momento decisório, com base no princípio da legalidade, implica na dialética do devido processo legal, que se conclui na lógica da decisão jurídica.

Em suma, para que os quatro discursos humanos, interligados no fenômeno comunicacional (Olavo de Carvalho, 1996), sejam operados de forma eficiente pelo cidadão, pelo jurista e pelo político, estes devem sempre afirmar e reafirmar sua fé no mito da legalidade, ao aceitar a prevalência simbólica de seu livro sagrado: a constituição.



REFERÊNCIAS



ARISTÓTELES. Política . Edição bilíngüe. Lisboa: Vega, 1998.



CARVALHO, Olavo de, Aristóteles em nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos.Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.



MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito . 7ed., São Paulo: Freitas Bastos, 1961.



NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da constituição. São Paulo: Método, 2006.