sábado, 15 de julho de 2017

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: A LEI DA UNIDADE





LEI DA UNIDADE

É a lei da integral, pois todas as coisas que são, de que modo forem, constituem uma unidade. Ser, de qualquer modo, é unidade, é ser um. Só o nada não é unitário, porque o nada não é. A lei da unidade preside todos os seres que participam da unidade suprema do ser, num grau intensistamente mais baixo, proporcionado à sua natureza. A máxima unidade é a unidade absoluta de simples simplicidade, do Ser que é apenas ser e sem deficiência portanto, todo o ser, o Ser Supremo, o Um.

Porque todas as coisas estão "como numa prisão" no Ser Supremo, todas participam dessa lei, que rege todas as coisas.

Tudo quanto é finito e unitariamente o que é e tende a tornar-se parte integrante de uma unidade. Nada se dá que não seja unitariamente, segundo os graus intensistas da unidade. Essa lei preside todas as coisas.

Deste modo, o número aritmético 1 simboliza a Unidade e, por isso, pelo simbolizar tudo quanto é e de que modo for um.

O Ser Supremo, Um, como forma, é o Pai, gera o Um como "operatio", como operação, através de uma procissão "in intra", pois o Um criador é o Filho, gerado por aquele. Nas religiões, o Pai e o Filho surgem como símbolos da correlação mais estreita, pois o Filho é filho do pai e o Pai é pai do filho, de modo que a afirmação de um é a afirmação do outro. Transferindo-se para a linguagem filosófica, em sentido pitagórico, o "Hen Prote" é existencial e essencialmente ele mesmo, imutável e eterno, porque o Ser, enquanto Ser, é absolutamente Ser. Mas esse ser é ativo, atua, realiza, opera. E o operar implica a escolha, a intelecção (o intelecto). O "Hen Prote" é Vontade, como querer, palavras que nos podem simbolizar a omnipotência do Ser Supremo, que pode tudo quanto pode ser. Mas, ao realizar algo, seu operar é intelectual, escolhe o que será atualizado. O Ser Supremo, como operação, é o "Hen" que gera a Díada indeterminada, que corresponde ao ato formativo e a potência materiável, para permanecermos, de certo modo, na linha do aristotelismo, ou melhor, aproveitando a terminologia aristotélica para auxiliar a exposição do pensamento de Pitágoras, pois o ato formativo, o determinante, e a potência materiável, a determinabilidade, são apenas vetores, que surgem simultaneamente do ato criador do "Hen Dyas aoristos", pois é o Filho, que é o Criador, porque é o Ser, quando "opera", que cria. Mas, uma não se separa abissalmente da outra, porque a determinação implica a determinabilidade. Nossa mente, que é abstrativa, separa em conceitos o que é um só na realidade, mas que apenas se distinguem formalmente, pois o "Logos" do Um criador gera, em seu atuar, a ação da díada indeterminada, cujo "Logos" é dual, pois a ação implica o atuado, pois esta se dá inerente ao atuado e dele não se separa, como muito bem mostrou Suarez. Dessa forma, na criação, esta pertence à criatura, que surge da Díada. O "Hen" (Filho) atua realizando a ação, mas esta é uma modal absolutamente inerente ao atuado. Assim, mas próximo de nós, a ação do movimento de um roda é inerente de modo absoluto à roda. A ação não é uma modal do Ser Supremo. Se fosse, ele sofreia mutações. Seu atuar consiste em realizar a ação e a ação é determinadora de uma determinável. A criação é da criatura e não do criador. Esta tese já a demonstramos com exuberância de provas, em "O Homem perante o Infinito" e em "Filosofia Concreta", para onde remetemos o leitor.

É com o "dois" que surgem as coisas finitas, e o dois, aqui, simboliza a Díada. Na díada indeterminada, temos, como positividades formalmente distintas:

a determinação indeterminada = "o poder" (potência ativa), de determinar ilimitadamente; e

a determinabilidade indeterminada = "o poder" (potência passiva) para ser determinada ilimitadamente

O ato pode sempre determinar e a potência é sempre determinável. Mas uma determinação absoluta é mpossível, porque seria um ato, e haveria uma contradição "in adjectis", pois o infinito é o poder sem fim de determinar e se tudo fosse já determinado, o determinado haveria alcançado o limite de sua determinação. E, ademais, alcançaria o quantitativo em ato, o que é absurdo.

Portanto, o ato de determinar implica um limite, o limite de determinação, e ele limita a coisa determinável. Mas, o que está determinado é, ilimitadamente, o que está determinado, portanto, o que recebeu uma determinação é, enquanto tal, ilimitadamente ele mesmo, mas limitado pelo que não é ele, e, também, pelo que é ele, pois o é até onde é o que é. Desse modo, a ação criadora, a criação, realiza um limitado, que é, enquanto ele mesmo, ilimitadamente ele mesmo, mas que é limitado por si mesmo, pois só é o que é até onde é o que é, e limitado pelo que não é ele, que é o que é possível de ser, que não está contido em sua natureza.

Assim, a díada indeterminada é potencialmente infinita e é tudo quanto pode ser determinado: é, simultaneamente, o infinito potencial de determinar e o infinito potencial de ser determinado. Nesse caso, o ato-formativo pode determinar sem fim tudo quanto pode determinar e a potência-materiável, que é passiva, pode ser determinada sem fim, em tudo quanto pode ser determinado.

Assim se aplica, pois, o infinito potencial quantitativo, e não o atual. Enquanto este é absurdo, não o é aquele.

Ora, a díada indeterminada não tem limites em si, é ela indeterminada, ilimitada enquanto tal, mas é limitadora em seu atuar. Não são ambas absolutamente independentes, pois são criadas pelo "Hen". Dele dependem, por isso não tem a absoluta simplicidade do Ser Supremo, nem a sua infinitude, que é eterna, não tem a infinitude atual, mas a infinitude potencial, o poder ser ativo e passivo sem fim.

E é aqui que está o funcionamento da criação ab-aeterno dos pitagóricos de grau elevado. Pois a díada indeterminada não tem um princípio no tempo, pois o tempo implicaria a determinação e coisas determinadas. O tempo começa quando o ato formativo modela a potência materiável. O tempo é das coisas determinadas limitativamente. Desse modo, a díada, que não é eterna, pois não é a "duratio tota simul", porque, como veremos, uma limita a outra e, portanto, dão-se entre elas relações das mais diversas, que em breve analisaremos, e como não é temporal, porque o tempo se dá na sucessão das coisas determinadas, que são por aquela díada gerada, ela pertence a uma duração que não é "tota simul", totalmente simultânea, mas que também não sucede, a qual inclui, como espécie, a sucessão, que é o tempo. A duração da díada é a eviternidade, é o "aevum".

Mas, tanto uma como outra (o ato formativo e a potência maeriável) são positividades e não meros nadas. Se se distinguem formalmente, distinguem-se, também, na realização do ente determinado. São duas positividades, duas posições, duas teses, são téticas. Uma está ante a outra "ob" à outra:
                                            
posição                   "ob"                    posição

são assim "opostas".

A Díada, enquanto ela mesma, é a substância universal, pois é dela que são geradas todas as coisas. Na linguagem aristotélica, a matéria é a substância primeira ("ousia prote") e a forma é a substância segunda ("ousia deutera"). Um ser finito é a composição dessas duas positividades. Pois essa é a tese pitagórica, com a distinção que a substância das coisas é uma só, a díada na coisa, mas formalmente distintas, isto é, o "logos" de cada uma é distinto da outra.

Desse modo, tudo quanto há finito é produto dessa "oposição". E é essa razão porque se a substância é a primeira categoria pitagórica, é a oposição a segunda, porque é da conjunção das duas positividades ato-formativo e potência-materiável, que surge qualquer ser finito.

Não nos podemos furtar a uma análise sobre tema de tal relevância, como seja o de ato e potência. Em nossos livros "Filosofia e Cosmovisão" e "Ontologia e Cosmologia", examinamos as diversas maneiras de considerar esse tema fundamental do aristotelismo, como também da escolástica e da própria filosofia.

Nesses trabalhos, que antecedem outros mais completos que pretendemos realizar, está delineada, em linhas gerais, a nossa posição. Ante os que afirmam a distinção real-real, ou real-física, entre ato e potência, nós nos colocamos do lado dos que negam esse diástema, que agravaria a crise entre os dois modos fundamentais do ser. Sabemos que os tomistas afirmam a distinção real-real, enquanto os escotistas afirmam apenas uma distinção formal. Os primeiros declaram fundar-se não só em Aristóteles, como em Tomás de Aquino. Quanto ao primeiro, não opomos a menor restrição, mas quanto ao segundo há dúvidas sérias de que se fosse o verdadeiro pensamento do aquinatense. Nas obras citadas, expusemos as razões fundamentais do escotismo contra a distinção real-real ou física.

Esta provocaria uma afluxo desmedido de aporias e impediria a solução de outras, que surgem da colocação da tese criacionista.

Por sua vez, oferecem os tomistas também seus argumentos. É impossível, aqui, fazermos a análise e a crítica dessas posições, que, como já dissemos, será matéria de futuros trabalhos nossos. Contudo, queremos por ora chamar a atenção para um aspecto que é de magna importância do filosofar. A filosofia, embora tendendo a alcançar a maior objetividade e a isenção de tomadas de posição opinativas e valorizadoras, inegavelmente, ante o tema do ato e da potência, há a presença de um preconceito da "doxa", que, a nosso ver, influiu profundamente em todo o processo filosófico do ocidente. Este preconceito, de origem aristotélica, consiste em desmerecer a potência em face do ato, e desvalorizá-la a ponto de despojar-lhe o próprio ser, transformando-a em nada. Esse preconceito, cujas raízes emergentes e predispotentes, permitir-nos-ia uma análise psicológica de grande extensão, deve ser denunciado, sob pena de a filosofia não poder alcançar novos lanços do seu caminho a resolver, consequentemente, muitas das aporias, que até então pareciam insolúveis. Se passarmos os olhos pelo pensamento hindu, egípicio e chinês, verificamos que, nesses povos, ato e potência estão colocados no mesmo pé de igualdade axiológica e ontológica.

Entre os gregos, Pitágoras, Sócrates e Platão valorizaram, igualmente, ato e potência. Veja-se a definição do ser dada no "Sofista". O "ser" é, fundamentalmente, "potência" (poder). É "ser" toda potência determinativa, do mais alto ao mínimo grau, e é ser toda a potência determinável, do maior ao mínimo grau, em qulaquer momento, por mínimo instante de tempo. Platão era um "potencialista", seguindo, assim, a linha pitagórica.

A díada indeterminada, no pitagorismo, afirma a potência determinadora (ativa) e potência de ser determinada (passiva). Nós, nos livros citados, defendemos a tese de que todo ser, por mínimo que seja, caracteriza-se pela "presença" e pela "eficacidade". Todo ser é eficaz. O ato é a eficientização dessa eficacidade, e a potência é a eficacização da eficienticidade. A potência não é um não-ser, mas um modo vectorialmente inverso do que é, em ato. A potência é virtual e fundada na eficacidade. Em "Filosofia Concreta" mostramos que fazer é ser feito, porque, quando se faz alguma coisa, alguma coisa é feita. A ação determinadora exige uma correspondência determinável, pois, se não existisse essa correspondência, a ação determinadora se aniquilaria, porque atuaria sobre o nada e atuar sobre o nada, é nada atuar. A idéia de determinação implica a determinabilidade. Assim, à potência infinita da determinação tem de corresponder a potência infinita da determinabilidade. Esse pensamento, que já expusemos e que pretendemos justificar de modo exaustivo e apodítico em obra especial, corresponde, adequadamente, ao pensamento franciscano. A valorização, que o mesmo fez da matéria, da potência, em suma, levou muitos de seus adversários a acusarem, sem fundamentos sérios, São Francisco de ser panteísta, e toda a escola franciscana, na filosofia, de realizar obra panteísta, portanto, herético, ante a Igreja. Não precisamos defender os franciscanos dessa acusação, porque eles já se defenderam com brilhantismo e mostraram com suficiente habilidade que seus adversários podiam merecer a pecha de panteístas com mais razão do que eles.

Este comentário que acabamos de tecer, pretende apenas mostrar que a nossa interpretação do pitagorismo está apoditicamente bem fundada e que esse é o pensamento, também, de Platão e Sócrates, o qual perdura ainda no pensamento ocidental e representa uma vitória sobre um dos momentos preconceituosos que, a nosso ver, foi dos mais perniciosos para a filosofia.

Não é de admirar que o aristotelismo, apesar de sua grandeza, da sua pujança, tenha criado preconceitos, pois sabemos que, psicologicamente, Aristóteles, como revela sua obra, foi sempre um homem movido por preconceitos, por tomadas de posição prévias, que desfiguravam ante seus próprios olhos, a obra dos outros autores. Aristóteles, apesar da sua genialidade, falsificou, caricaturizou o pensamento alheio, como se vê quanto aos pitagóricos, quanto a Anaxágoras, a Empédocles, a Heráclito, até ao seu próprio mestre, Platão.

Mário Ferreira dos Santos, in Pitágoras e o tema do número; edição coordenada por Aluísio Rosa Monteiro Júnior, São Paulo, IBRASA, 2000, pp. 191-7

domingo, 18 de junho de 2017

ÁGORA VIRTUAL: DIÁLOGO SOBRE NÚMEROS MATEMÁTICOS

Ágora de Atenas
Introdução: tendo em vista que a internet é a nova Ágora, e que ao passearmos por esta praça virtual, em que se comercializam produtos e idéias, tecemos com amigos espacialmente longínquos interessantes redes de pensamentos, e, por sermos seres caridosos e benevolentes, divulgamos o diálogo abaixo transcrito, ocorrido entre os dias 17 e 18 de Junho de 2017, no qual são tratados alguns aspectos sobre a natureza dos números, numa apreciação filosófica do tema, com base em um referencial que "olavetes" amam:


Fórmulas

Werner Nabiça Coêlho: O número é uma pequena forma, uma fórmula, que reduz uma realidade extremamente mais complexa. 

 
Monteiro Haroldo: Mas, para se tornar um símbolo, precisa ter se apreendido meio mundo, invisível aos matemáticos atuais.

 
Werner Nabiça Coêlho: Num certo sentido os símbolos em estado bruto abundam, só não são percebidos como tais, cada vez que surge uma dízima periódica há um símbolo do infinito matemático, que na verdade é um desafio que a realidade impõe ao estudioso, pois uma coisa é mensurabilidade matemática, outra a mensurabilidade hilemórfica, pois as formas não são meramente quantitativas.


***

Idiomas
 
Werner Nabiça Coêlho: A matemática é um tipo de idioma que aborda a realidade com uma linguagem redutora dos objetos a seus aspectos quantitativos, com base numa abstração operada por símbolos, que significam quantidade mensuradas de forma discreta.

 
Monteiro Haroldo: Por isso que no fim, a linguagem matemática pode ser retraduzida em modo simbólico.

Da velha cadeia platônica do mito se extrai os conceitos, e, no limite dos conceitos, a única saída é a formulação de novos mitos.
 
O que o Voegelin denominara de realidade é realidade coisa. A área conceptual da realidade é mais reduzida do que muitos pensam.
 
No fundo a linguagem poética tem muito mais abrangência, e é sempre imprescindível para ampliação do horizonte conceitual.
 
Os filósofos sempre compreendem o que os poetas intuíram primeiramente.
 
Acho que o Zubiri, não sei se estou fugindo do tema, matou a charada quando percebeu que o sentir e o inteligir são um só e único processo indivisível no plano do discurso humano, esse processo se torna mais evidente com a teoria dos quatro discursos, ou da compactação e descompactação de Consciência Noética do Voegelin, explicam bem isso.
 
Acho até que a Filosofia da Crise do Mário, a Presença do Ser do Lavelle, a Teoria dos Quatro Discursos do professor Olavo, a Teoria da Consciência Noética do Voegelin e a Trilogia Senciente do Zubiri chegaram ao ápice de uma possibilidade conceitual que, ao meu ver, são a antessala para uma nova filosofia da história.
 
Deus queira que eu não esteja enganado!

Pois só com uma nova visão da teoria da história será possível sairmos desse interregno da era das ideologias e dar à Igreja Católica a possibilidade do domínio da cultura!
 

Werner Nabiça Coêlho: Eu acrescento a este cabedal teórico o aspecto antropológico do mimetismo de René Girard, que refere-se à constituição ritual dos símbolos da própria fala, e apresenta uma hipótese evolutiva dessa transição entre o sentir e o inteligir, e do nascimento da própria poética como uma manifestação primária do sagrado.


***

Abstrações

Werner Nabiça Coêlho: Há um permanente processo de raciocínio lógico na matemática, pois a sua própria aceitação necessita de alguns passos que podem ser enumerados assim:

a) abstração de uma realidade concreta e contínua por meio de criação de um símbolo que representa uma determinada quantidade discreta e abstrata, o conceito de número;

b) criação de um idioma específico (figuras geométricas, números romanos, números árabes) que traduzam os conceitos em padrões transmissíveis de linguagem;

c) descrição de fenômenos e hipóteses com base no princípio quantitativo e abstrato, por meio de sofisticados processos de raciocínios lógicos.

 
Monteiro Haroldo: Eu não sei se é bem a criação de um símbolo, pois o símbolo tem sempre uma parte virtual e outra real bem ancorada a uma realidade referida.

Os números matemáticos me parecem, posso estar enganado, estritamente ideais, pois dizer que A=A é, em realidade, uma impossibilidade pura e simples, afinal não há nada que seja idêntico no devir, só a Deus se aplicaria então tal abstração de identidade que está na base do edifício matemático.
 
A matemática, fora da área de aplicação prática, é pura abstração. Não estou discutindo o que você disse, só apenas comunicando-lhe aqui uma questão que tenho, e que não está ainda bem resolvida.

 
Werner Nabiça Coêlho: Fizeste uma descrição do número que na metafísica representa a identidade, que é a unidade, que simboliza a não-contradição consigo mesmo, e, só para efeito de esclarecimento, quando refiro a símbolo matemático falo de conjuntos de unidades quantitativas, ao modo dos números euclidianos, e quando refiro ao idioma da matemática, estes são os símbolos gráficos, no resto é pura aplicação de lógica formal mesmo que opera a parte dos cálculos.

 
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Método

Werner Nabiça Coêlho: O método da ciência matemática é uma redução de um aspecto da realidade, basta lembrar que a matemática tem suas limitações, ela não é a ferramenta adequada para avaliações morais, ou estéticas, a matemática é uma forma especializada de avaliação de dados quantitativos.

 
Monteiro Haroldo: é realmente muito limitado e é um verdadeiro pedantismo moderno achar que o mundo físico pode ser ele totalmente matematizável.

Apesar de eu ver nesse símbolo da matematização da realidade, rebatido para o plano simbólico, até bem revelador sob certos aspectos geométricos bem evidentes.
 
O senso geral de harmonia, por exemplo, seja além do musical, que é plenamente matematizável, o pictórico, até certas núcleos de significado histórico, como o dos ciclos culturais, o fenômeno do cinesismo espacial e etc, parece-me ter no fundo de tudo algum "q" de matemático.

 
Werner Nabiça Coêlho:  Divertido é que a matemática tem algumas semelhanças com os diálogos platônicos, pois da mesma forma que estes nos levam aos mistérios das aporias, os cálculos de precisão nos encaminham para os campos do incomensurável, que nos força a recorrer a símbolos como o Pi, da mesma forma que Sócrates se referia aos mitos.

O cartesianismo reinante é uma aposta na materialidade mensurável, que se defronta permanentemente com dados incomensuráveis da realidade objetiva, a realidade refuta repetidamente o dogmatismo materialista da modernidade

 
Monteiro Haroldo: O Mário Ferreira dos Santos diz que uma tese que seja logicamente bem armada em premissas verdadeiras implicará em que a realidade não tardará em comprová-la, a realidade parece que tem um gosto de assim o fazer.

 
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Limites

Werner Nabiça Coêlho: Os limites da ciência matemática devem ser reconhecidos, para se evitar a utilização indevida em áreas na qual seu uso é inadequado, temos que lembrar os diversos aspectos da realidade não tangenciados pelo estudo meramente quantitativo.

 
Monteiro Haroldo: Sim, como o da moral. Apesar de que no fundo de toda realidade há uma certa geometria, portanto, uma ordem matemática superior, uma meta-matemática.

 
Werner Nabiça Coêlho: Pitágoras e Platão postularam a matemática das formas existentes na eternidade.

Aristóteles descreveu a transição de tais formas para a existência com base no conceito de hilemorfismo e enteléquia, oriundas de Deus, e o Wolfgang Smith descreve o mesmo fenômeno como causalidade vertical, este sentido da matemática é essencialmente o sentido da metafísica deísta tradicional, na qual o conjunto de todas as qualidades e quantidades e suas relações mútuas interagem para formar o número existencial de cada ser.

Isso não é número matemático no sentido moderno

 
Monteiro Haroldo: Sim, claro. Eu acho que nesse sentido o Mário Ferreira dos Santos chegou ao ápice.

 
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Ciência Pura

Werner Nabiça Coêlho: O caráter abstracionista é um axioma do processo de redução, operado na metodologia matemática, e demais metodologias científicas, afinal, é o estudioso que pretende traduzir em linguagem, seja em prosa, em verso, ou em matemática, um dado do real e não o contrário.

 
Monteiro Haroldo: Sim, mas dado as categorias aristotélicas, os axiomas já vem de certa forma fechando para uma univocação conceitual, pois, na medida em que o foco de linguagem vai se aperfeiçoando, subindo de nível, com a penetração do objeto, esse também vai delimitando os conteúdos de linguagem digna ou válida para a formulação dos seus princípios.

 
Werner Nabiça Coêlho: A ciência pura cria constantemente campos estritos e especializados, a técnica filosófica reúne os dados e confere um sentido global e interativo aos dados na busca do sentido superior e unificante, como ensina o Olavo de Carvalho.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

DIMENSÕES HISTÓRICO-PRÁTICAS DA INVESTIGAÇÃO NATURAL

A verdade é nosso primeiro amor, e dela termos experiência tão logo formulamos o princípio da não-contradição.
Carlos A. Casanova em sua obra "Física & realidade: reflexões metafísicas sobre a ciência natural", cuja tradução foi feita pelo físico e filósofo da ciência Raphael D. M. de Paola, descreve alguns aspectos muito interessantes a respeito das dimensões históricas e práticas da investigação natural, na qual demonstra que nossas indagações científicas são diretamente vinculadas ao que "nos foi transmitido no lar e na sociedade" (p. 141).

Carlos Augusto Casanova Guerra
Casanova define que a "autêntica atividade científica é uma atividade prática e institucional, orientada, por isso, a certos bens dos quais emanam regras", e que a "empresa científica" é o compromisso com a busca da verdade, por esta ser "uma atitude natural do espírito humano" (p. 144), para em seguida declamar que:


[...] A verdade é nosso primeiro amor, e dela temos experiência tão logo formulamos o princípio da não-contradição. Então, retrospectivamente, podemos dar-nos conta de que o que sempre amamos era o que já descobrimos. Feitas todas essas correções, diria que MacIntyre tem razão, que a ciência é um empreendimento prático e institucional (p. 144).

Do aspecto prático e institucional da atividade científica derivam cientificismo ou positivismo, dado seu caráter técnico e operacional, torna-se portador de valores contrários às "verdades fundamentais acerca da natureza humana e da sociedade sobre a ordem política pode acabar destruindo ou debilitando consideravelmente as condições históricas que fazem possível a ciência.” (p. 145).

Esta postura da ciência que entra em guerra com os valores humanos naturais torna necessária  uma "teoria ética não sofística", pois o "amor à verdade que está na raiz da atividade de investigação fecunda pode exigir muitas vezes um verdadeiro ascetismo" (p. 145), e relata que:

[... ]é necessário um grande desapego às próprias teorias dos demais para aceitar os resultados dos experimentos e fazer as observações com a amplitude que requerem as descobertas importantes. O cientista deve ter os olhos livres de vaidade e inveja, de más paixões e interesses baixos. 


[...] Nada retardará mais a decisão que deveria levar a uma reforma bem sucedida na teoria física que a vaidade que torna o físico demasiado indulgente cm seu próprio sistema e demasiado severo para com o de outrem (p. 145-6)

Casanova esclarece de forma clara que o cristianismo foi o provedor da condição de possibilidade da existência de uma ciência tal qual a conhecemos, pois:

sua postulação do começo temporal do mundo, da liberdade e transcendência de Deus e do ato criador, deixou aberta a possibilidade de uma investigação astronômica que rompesse na Cristandade latina com a astronomia teológica averroísta (p. 147).

A crise da ética na ciência aprofundou-se com Descartes, quando este postulou uma visão do mundo que recorreu ao "nominalismo ou ficcionismo das hipóteses" que influenciou de forma deletéria seus seguidores, pois tal método visou sobretudo  "lograr uma certa tolerância" politicamente correta entre as ciências e a teologia cristã, atitude que deixou de lado o rigor na busca da verdade em seu sentido metafísico e racional.

Tal postura frutificou, nos séculos seguintes, "uma atitude de desprezo pela sabedoria e pela verdade, substituídas pelo 'útil' e pleo 'progresso'", que na prática da ciência se configurou no ceticismo filosófico, que recusa estudar as causas em suas investigações físicas, e, com isso, se tornou predominantemente experimental.

Para concluir esta breve resenha deixo aos leitores uma síntese do progresso do materialismo:

"O progresso da ciência deu lugar de fato ao surgimento da metafísica materialista, ingênua certamente, mas que iria ter uma grande influência nos séculos XVIII e XIX, e por definição anti-teológica. O Deus dos cientistas […] o 'ser inteligente e poderoso' reverenciado por Newton nos Principia, quando apropriado pelos deístas do século XVII, já não mais dava primazia ou unidade ao cristianismo entre todas as religiões. A estratégia 'ficcionista' ou 'convencionalista' adotada por Descartes e proposta por Berkeley, a mais corrosiva de todas, converteu-se, em mãos dos filósofos seculares, como David Hume (1711-1776) e Emmanuel Kant (1724-1804), na origem de uma doutrina que era a uma só vez anti-racional e anti-teológica. Aplicada universalmente, como o foi inevitavelmente, deixou de ser uma defesa da Teologia contra a Ciência e converteu-se numa ameaça para todo o conhecimento, fosse racional ou revelado. (p. 147-8)

Werner Nabiça Coêlho - 16/06/2017

quinta-feira, 1 de junho de 2017

TEXTOS HIPOCRÁTICOS: DA NATUREZA DO HOMEM



CAIRUS, Henrique F. “Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença”. Henrique F. Cairus e Wilson A. Ribeiro Jr. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005, 252 p. (Coleção História e Saúde)


“Trata-se de um texto norteado por um novo conceito que as Escolas Médicas de Cós e Cnido trazem a essa cultura que mutatis mutandis é a nossa: a verdade pragmática, não ideal (como a socrática), nem somente comprovável (como a de Empédocles ou a de Anaxágoras), mas já comprovada, pretensamente abnuente de dogmas, que necessitava de uma expressão divulgadora em nome de um altruísmo ainda pouco conhecido, capaz de, qual em Eurípedes, unir a humanidade, e não apenas os povos.” (p. 41)


DA NATUREZA DO HOMEM

CAP. 1

“Quando, pois, todos utilizam o mesmo juízo, mas não dizem as mesmas coisas, é evidente que não as conhecem” (p. 42)

“...é justo aceitar que quem fala conheça bem os assuntos, fazendo triunfar sempre seu próprio discurso, caso conheça ele a realidade e a demonstre como se deve” (p. 42)

CAP. 2

“...se o homem fosse uma unidade, nunca sofreria. Pois, sendo uma unidade, não haveria por que sofrer. Se realmente sofre, é necessário que haja também um único medicamento. Mas há muitos, pois há muitas substâncias no corpo, as quais, quando, contra a natureza, mutuamente se esfriam e se esquentam, e se secam e se umedecem, geram doenças; de tal modo que muitas são as formas (idéiai) de doenças e seus tratamentos vários” (p. 42)

“Apresentarei provas e apontarei as necessidades graças as quais cada substância aumenta e diminui dentro do corpo” (p. 43)

CAP. 3

[…]

CAP. 4

“O corpo do homem contém sangue, fleuma, bile amarela e negra; esta é a natureza do corpo, através da qual adoece e tem saúde. Tem saúde, precisamente, quando estes humores são harmônicos em proposição, em propriedade e em quantidade, e sobretudo quando são misturados. O homem adoece quando há falta ou excesso de um desses humores, ou quando ele se separa no corpo e não se une aos demais.” (p. 43)

CAP. 5

“...as substâncias que eu afirmaria constituírem o homem são sempre as mesmas segundo o costum e a natureza;” (p. 44)

“...segundo o costume, se distinguem, e nenhum deles tem o mesmo nome.” (p. 44)

“...de acordo com a natureza as aparências se diversificam” (p. 44)

“...cujas cores não se apresentam as mesmas diante dos olhos, nem parecem ser a mesma coissa ao ao toque da mão?” (p. 44)

“Podes crer que não são todos estes uma única substância, mas cada uma delas tem sua particular propriedade e natureza” (p. 44)

CAP. 6

“Pois o remédio, quando adentra o corpo, primeiro remove o que estiver mais de acordo com sua natureza nos órgãos internos do corpo; depois, extrai e purga os outros humores.” (p. 44)

CAP. 7

“Todos os anos compreendem todos os princípios: o calor, o frio, o seco e o úmido, pois nenhum desses princípios permaneceria um instante sem todas as coisas inseridas nesse universo; mas se um elemento qualquer faltar, todos desaparecem. Pois, a partir da mesma necessidade, todos eles se reúnem e se alimentam mutuamente. Do mesmo modo, se um desses humores congênitos faltasse, o homem nã poderia viver.” (p. 45)

CAP. 8

[…]

CAP. 9

“...o médico deve por-se em oposição às constituições das doenças, às características físicas, às estações e às idades, e relaxar o que estiver tenso, retesar o que estiver relaxado.” (p. 46)

“Quando muitos homens são ao mesmo tempo tomados por uma só doença, deve-se atribuir a causa dessa doença ao que é mais comum e àquilo de que todos nós nos servimos: que é isso que respiramos” (p. 46)

“Mas quando doenças de toda espécie surgem ao mesmo tempo, é evidente que as dietas são a causa...” (p. 46)

“...deve-se adequar o que foi observado, tendo em vista a natureza, a idade e a aparência do homem, a estação do ano eu tipo de doença, e proceder ao tratamento, ora separando, ora juntando os elmentos, como foi dito outrora por mim, e lutar contra cada condição das idades, das estações, dos aspectos, das doenças, com remédios e com dietas.” (p. 47)

“Quando se instaura uma epidemia, é evidente que as dietas não são sua causa; mas o que respiramos, este sim, é a causa, e é óbvio que este paira contendo alguma secreção insalubre” (p. 47)

CAP. 10

[…]

CAP.11

[…]

CAP. 12

[…]

CAP. 13

“As doenças recentes, das quais as razões são bem conhecidas, essas são os que permitem diagnósticos mais precisos. Deve-se, pois, proceder à cura delas opondo-se à causa da doença; dessa forma será possível, com efeito, livrar-se do que torna possível a doença no corpo.” (p. 49)

domingo, 21 de maio de 2017

BERNARD CORNWELL: O RITUAL DE PASSAGEM DO GUERREIRO



Quando somos jovens, ansiamos pela batalha.

Nos salões iluminados pelo fogo, ouvimos canções sobre heróis

- como eles mataram na guerra, romperam a parede de escudos e encharcaram a espada com o sangue dos inimigos.

Quando jovens, ouvimos os guerreiros se vangloriando, ouvimos suas risadas enquanto se lembram das batalhas e seus gritos de orgulho quando seu senhor os faz recordar alguma vitória difícil.

E os jovens que não lutaram, que ainda não seguraram os escudos ao lado de outro homem na parede, são menos prezados.

Por isso treinamos.

Dia após dia treinamos com lança, espada e escudo. Começamos na infância, aprendendo a brandir uma espada com armas de madeira, e hora após hora somo golpeados e golpeados.

Lutamos contra homens que nos machucam para ensinar, aprendemos a não chorar quando o sangue do couro cabeludo cobre os olhos, e lentamente ficamos mais habilidosos com a espada.

Então chega o dia em que recebemos a ordem de marchar com os homens, não como crianças para segurar os cavalos e catar armas depois da batalha, e sim como homens.

Se tivermos sorte, teremos um elmo velho e amassado e um gibão de couro, talvez até uma cota de malha que pende feito um saco.

Teremos uma espada com mossas no gume e um escudo marcado por armas inimigas.

Somos quase homens, não exatamente guerreiros, e em algum fatídico dia encontramos um inimigo pela primeira vez e ouvimos as canções da batalha, o choque ameaçador das lâminas contra os escudos,

e começamos a descobrir que os poetas estão errados e que as canções que falam de orgulho mentem.

Mesmo antes de as paredes de escudos se encontrarem, alguns homens se cagam.

Eles tremem de medo. Bebem hidromel e cerveja. Alguns se vangloriam, entretanto a maoiria fica em silêncio até que se juntam num cântico de ódio.

Alguns contam piadas e a risada é nervosa. Outros vomitam.

Nossos líderes de batalha discursam para nós, falam dos feitos dos nossos ancestrais, da imundície que é o inimigo, do destino das nossas mulheres e crianças senão vencermos.

E entre as paredes de escudos os heróis se pavoneiam, desafiando-nos ao combate um contra um.

Vemos os campeões do inimigo e eles parecem invencíveis. São homens grandes, de rosto sério, cobertos de ouro, reluzindo em sua cota de malha, confiantes, cheios de desprezo, selvagens.

A parede de escudos fede a merda, e tudo que os homens querem é estar em casa, em qualquer lugar que não nesse campo, se preparando para a batalha, mas nenhum de nós vai se virar e fugir, caso contrário será desprezado para sempre.

Fingimos que queremos estar ali, e, quando enfim a parede avança, passo a passo, e o coração bate ligeiro como as asas de um pássaro, o mundo parece irreal.



O pensamento voa, o medo reina. Então é gritada a ordem de acelerar a carga, e você corre ou tropeça, mas fica na sua fileira porque esse é o momento pelo qual passou uma vida inteira se preparando.

E então, pela primeira vez, ouve o trovão das paredes de escudos se encontrando, o clangor das espadas, e começaram os gritos.


Isso nunca vai acabar.

Até o mundo terminar no caos de Ragnarök, lutaremos pelas nossas mulheres, por nossa terra e por nossos lares.

Alguns cristãos falam de paz, do mal que é a guerra, e quem não quer a paz?

Mas então algum guerreiro enlouquecido vem gritando o nome imundo do deus dele na sua cara.

As únicas ambições dele são matar você, estuprar sua esposa, escravizar suas filhas e tomar sua casa, por isso você precisa lutar.





Então verá homens morrendo com tripas embrenhadas na lama, com o crânio aberto, sem os olhos, os ouvirá engasgando, ofegando, chorando, gritando.

Verá seus amigos morrerem, escorregará nas tripas de um inimigo, encarará um homem enquanto enfia a espada na barriga dele, e, se as três senhoras do destino ao pé da Yggdrasil o favorecerem, você conhecerá o êxtase da batalha, o júbilo da vitória e o alívio de sobreviver.

Então irá para casa e os poetas vão compor uma canção sobre a batalha.

E talvez seu nome seja cantado e você se vanglorie de sua proeza.

Os jovens ouvirão com espanto e inveja e você não falará do horror.

Não dirá como é assombrado pelo rosto dos homens que matou, como no último fôlego eles pediram piedades e você não teve nenhuma.

Não vai falar dos rapazes que morreram gritando pela mãe enquanto você torcia uma lâmina nas tripas deles e rosnava seu desprezo.

Não vai confessar que acorda à noite coberto de suor, com o coração batendo forte, tentando escapar das lembranças.

Não vai falar disso porque esse é o horror, e o horror é contido no baú do coração, é um segredo.

E admiti-lo é admitir o medo, e somos guerreiros.

Não tememos. Pavoneamos. Vamos para a batalha com heróis. Federmos a merda.

Mas suportamos o horror porque precisamos proteger nossas mulheres, manter nossos filhos longe da escravidão e guardar nossos lares.

Por isso os gritos nunca irão terminar, até que o próprio tempo acabe.


BERNARD CORNWELL, O portador do fogo, p. 258-260