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sábado, 15 de julho de 2017

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: A LEI DA UNIDADE





LEI DA UNIDADE

É a lei da integral, pois todas as coisas que são, de que modo forem, constituem uma unidade. Ser, de qualquer modo, é unidade, é ser um. Só o nada não é unitário, porque o nada não é. A lei da unidade preside todos os seres que participam da unidade suprema do ser, num grau intensistamente mais baixo, proporcionado à sua natureza. A máxima unidade é a unidade absoluta de simples simplicidade, do Ser que é apenas ser e sem deficiência portanto, todo o ser, o Ser Supremo, o Um.

Porque todas as coisas estão "como numa prisão" no Ser Supremo, todas participam dessa lei, que rege todas as coisas.

Tudo quanto é finito e unitariamente o que é e tende a tornar-se parte integrante de uma unidade. Nada se dá que não seja unitariamente, segundo os graus intensistas da unidade. Essa lei preside todas as coisas.

Deste modo, o número aritmético 1 simboliza a Unidade e, por isso, pelo simbolizar tudo quanto é e de que modo for um.

O Ser Supremo, Um, como forma, é o Pai, gera o Um como "operatio", como operação, através de uma procissão "in intra", pois o Um criador é o Filho, gerado por aquele. Nas religiões, o Pai e o Filho surgem como símbolos da correlação mais estreita, pois o Filho é filho do pai e o Pai é pai do filho, de modo que a afirmação de um é a afirmação do outro. Transferindo-se para a linguagem filosófica, em sentido pitagórico, o "Hen Prote" é existencial e essencialmente ele mesmo, imutável e eterno, porque o Ser, enquanto Ser, é absolutamente Ser. Mas esse ser é ativo, atua, realiza, opera. E o operar implica a escolha, a intelecção (o intelecto). O "Hen Prote" é Vontade, como querer, palavras que nos podem simbolizar a omnipotência do Ser Supremo, que pode tudo quanto pode ser. Mas, ao realizar algo, seu operar é intelectual, escolhe o que será atualizado. O Ser Supremo, como operação, é o "Hen" que gera a Díada indeterminada, que corresponde ao ato formativo e a potência materiável, para permanecermos, de certo modo, na linha do aristotelismo, ou melhor, aproveitando a terminologia aristotélica para auxiliar a exposição do pensamento de Pitágoras, pois o ato formativo, o determinante, e a potência materiável, a determinabilidade, são apenas vetores, que surgem simultaneamente do ato criador do "Hen Dyas aoristos", pois é o Filho, que é o Criador, porque é o Ser, quando "opera", que cria. Mas, uma não se separa abissalmente da outra, porque a determinação implica a determinabilidade. Nossa mente, que é abstrativa, separa em conceitos o que é um só na realidade, mas que apenas se distinguem formalmente, pois o "Logos" do Um criador gera, em seu atuar, a ação da díada indeterminada, cujo "Logos" é dual, pois a ação implica o atuado, pois esta se dá inerente ao atuado e dele não se separa, como muito bem mostrou Suarez. Dessa forma, na criação, esta pertence à criatura, que surge da Díada. O "Hen" (Filho) atua realizando a ação, mas esta é uma modal absolutamente inerente ao atuado. Assim, mas próximo de nós, a ação do movimento de um roda é inerente de modo absoluto à roda. A ação não é uma modal do Ser Supremo. Se fosse, ele sofreia mutações. Seu atuar consiste em realizar a ação e a ação é determinadora de uma determinável. A criação é da criatura e não do criador. Esta tese já a demonstramos com exuberância de provas, em "O Homem perante o Infinito" e em "Filosofia Concreta", para onde remetemos o leitor.

É com o "dois" que surgem as coisas finitas, e o dois, aqui, simboliza a Díada. Na díada indeterminada, temos, como positividades formalmente distintas:

a determinação indeterminada = "o poder" (potência ativa), de determinar ilimitadamente; e

a determinabilidade indeterminada = "o poder" (potência passiva) para ser determinada ilimitadamente

O ato pode sempre determinar e a potência é sempre determinável. Mas uma determinação absoluta é mpossível, porque seria um ato, e haveria uma contradição "in adjectis", pois o infinito é o poder sem fim de determinar e se tudo fosse já determinado, o determinado haveria alcançado o limite de sua determinação. E, ademais, alcançaria o quantitativo em ato, o que é absurdo.

Portanto, o ato de determinar implica um limite, o limite de determinação, e ele limita a coisa determinável. Mas, o que está determinado é, ilimitadamente, o que está determinado, portanto, o que recebeu uma determinação é, enquanto tal, ilimitadamente ele mesmo, mas limitado pelo que não é ele, e, também, pelo que é ele, pois o é até onde é o que é. Desse modo, a ação criadora, a criação, realiza um limitado, que é, enquanto ele mesmo, ilimitadamente ele mesmo, mas que é limitado por si mesmo, pois só é o que é até onde é o que é, e limitado pelo que não é ele, que é o que é possível de ser, que não está contido em sua natureza.

Assim, a díada indeterminada é potencialmente infinita e é tudo quanto pode ser determinado: é, simultaneamente, o infinito potencial de determinar e o infinito potencial de ser determinado. Nesse caso, o ato-formativo pode determinar sem fim tudo quanto pode determinar e a potência-materiável, que é passiva, pode ser determinada sem fim, em tudo quanto pode ser determinado.

Assim se aplica, pois, o infinito potencial quantitativo, e não o atual. Enquanto este é absurdo, não o é aquele.

Ora, a díada indeterminada não tem limites em si, é ela indeterminada, ilimitada enquanto tal, mas é limitadora em seu atuar. Não são ambas absolutamente independentes, pois são criadas pelo "Hen". Dele dependem, por isso não tem a absoluta simplicidade do Ser Supremo, nem a sua infinitude, que é eterna, não tem a infinitude atual, mas a infinitude potencial, o poder ser ativo e passivo sem fim.

E é aqui que está o funcionamento da criação ab-aeterno dos pitagóricos de grau elevado. Pois a díada indeterminada não tem um princípio no tempo, pois o tempo implicaria a determinação e coisas determinadas. O tempo começa quando o ato formativo modela a potência materiável. O tempo é das coisas determinadas limitativamente. Desse modo, a díada, que não é eterna, pois não é a "duratio tota simul", porque, como veremos, uma limita a outra e, portanto, dão-se entre elas relações das mais diversas, que em breve analisaremos, e como não é temporal, porque o tempo se dá na sucessão das coisas determinadas, que são por aquela díada gerada, ela pertence a uma duração que não é "tota simul", totalmente simultânea, mas que também não sucede, a qual inclui, como espécie, a sucessão, que é o tempo. A duração da díada é a eviternidade, é o "aevum".

Mas, tanto uma como outra (o ato formativo e a potência maeriável) são positividades e não meros nadas. Se se distinguem formalmente, distinguem-se, também, na realização do ente determinado. São duas positividades, duas posições, duas teses, são téticas. Uma está ante a outra "ob" à outra:
                                            
posição                   "ob"                    posição

são assim "opostas".

A Díada, enquanto ela mesma, é a substância universal, pois é dela que são geradas todas as coisas. Na linguagem aristotélica, a matéria é a substância primeira ("ousia prote") e a forma é a substância segunda ("ousia deutera"). Um ser finito é a composição dessas duas positividades. Pois essa é a tese pitagórica, com a distinção que a substância das coisas é uma só, a díada na coisa, mas formalmente distintas, isto é, o "logos" de cada uma é distinto da outra.

Desse modo, tudo quanto há finito é produto dessa "oposição". E é essa razão porque se a substância é a primeira categoria pitagórica, é a oposição a segunda, porque é da conjunção das duas positividades ato-formativo e potência-materiável, que surge qualquer ser finito.

Não nos podemos furtar a uma análise sobre tema de tal relevância, como seja o de ato e potência. Em nossos livros "Filosofia e Cosmovisão" e "Ontologia e Cosmologia", examinamos as diversas maneiras de considerar esse tema fundamental do aristotelismo, como também da escolástica e da própria filosofia.

Nesses trabalhos, que antecedem outros mais completos que pretendemos realizar, está delineada, em linhas gerais, a nossa posição. Ante os que afirmam a distinção real-real, ou real-física, entre ato e potência, nós nos colocamos do lado dos que negam esse diástema, que agravaria a crise entre os dois modos fundamentais do ser. Sabemos que os tomistas afirmam a distinção real-real, enquanto os escotistas afirmam apenas uma distinção formal. Os primeiros declaram fundar-se não só em Aristóteles, como em Tomás de Aquino. Quanto ao primeiro, não opomos a menor restrição, mas quanto ao segundo há dúvidas sérias de que se fosse o verdadeiro pensamento do aquinatense. Nas obras citadas, expusemos as razões fundamentais do escotismo contra a distinção real-real ou física.

Esta provocaria uma afluxo desmedido de aporias e impediria a solução de outras, que surgem da colocação da tese criacionista.

Por sua vez, oferecem os tomistas também seus argumentos. É impossível, aqui, fazermos a análise e a crítica dessas posições, que, como já dissemos, será matéria de futuros trabalhos nossos. Contudo, queremos por ora chamar a atenção para um aspecto que é de magna importância do filosofar. A filosofia, embora tendendo a alcançar a maior objetividade e a isenção de tomadas de posição opinativas e valorizadoras, inegavelmente, ante o tema do ato e da potência, há a presença de um preconceito da "doxa", que, a nosso ver, influiu profundamente em todo o processo filosófico do ocidente. Este preconceito, de origem aristotélica, consiste em desmerecer a potência em face do ato, e desvalorizá-la a ponto de despojar-lhe o próprio ser, transformando-a em nada. Esse preconceito, cujas raízes emergentes e predispotentes, permitir-nos-ia uma análise psicológica de grande extensão, deve ser denunciado, sob pena de a filosofia não poder alcançar novos lanços do seu caminho a resolver, consequentemente, muitas das aporias, que até então pareciam insolúveis. Se passarmos os olhos pelo pensamento hindu, egípicio e chinês, verificamos que, nesses povos, ato e potência estão colocados no mesmo pé de igualdade axiológica e ontológica.

Entre os gregos, Pitágoras, Sócrates e Platão valorizaram, igualmente, ato e potência. Veja-se a definição do ser dada no "Sofista". O "ser" é, fundamentalmente, "potência" (poder). É "ser" toda potência determinativa, do mais alto ao mínimo grau, e é ser toda a potência determinável, do maior ao mínimo grau, em qulaquer momento, por mínimo instante de tempo. Platão era um "potencialista", seguindo, assim, a linha pitagórica.

A díada indeterminada, no pitagorismo, afirma a potência determinadora (ativa) e potência de ser determinada (passiva). Nós, nos livros citados, defendemos a tese de que todo ser, por mínimo que seja, caracteriza-se pela "presença" e pela "eficacidade". Todo ser é eficaz. O ato é a eficientização dessa eficacidade, e a potência é a eficacização da eficienticidade. A potência não é um não-ser, mas um modo vectorialmente inverso do que é, em ato. A potência é virtual e fundada na eficacidade. Em "Filosofia Concreta" mostramos que fazer é ser feito, porque, quando se faz alguma coisa, alguma coisa é feita. A ação determinadora exige uma correspondência determinável, pois, se não existisse essa correspondência, a ação determinadora se aniquilaria, porque atuaria sobre o nada e atuar sobre o nada, é nada atuar. A idéia de determinação implica a determinabilidade. Assim, à potência infinita da determinação tem de corresponder a potência infinita da determinabilidade. Esse pensamento, que já expusemos e que pretendemos justificar de modo exaustivo e apodítico em obra especial, corresponde, adequadamente, ao pensamento franciscano. A valorização, que o mesmo fez da matéria, da potência, em suma, levou muitos de seus adversários a acusarem, sem fundamentos sérios, São Francisco de ser panteísta, e toda a escola franciscana, na filosofia, de realizar obra panteísta, portanto, herético, ante a Igreja. Não precisamos defender os franciscanos dessa acusação, porque eles já se defenderam com brilhantismo e mostraram com suficiente habilidade que seus adversários podiam merecer a pecha de panteístas com mais razão do que eles.

Este comentário que acabamos de tecer, pretende apenas mostrar que a nossa interpretação do pitagorismo está apoditicamente bem fundada e que esse é o pensamento, também, de Platão e Sócrates, o qual perdura ainda no pensamento ocidental e representa uma vitória sobre um dos momentos preconceituosos que, a nosso ver, foi dos mais perniciosos para a filosofia.

Não é de admirar que o aristotelismo, apesar de sua grandeza, da sua pujança, tenha criado preconceitos, pois sabemos que, psicologicamente, Aristóteles, como revela sua obra, foi sempre um homem movido por preconceitos, por tomadas de posição prévias, que desfiguravam ante seus próprios olhos, a obra dos outros autores. Aristóteles, apesar da sua genialidade, falsificou, caricaturizou o pensamento alheio, como se vê quanto aos pitagóricos, quanto a Anaxágoras, a Empédocles, a Heráclito, até ao seu próprio mestre, Platão.

Mário Ferreira dos Santos, in Pitágoras e o tema do número; edição coordenada por Aluísio Rosa Monteiro Júnior, São Paulo, IBRASA, 2000, pp. 191-7