Ou
seja, sendo o direito um produto retórico, enquanto sistema de
linguagem social, garantido pela sanção e coatividade daí
decorrente, e, partindo-se do pressuposto de que o Direito deve
ser explicado com base no princípio da auto-referência do
discurso, que está no mundo dos bens culturais a manifestar-se
como linguagem (idem), teremos, num primeiro relance,
uma falsa impressão de divórcio da realidade da norma, de base
retórica, da realidade da vida, de base ontológica, e, resta-nos
a impressão de que, por alguns momentos, Parmênides e Heráclito
estão a discutir, na faculdade de filosofia do Hades, se a
norma, como ser, uno e auto-referente, enquanto linguagem, funda a
realidade retórica da regra jurídica, como ser auto-referente;
ou, se a norma jurídica e sua existência estão no grande fluxo
de mudanças do devir da realidade, de uma ontologia jurídica.
Mas,
como é da prudência do estudioso não se fiar em aparências,
devemos procurar os verdadeiros fundamentos de tal posicionamento
retórico, pois ocorre que além do instrumental retórico
imanente da compreensão da linguagem como instrumento fundamental
do conhecimento humano, o referido divórcio não se verifica,
afinal, como bom discípulo da fenomenologia, fundada por Husserl,
o nosso Paulo de B. Carvalho define que "o texto ocupa o
tópico de suporte físico, base material para produzir-se a
representação mental na consciência do homem (significação)
e, também, termo da relação semântica com os objetos
significados" (Op. Cit., p.15).
Ou
seja, a teoria retórica deverá considerar que o seu objeto, a
linguagem, emana de determinados suportes físicos, seja um papel,
seja a própria pessoa, que ontologicamente existem, como produtos
de atos reais, portanto, se o texto é auto-referente, também, as
coisas e as pessoas, enquanto seres, também, são auto-referentes
dentre do real.
Pelo
exposto, percebemos que o primeiro passo, de natureza retórica,
que busca na linguagem, e, na sua correta compreensão, e
interpretação, como instrumento do conhecimento, por excelência,
é simplesmente um ato preparatório de natureza metodológica
para passos mais complexos, que visam atuar sobre a realidade.
Este
processo de passagem do retórico, no plano da linguagem, para a
ação, no plano da realidade, descreverei tomando por base a
Teoria do Quatros Discursos, teoria que é imanente à obra
aristotélica, e, que foi decifrada de forma científica pelo
filósofo brasileiro Olavo de Carvalho, in Aristóteles
em nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos,
Ed. Topbooks, Rio de Janeiro, 1996.
Em
resumo, citada teoria define o seguinte: a linguagem é uma
manifestação do intelecto humano, que pode ser observada por
quatro focos distintos, sucessivos do ponto de vista lógico e
simultâneos na perspectiva ontológica, que são representados
pelas as quatro ciências que têm especificamente a linguagem
como seu objeto imediato de estudo: a poética, a retórica, a
dialética e a analítica ou lógica.
Isto
posto, percebe-se que todo e qualquer discurso, social ou,
principalmente, jurídico, primeiro tem que ser imaginado, depois
consolidado em uma doutrina ou tese, ou opinião, que será posta
à prova, e, caso seja aprovada como fundada e correta, conforme
os critérios de validade postos na discussão dialética,
resultando o nível de credibilidade que denominamos de certeza
apodíctica, teremos, então, a premissa maior lógica, a certeza
que conferirá validade ou não às novas retóricas que venham a
surgir e mereçam ser postas à prova, pois o próprio quadro de
crenças, que serve de referência para conferir credibilidade a
esta ou àquela retórica, compõe-se de premissas dadas como
corretas, como axiomas do raciocínio, que são desvendadas
socialmente mediante este processo seletivo dos quatro discursos.
Percebe-se
que nesta teoria dos quatro discursos está descrito o processo
intelectual que permite compreender a linguagem, desde a sua
realidade de ideais e sonhos até a frieza de uma verdade
científica, passando pelos acalorados debates em que retóricas
antagônicas deverão ser postas à prova, pelo processo da
triagem dialética.
Mas,
reconduzindo este texto ao seu contexto inicial, melhor dizendo,
ao seu contexto de teoria do conhecimento aplicado ao Direito; e,
retomando o braço do preclaro Paulo de B. Carvalho, encarando de
forma honesta a sua obra, fruto de muito esforço, como percebe-se
pela clareza e objetividade de suas exposições; e, para maior
compreensão de sua doutrina, devemos encarar que a sua postura de
aceitação das teorias retóricas, como metodologia
que calca-se na realidade da linguagem enquanto instrumento de
produção da realidade social, com eficácia e efetividade,
atuando de forma concreta, formando e deformando a realidade
mesma, visando, portanto, fins ontológicos, pois são idéias e
doutrinas que visam conseqüências, jurídicas, de base retórica
mas de finalidade material, pois visam influir em tomadas de
decisões, citada postura metodológica que visa clarificar,
em traços gerais, o sentido, a essência, os métodos, os
pontos de vista capitais de uma crítica da razão jurídica,
pois o Direito é linguagem vestida de coatividade.
Sob
esta perspectiva de interação dialética entre retórica e
realidade, verificamos que em torno do conceito de doutrina, como
conhecimento racionalmente ordenado visando fins pedagógicos,
devemos aferir, antes de mais nada, que toda doutrina é uma
retórica, entretanto, nem toda retórica pode ser chamada de
doutrina.
Ora,
a mera doxa (opinião) só deve converter-se em doutrina
após a prova da validade de seus fundamentos, ou seja, retórica
dialetizada, e, que passe pela prova de não ser contraditória,
possuir identidade num objeto de conhecimento e não causar
confusão cognoscitiva, passará a gozar do status de
episteme (conhecimento).
Diante
do método científico do tributarista P. de B. Carvalho, uma vez
submetido à prova dialética do método de interpretação da
Teoria dos Quatro Discursos, vislumbra-se por entre os
galhos desta floresta de saber a constatação: que a posição
retórica é mero ponto de partida para doutrina do Jurista
Carvalho.
Pauto
de Barros Carvalho, ao adotar a postura retórica diante do
Direito, outra coisa não fez que encarar o próprio problema de
validade do conhecimento, partindo da mais humilde postura do
cientista que não se impõe mediante argumentos de autoridade,
mas, mediante operações lógicas, faz prevalecer o a força do
espírito, para desvendar o espírito da lei.
A
referida postura retórica segue num crescendo de confrontos entre
seus pressupostos e suas conseqüências, logo, pondo à prova a
sua coerência, e, portanto a sua validade.
E,
que coisa interessante, chega-se, sem sombra de dúvida, através
de operações retóricas, mas adotando o processo dialético de
confrontação de posições e oposições, segundo um método
maiêutico, ou seja, mediante um constante questionar, alcançam-se
os fundamentos de validade lingüísticos-ontológicos, isto é, a
linguagem não é senhora e dona da realidade, tem-se a todo
momento a visão da realidade social mediante a consideração dos
princípios que informam o Direito, no caso, em seu ramo
tributário, prova desta postura pé-no-chão temô-la em
seu Curso de direito tributário. São Paulo, Saraiva, 11.ª
edição, 1995, p. 54, quando, ao se questionar em que espécie de
veículo normativo se converte a medida provisória, se em lei
ordinária ou lei complementar, assim disserta:
não
havendo previsão constitucional expressa, tudo ficaria na
dependência da matéria disciplinada, de tal modo que, ferido
tema de lei ordinária, nesta se converteria; se o assunto for
pertinente ao âmbito de competência de lei complementar, nesta
espécie de diploma normativo haveria de transformar-se; e assim
por diante
Entretanto,
o nosso tributarista assevera a imprestabilidade desta
interpretação, pois não respeita a reflexão, a filosofia, os
valores do sistema, e assim se manifesta (1995, p. 55):
Para
objetá-la pensemos nos chamados princípios ontológicos: um se
aplica ao direito privado: tudo que não estiver expressamente
proibido está permitido; outro, ao direito público: tudo que não
estiver expressamente permitido está proibido.
Logo,
eis provada a insuficiência da mera teoria retórica como único
suporte teórico do autor em estudo, e, salvo melhor juízo,
acrescentamos o suporte realístico, por assim dizer, que
complementa a metodologia retórica, é a adoção da perspectiva
fenomenológica, outra coisa não se está fazendo do que provocar
o giro da linguagem como auto-referência, como significado na
mente do seu usuário e como significante em relação ao objeto,
e, de posse dos conceitos e relações lingüisticamente
concertadas, procura-se realizar a comparação destes dados
teóricos com a realidade social, pois são teorias que visam a
eficácia, e este fenômeno é próprio da realidade social, que
por mais que seja fundada na linguagem, é também composta de
substância, objeto descrito pela própria linguagem, e, é sobre
este substrato que atuam as teorias retóricas.
A
retórica objetiva influenciar a feitura de fatos e atos, que nada
mais são que entes materiais ou intelectuais vestidos de
linguagem, mas dotados de materialidade, porque existem e resistem
no tempo e espaço, independentemente desta ou daquela retórica
ou linguagem.
Levar
ao extremo a consideração das teorias retóricas como instância
única para o julgamento do real, é um erro no qual a lucidez de
Paulo de B. C. não o deixa incorrer.
Uma
visão extremada do texto como auto-referente implica numa certa
coisificação do texto, como se a realidade dele emanasse, o que
não ocorre, pois o texto é mero auxílio à memória, como já o
disse Platão, pela boca de Sócrates:
LX
– Sócrates – Logo, quem presume ter deixado num livro uma
arte em caracteres escritos, ou quem a recebe, na suposição de
que desses caracteres virá a sair algum conhecimento claro e
duradouro, revela muita igenuidade e o desconhecimento total do
oráculo de Amão, dado que imagine ser o discurso escrito mais do
que um meio para quem sabe, a fim de lembrar-se do assunto de que
trata o documento.
Fedro
– É muito certo.
Sócrates
– É que a escrita, Fedro, é muito perigosa e, nesse ponto,
parecidíssima com a pintura, pois esta, em verdade, apresenta
seus produtos como vivos; mas, se alguém lhe formula perguntas,
cala-se cheia de dignidade. O mesmo passa com os escritos. És
inclinado a pensar que conversas com seres inteligentes; mas se,
com o teu desejo de aprender, os interpelares acerca do que eles
mesmos dizem, só respondem de um único modo e sempre a mesma
coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita, rolam daqui
dali os discursos, sem o menor descrime, tanto por entre os
conhecedores da matéria como os que nada têm a ver com o assunto
de que tratam, sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não.
E no caso de serem agredidos ou menoscabados injustamente, nunca
prescindirão da ajuda paterna, pois por si mesmos são tão
incapazes de se defenderem como de socorrer alguém.
E
de fato, o jurista Carvalho, intuitivamente, obedeceu aos ditames
dos quatro discursos, e, ao mesmo tempo não ignorou a realidade
ao adotar e ter sempre em vista os princípios ontológicos, e,
com isso, deslindar uma fundada visão fenomenológica do Direito,
ou seja, dosa a viagem teorética com a vivência empírica do
direito enquanto fenômeno social.
O
Direito, e seu ramo tributário, segundo a ótica do Dr. Paulo de
B. Carvalho, como objeto de conhecimento, é o ato de conhecer,
segundo este ou aquele critério parcial; isso quer dizer que
jamais a Ciência do Direito poderia esgotar todas as perspectivas
a serem consideradas, pois não apreendemos a coisa em si, mas,
este ou aquele aspecto da realidade, e, assim, também, com o
Direito.
Nada
mais escorreito e objetivo que a abordagem do referenciado
tributarista, que não se arroga dono da verdade absoluta, mas,
que nos fornece com o seu método, mescla de retórica e
ontologia, lingüística e fenomenologia, um belo e agradável
caminho a trilhar pelas sendas jurídicas estando apto para
apreender a verdade conforme o método proposto.
Cada
método um caminho, e dentro de dado caminho um objetivo, a
verdade, ainda que relativa, porque humana, mas suficiente para
orientar a ação, porque ação sem a certeza razoável conferida
por um parâmetro de verdade, não será ação, será mero evento
aleatório e incontrolável. E, em especial, no campo jurídico,
toda ação necessita de direção conferida por uma certeza,
afinal, se a norma é feita para incidir, uma doutrina é feita
para doutrinar, ou seja, incidir sobre o próprio pensamento de
quem interpretará o âmbito de incidência de uma norma qualquer.
A
lei se aplica mediante um esforço de doutrina, de retórica, de
pensamento, de interpretação, tudo entremeado de valores e
ideais, em suma; mas, todas estas operações complexas do
espírito servem para modificar a realidade, que sempre permanece
independente da retórica, da poesia, da dialética e da lógica,
enquanto coisa dada, como natureza, mas potencialmente sujeita a
sofrer a incidência material da retórica que visa modificá-la
mediante a aplicação da lei, enfim, mediante a ação humana,
este animal racional que necessita conhecer para ser, e, assim o
mundo que o cerca é alterado por ações oriundas de sua
racionalidade, de operações de pensamento, de linguagem, pois
pensar é falar consigo mesmo, e antes de agir sempre pensamos no
mínimo uma vez.
Em
conclusão, tendo em vista a Teoria dos Quatro Discursos, o
posicionamento metodológico-retórico adotado por Paulo de Barros
Carvalho é somente uma postura inicial que visa delimitar o
âmbito de estudo do Direito como linguagem social prescritiva,
dentro de um método maior que é o da Teoria Pura do Direito,
mas, apesar de haver o axioma da norma hipotética fundamental,
base para o estudo do Direito como sistema hierarquicamente
concatenado de forma abstrata em vista da metodologia científica,
o nosso jurista nunca esquece que o Direito é nada mais que um
dos inúmeros fenômenos ontológicos, com princípios
ontológicos, e, por assim dizer: as teorias retóricas
desempenham o papel de descrever a forma de apresentação do
Direito como linguagem social; entretanto, como forma sem conteúdo
não existe, as teorias retóricas enquanto forma sempre terão
que dialetizar com o conteúdo normativo, com os fatos da
realidade social, com a natureza das coisas que sempre precedem as
palavras na ordem do ser, pois o mundo não é uma afirmação que
procede da linguagem, é a linguagem que procede da
auto-referência do mundo, dada a constatação que antes da
linguagem humana o descrever, a natureza primeiro descreveu o
homem mediante uma linguagem biológica e evolucionista,
fazendo-nos passar da condição do intelecto meramente animal
para o racional.