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domingo, 21 de maio de 2017

BERNARD CORNWELL: O RITUAL DE PASSAGEM DO GUERREIRO



Quando somos jovens, ansiamos pela batalha.

Nos salões iluminados pelo fogo, ouvimos canções sobre heróis

- como eles mataram na guerra, romperam a parede de escudos e encharcaram a espada com o sangue dos inimigos.

Quando jovens, ouvimos os guerreiros se vangloriando, ouvimos suas risadas enquanto se lembram das batalhas e seus gritos de orgulho quando seu senhor os faz recordar alguma vitória difícil.

E os jovens que não lutaram, que ainda não seguraram os escudos ao lado de outro homem na parede, são menos prezados.

Por isso treinamos.

Dia após dia treinamos com lança, espada e escudo. Começamos na infância, aprendendo a brandir uma espada com armas de madeira, e hora após hora somo golpeados e golpeados.

Lutamos contra homens que nos machucam para ensinar, aprendemos a não chorar quando o sangue do couro cabeludo cobre os olhos, e lentamente ficamos mais habilidosos com a espada.

Então chega o dia em que recebemos a ordem de marchar com os homens, não como crianças para segurar os cavalos e catar armas depois da batalha, e sim como homens.

Se tivermos sorte, teremos um elmo velho e amassado e um gibão de couro, talvez até uma cota de malha que pende feito um saco.

Teremos uma espada com mossas no gume e um escudo marcado por armas inimigas.

Somos quase homens, não exatamente guerreiros, e em algum fatídico dia encontramos um inimigo pela primeira vez e ouvimos as canções da batalha, o choque ameaçador das lâminas contra os escudos,

e começamos a descobrir que os poetas estão errados e que as canções que falam de orgulho mentem.

Mesmo antes de as paredes de escudos se encontrarem, alguns homens se cagam.

Eles tremem de medo. Bebem hidromel e cerveja. Alguns se vangloriam, entretanto a maoiria fica em silêncio até que se juntam num cântico de ódio.

Alguns contam piadas e a risada é nervosa. Outros vomitam.

Nossos líderes de batalha discursam para nós, falam dos feitos dos nossos ancestrais, da imundície que é o inimigo, do destino das nossas mulheres e crianças senão vencermos.

E entre as paredes de escudos os heróis se pavoneiam, desafiando-nos ao combate um contra um.

Vemos os campeões do inimigo e eles parecem invencíveis. São homens grandes, de rosto sério, cobertos de ouro, reluzindo em sua cota de malha, confiantes, cheios de desprezo, selvagens.

A parede de escudos fede a merda, e tudo que os homens querem é estar em casa, em qualquer lugar que não nesse campo, se preparando para a batalha, mas nenhum de nós vai se virar e fugir, caso contrário será desprezado para sempre.

Fingimos que queremos estar ali, e, quando enfim a parede avança, passo a passo, e o coração bate ligeiro como as asas de um pássaro, o mundo parece irreal.



O pensamento voa, o medo reina. Então é gritada a ordem de acelerar a carga, e você corre ou tropeça, mas fica na sua fileira porque esse é o momento pelo qual passou uma vida inteira se preparando.

E então, pela primeira vez, ouve o trovão das paredes de escudos se encontrando, o clangor das espadas, e começaram os gritos.


Isso nunca vai acabar.

Até o mundo terminar no caos de Ragnarök, lutaremos pelas nossas mulheres, por nossa terra e por nossos lares.

Alguns cristãos falam de paz, do mal que é a guerra, e quem não quer a paz?

Mas então algum guerreiro enlouquecido vem gritando o nome imundo do deus dele na sua cara.

As únicas ambições dele são matar você, estuprar sua esposa, escravizar suas filhas e tomar sua casa, por isso você precisa lutar.





Então verá homens morrendo com tripas embrenhadas na lama, com o crânio aberto, sem os olhos, os ouvirá engasgando, ofegando, chorando, gritando.

Verá seus amigos morrerem, escorregará nas tripas de um inimigo, encarará um homem enquanto enfia a espada na barriga dele, e, se as três senhoras do destino ao pé da Yggdrasil o favorecerem, você conhecerá o êxtase da batalha, o júbilo da vitória e o alívio de sobreviver.

Então irá para casa e os poetas vão compor uma canção sobre a batalha.

E talvez seu nome seja cantado e você se vanglorie de sua proeza.

Os jovens ouvirão com espanto e inveja e você não falará do horror.

Não dirá como é assombrado pelo rosto dos homens que matou, como no último fôlego eles pediram piedades e você não teve nenhuma.

Não vai falar dos rapazes que morreram gritando pela mãe enquanto você torcia uma lâmina nas tripas deles e rosnava seu desprezo.

Não vai confessar que acorda à noite coberto de suor, com o coração batendo forte, tentando escapar das lembranças.

Não vai falar disso porque esse é o horror, e o horror é contido no baú do coração, é um segredo.

E admiti-lo é admitir o medo, e somos guerreiros.

Não tememos. Pavoneamos. Vamos para a batalha com heróis. Federmos a merda.

Mas suportamos o horror porque precisamos proteger nossas mulheres, manter nossos filhos longe da escravidão e guardar nossos lares.

Por isso os gritos nunca irão terminar, até que o próprio tempo acabe.


BERNARD CORNWELL, O portador do fogo, p. 258-260