quinta-feira, 28 de abril de 2016

MITO, ESTRUTURALISMO E CONSTITUIÇÃO







Fábio Nadal (2006), ao apreciar a natureza simbólica do Direito, afirma a concepção mitológica da constituição, vejamos:
[...] mito como estrutura que não se submete a nenhuma regra lógica ou continuidade [...] (p. 89)

[...] a legitimidade de uma Constituição baseie-se em uma crença ou em um conjunto de crenças (base irracional – a “fé na Constituição”) que propicia o urdimento do sistema normativo (base racional), de acordo com um discurso competente (ideológico) com a finalidade (telos) de alcançar e manter sua funcionalidade (simbólica, dominação, regulação e integração). A Constituição, de qualquer sorte, é, na síntese feliz de Marilena Chauí, “a nova morada de Deus” (p. 129).
Adota-se o marco teórico estruturalista, que implica na admissão de uma visão irracional do mito em matéria constitucional, que, contraditoriamente, será a fonte de um sistema normativo de base racional.

A pura e simples declaração numa crença ou fé não deve prosperar em matéria constitucional, face à necessária racionalidade do sistema normativo, que é teleológico por natureza.

A proposta explicativa de Nadal deve ser impugnada em sua validade ontológica, por ser um mero abstracionismo cartesiano, um experimento mental sem base no real, porque estruturalista, fundado num “dever ser ideal” (NADAL, p. 91) que se contenta em não investigar a fundo o porquê da ambigüidade do mito, como um dado universal, que responde à questão levantada por Lévi-Strauss:
Reconheçamos que o estudo dos mitos nos conduz a constatações contraditórias [...] se o conteúdo do mito é inteiramente contigente, como explicar que, de uma extremidade à outra da Terra, os mitos se assemelham de tal forma? É necessário tomar consciência desta antinomia fundamental, que decorre da natureza do mito, se esperamos resolvê-la. (Apud NADAL, p. 88)
Há uma necessidade humana de contenção da violência, sim, o elemento objetivo e real decisivo que unifica todos os mitos.

O mito é a primeira ferramenta conceitual que possibilitou a racionalização da realidade paradoxal da violência, que só pode ser contida por outra violência.

Para as sociedades, em suas origens segundo a ótica de René Girard, a violência é a manifestação do sagrado, pois, ao mesmo tempo em que é maléfica quando emerge do desejo mimético, criador de rivalidades sem fim que destroem todas as diferenças; ao mesmo tempo, é capaz de ser o meio de se solucionar o paroxismo da vingança interminável, quando a coletividade cria o bode expiatório, que passará a simbolizar o herói, o deus, o salvador nos ritos e nos mitos, instituídos, após o sacrifício primário, que passa a ser ritualmente revivido para conter a violência, ao representar na forma de ritual, este torna-se o primeiro método da primeira ciência, que busca reproduzir a eficácia da primeira vez em que violência sagrada foi experimentada.

Ao contrário da tese defendida por Nadal, a linguagem do mito não é antinômica por natureza, nem irracional em sua essência, mas representa o primeiro esforço normativo de contenção da violência humana, fruto do rito sacrificial, que se propõe a ser a repetição do ato que conteve a crise mimética, o assassinato fundador do bode expiatório, em que um é sacrificado para que todos possam continuar vivendo, mas, percebamos, isto é um dado necessário em eras primevas e arcaicas, e que serve de parâmetro para a percepção que a constituição é um mito fundador da ideia de Direito, e que esta estrutura de pensamento é uma barreira à violência desmedida. 
 
REFERÊNCIAS

GIRARD, René. A violência e o sagrado ; trad. Martha Conceição Gambini; revisão técnica de Assis Carvalho. - São Paulo : Editora Universidade Estadual Paulista; 1998.

NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da constituição. São Paulo: Método, 2006.

sábado, 23 de abril de 2016

FRAGMENTOS LITERÁRIOS: TOLKIEN E DOSTOIÉVISKI

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Aliocha inspirou Niggle!

Dostoiéviski em “Os irmãos Karamázov” ao tratar de um dado biográfico do jovem Aliocha lembrou-me um conto do Tolkien, o trecho é este:

“...desde o berço ele dera provas de ser diferente. Já contei que ele perdera a mãe aos quatro anos, mas por toda a vida lembrou-se de sua face, de suas carícias, “como se a visse viva”. Como todos sabem, tais lembranças podem permanecer gravadas na memória, mesmo originárias de uma idade mais tenra ainda, mas só persistem como pontos luminosos nas trevas, como fragmentos de uma imensa pintura desaparecida.” 
(Ed. Martim Claret, 2015, p. 32)

Daí posso trabalhar a hipótese de que Tolkien criou o enredo do conto “Folha por Niggle” para desenvolver a idéia de Dostoiéviski sobre "uma imensa pintura desaparecida".

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Ensinar e Aprender numa Perspectiva Socrática

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Sumário: Introdução. I – Novos tempos, problemas velhos. O novo paradigma educacional que torna o aluno o sujeito de sua educação. O problema da aprendizagem. II – Aprender para quê? Para conhecer-te a ti mesmo! Conclusão – A nova tendência educacional implica postura maiêutica. Bibliografia.

Resumo: O artigo estuda a nova tendência da pedagogia que privilegia o aprendizado do aluno e a velha orientação originada no pensamento socrático a respeito da importância da descoberta da dimensão ética para aquisição do saber da virtude que orienta o cidadão na busca do bem social e conclui-se demonstrando que a nova pedagogia é um misto de ensino e aprendizagem, de descoberta interior e exterior.

Palavras-chave: Ensinar – Aprender – Sócrates – Maiêutica – Democracia – Direito.


Introdução.


Adotaremos como marcos teóricos do presente texto as obras O professor universitário em aula de Abreu e Masetto e Sócrates, Platão, Aristóteles de Jean Brun.

Travaremos contato com nascentes paradigmas educacionais a respeito do ensino, nos confrontaremos com velhas verdades filosóficas, demonstrando-se, ao fim, a suma importância do tema para a manutenção da Democracia e do Estado de Direito.


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I – Novos tempos, problemas velhos

O novo paradigma educacional que torna o aluno o sujeito de sua educação

O problema da aprendizagem.


Maria Célia de Abreu e Marcos Tarciso Masetto (1997) afirmam que o enfoque educacional que deve pautar a atividade docente está no problema da aprendizagem, pois o aluno é o centro do mundo acadêmico.

Esta ênfase deve utilizar o ensino, que tradicionalmente privilegia a figura do professor, somente como atividade meio, para que se insira o aluno não só como um bom profissional no mercado, mas, precipuamente, invista-se na sua formação sob uma perspectiva educacional humanística (ABREU E MASETTO, 1997, p. 07), que forme cidadãos aptos a assumir suas responsabilidades individuais e sociais.

Segundo esta perspectiva de "privilegiar a aprendizagem de seus alunos sobre o ensino de seus professores" referidos autores prescrevem um método de ensino que torne o aluno no sujeito de sua educação, tornando-se o professor o meio, o instrumento, o objeto que possibilitará o desenvolvimento ativo do educando, e, apontam quatro tendências de aprendizagem, que devem orientar a atividade do educador, que são:

a) o "desenvolvimento mental" ( loc. cit. );

b) o "desenvolvimento da pessoa singular" ( op. cit. , p. 08);

c) o "desenvolvimento das relações sociais" ( loc. cit. ); e,

d) o "desenvolvimento da capacidade de decidir" ( loc. cit., p. 09).

Estas quatro tendências apontam para o desenvolvimento da pessoa que conhece, sabe para que serve o seu conhecimento, e, assim assume seus deveres e obrigações perante a sociedade política, e, quando é chamado a participar ativa e criativamente tem os instrumentos cognitivos, afetivos e técnicos, para protagonizar seu papel no teatro da vida.

Em síntese, o novo paradigma educacional propõe ao professor aprender a ser o guia de seu aluno, na atividade de descobrir conteúdos, relacioná-los à sua vida, e, se possível, fazer com que tais conhecimentos e habilidades retornem na forma de atuação social, ativa e responsável.

Exposto o estado da questão, relativo à proposta de um novo paradigma educacional que deve orientar a docência neste novo milênio, coloca-se, perante nós, o mais velho problema pedagógico, aflição de cada educador que se importa com a resposta do problema fundamental da educação, que Abreu e Masetto sintetizam na seguinte formulação: "aprender para quê?" (1997, p. 07).


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II – Aprender para quê?

Para conhecer-te a ti mesmo!


Vivemos tempos em que sopram ventos democráticos, em que há franca expansão das necessidades e responsabilidades, e, em que há número crescente de atores penetrando no palco da vida social.

Qualquer sociedade em que haja a necessidade crescente de tomadas de posições mais ativas, em que a liberdade de ação é regra e não exceção, em tais sociedades o patrimônio da informação, do conhecimento e das habilidades para aplicá-los torna-se um imperativo para a definição dos papéis principais e secundários.

Há, presentemente, uma forte tendência à valorização de operadores simbólicos, isto é, de indivíduos capazes de ultrapassar a mera habilidade técnica e que saibam atuar com criatividade suficiente para constantemente produzir adaptações, atualizações e inovações que antecipem ou respondam ao dinamismo da sociedade.

Em situações históricas como acima descritas o conhecimento torna-se a moeda fundamental para a inserção o homem em seu meio, e, tal como hoje, este contexto se manifestou na Idade Clássica, mais precisamente, na Grécia, aos tempos de Péricles, por volta do séc. V a. C..

Tempos de vigor da nascente e triunfante democracia grega, que incentivaram a formação de uma nova espécie de professores, que ensinavam como fazer do discurso forte um discurso fraco e do discurso fraco um discurso forte. Sofistas, professores de retórica e de conhecimentos gerais, portadores dos conhecimentos e das técnicas para o progresso na vida política e social de então.

A dinâmica do discurso democrático implica num crescente antropocentrismo, que induz ao egocentrismo e ao individualismo exagerados, estimuladores duma auto-suficiência que tem já dentro de si o gérmen da destruição da liberdade tão duramente conquistada, exemplo desta postura é o fragmento de Protágoras em que este sofista declara: "O homem é a medida de todas as coisas, das que existem e das que estão na sua natureza, das que não existem e da explicação da sua inexistência" (GOMES, 1994, p. 216).

Ao se afirmar que o homem é a medida de tudo, seu desejo puro e simples passa a ser o critério de avaliação de seus anseios, e, se necessário for, determinado homem, portador de suficiente ambição política, em busca do poder, poderá raciocinar junto com o sofista Trasímaco que afirmava "o justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte" (338c) (PLATÃO, 1976, p. 12).

Diante do dilema fundamental da democracia, que é ser potencialmente o fermento da tirania, ergueu-se Sócrates (470-399 a. C.) para guiar o cidadão para além das aparências da política, para o caminho da descoberta do conhecimento interior, mediante o método do diálogo maiêutico, que objetiva discutir os próprios fundamentos dos conhecimentos vendidos a peso de ouro.

Revelou-se com isso a dimensão ética do saber e da sua fundamental importância na assunção da responsabilidade social inerente à obediência voluntária aos mandamentos da ordem social democraticamente constituída e sustentada, que possibilitam a convivência, despertou-se a profunda consciência para a percepção do que é a virtude e para o quê ela serve, criar um ambiente regido pela justiça.

Jean Brun (1994, p. 79) constata que para Sócrates a virtude é um saber que principia pelo autoconhecimento, é a ação que implica num discernimento refletido em que se distingue o desejo e a vontade.

Neste diapasão a vontade é a apreciação subjetiva com valor verdadeiro, como opinião individual com conhecimento motivado, ou seja, a episteme ou conhecimento refletido, fruto do debate dialético racionalmente concatenado.

Enquanto o desejo é a opinião sem outra motivação além do desejo, isto é, doxa ou simples opinião sem reflexão, nosso famoso achaísmo .

Nesta distinção podemos distinguir o conceito do preconceito, este objeto de simples, imediata e parcial cognição, aquele construído pela reflexão.

Segundo a perspectiva socrática devemos compreender que: "O saber que a virtude implica é um saber que não se adquire como o conhecimento da gramática, ele implica todo um trabalho de conversão interior que ninguém pode fazer por nós, mas de que o filósofo pode fazer-nos descobrir a urgente necessidade" (Brun, 1994, p. 79).


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Conclusão


A nova tendência educacional implica numa postura maiêutica

Eis que é chegada a oportunidade em que devemos concluir. Até este momento pudemos perceber que existe uma forte percepção entre os estudiosos da arte de lecionar que vivemos um período histórico em que necessidades sociais e individuais devem ser harmonizadas, sob pena de os excessos cometidos em nome de tais necessidades ocasionarem restrições crescentes às liberdades públicas e individuais, em razão da carência educacional do cidadão para a democracia, fazendo-se necessário, portanto, um novo paradigma educacional para sanar tal carência.

A solução proposta para evitar a derrocada da democracia, e possibilitar seu constante aperfeiçoamento, está em se estimular o aluno a se tornar um agente com capacidade de discernir seus conhecimentos e aplicá-los com fins de melhorar sua vida e pensar no bem comum de forma ampla, e, por fim, de ter uma postura ativa e interessada na conformação de seu meio social mediante ações e decisões refletidas em princípios condutores do ideal de justiça.

A maior dificuldade para que tais desideratos se consumam pode ser sintetizada num aforismo do médico cético Sexto Empírico que viveu no séc. III d. C., formulador do problema das relações mestre e discípulo nos seguintes termos: "ou a matéria a ensinar é clara e neste caso ela não tem necessidade de ser ensinada, ou é obscura e neste caso não pode ser ensinada" (BRUN, 1994, p. 49).

Ora, como observamos acima a virtude, que é o desejo de fazer o bem, individual e social, não é algo que se ensine, mas que se desperta, é algo que pode ser objeto de uma descoberta interior.

Nesta perspectiva, ao analisarmos as quatro tendências expostas acima, podemos observar que a terceira e a quarta tendências são posturas que respondem ao "aprender para quê?", enquanto que a primeira e a segunda tendências indicam "o quê aprender?".

O ato cognitivo de aprender e de incorporar à personalidade tais saberes são precípuos objetos de ensino, pois dizem respeito a conhecimentos e habilidades, ficando a aprendizagem para a capacidade de orientar tais conhecimentos e habilidades num sentido de atender às necessidades e anseios da sociedade, possibilitando a tomada de decisões.

O aluno é o agente fundamental e o professor é seu guia, que deve agir tal como Sócrates que afirmava nada saber e que se autodenominava um parteiro de idéias.

Com o método maiêutico incentiva-se ao aprendizado mediante a proficuidade do diálogo, pois: "O mestre não sabe mais do que o discípulo, ele procura como ele e com ele. O diálogo não é um processo exterior e acidental de inquérito e exposição; é a expressão essencial do esforço em comum para soltar a verdade interior aos espíritos" (BRUN, 1994, p. 51).

Sopesando-se os dados expostos e raciocínios expendidos acima, constataremos que os referidos paradigmas são novos a mais de dois milênios, e esta novidade é mescla de conhecimento exterior, cognição e habilitação com conhecimento interior, reflexão e decisão, elementos que devem penetrar no cerne da nova pedagogia que pretende evitar velhos erros, e, com isso, defender nossas liberdades públicas e individuais, possibilitando-se a permanência da experiência política democrática, e do Estado de Direito que lhe dá suporte jurídico, pois a lei é refém da opinião, e, opinião irrefletida produz tirania.

Bibliografia:

GOMES, Pinharanda. Filosofia grega pré-socrática , 4a ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1994.

ABREU, Maria Célia de; MASETTO, Marcos Tarciso. O professor universitário em aula, 11a ed., São Paulo: MG Ed. Associados, 1997.

BRUN, Jean. Sócrates, platão, Aristóteles , tradução de Carlos Pitta, Filipe Jarro, Liz da Silva . Lisboa: Dom Quixote,1994.

PLATÃO. República , Coleção Amazônia, Série Farias Brito, tradução de Carlos Alberto Nunes, Belém: Universidade Federal do Pará, 1976.

Texto confeccionado por
(1)Werner Nabiça Coelho

Atuações e qualificações
(1)Advogado. Especialista em Direito Tributário e Professor da Faculdade Metropolitana da Amazônia - FAMAZ.


COELHO, Werner Nabiça. Ensinar e Aprender numa Perspectiva Socrática. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 20 de mar. de 2006.
Disponivel em: < http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/2512/ensinar_e_aprender_numa_perspectiva_socratica >. Acesso em: 22 de abr. de 2016.

COÊLHO, Werner Nabiça . Ensinar e aprender numa perspectiva socrática. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade da Amazônia , v. 1, p. 115-122, 2007. 

RELIGIÃO CIVIL E BIOÉTICA



Descartes (1596-1650) foi o primeiro filósofo a valorizar a “conservação da saúde” como princípio que serve de “primeiro bem e fundamento de todos os outros bens da vida, vejamos o trecho do Discurso do Método, cap. 06, parágrafo 02 e seguintes que inaugura tal perspectiva:

O que é de desejar, não só para a invenção de uma infinidade de artifícios, que permitiriam gozar, sem qualquer custo, os frutos da terra e todas as comodidades que nela se acham, mas principalmente também para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e fundamento de todos os outros bens da vida.
Pois mesmo o espírito depende tanto do temperamento e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne comumente os homens mais sábios e mais hábeis do que foram até aqui, creio que se deve procurá-lo na Medicina. (Apud, Kreeft, Peter. Sócrates encontra Descartes: o pai da filosofia interroga o pai da filosofia moderna e seu discurso do método; tradução de Gabriel Melatti. – 1. ed. – Campinas : CEDET, 2012, 185-6)

Rousseau (1712-1778) define a relação entre o cidadão e o Estado com base numa “profissão de fé puramente civil tratado como "dogma de religião" que permite o banimento e a imolação dos “ímpios, pois esta seria uma categoria de pessoas, que ao dividir sua fidelidade entre Estado e Religião, cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às leis:

[...] importa ao Estado que cada cidadão tenha uma um religião que o faça amar seus deveres; os dogmas dessa religião, porém, não interessam nem ao Estado nem a seus membros, a não ser enquanto se ligam à moral e ao deveres que aquele que a professa é obrigado a oferecer em relação a outrem. Quanto ao mais, cada um pode ter as opiniões que lhe aprouver, sem que o soberano possa tomar conhecimento delas, pois, como não chega sua competência ao outro mundo, nada tem a ver com o destino dos súditos na vida futura, desde que sejam bons cidadãos nesta vida.
Há, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel. Sem poder obrigar ninguém a crer neles, pode banir do Estado todos os que neles não acreditarem, pode bani-los não como ímpios, mas como insociáveis, como incapazes de amar sinceramente a lei, a justiça, e de imolar, sempre que necessário, sua vida a seu dever. Se alguém, depois de ter reconhecido esses dogmas, conduzir-se como se não cresse neles, deve ser punido com a morte, pois cometeu o maior de todos os crimes – mentiu às leis. (Rousseau, Jean-Jacques, Do contrato social; trad. Lourdes Santos Machado; col. Os pensadores – 4. ed. - São Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 143-4)

A doutrina política do Estado Laico fundado na criação e defesa da Religião Civil é afirmada como substituta de qualquer outra forma de fé ou crença, pelo suposto apóstolo da democracia, e assim inaugura-se o anticristianismo como programa de política de Estado:

Mas, quem quer que diga: Fora da Igreja não há salvação – deve ser excluído do Estado a menos que o Estado seja a Igreja, e o príncipe, o pontífice. Tal dogma só serve para um Governo teocrático; em qualquer outro é pernicioso. (Idem, p. 145)

David Hume (1711-1776), ao dar prosseguimento à obra cartesiana de fundar uma filosofia baseada no ceticismo filosófico, afirmou que o entendimento humano é condicionado pela Natureza, verdadeira entidade metafísica imanente à própria existência, à qual não nos é dado conhecer a essência, mas, diante da qual nos basta assumir nossa doce ignorância sobre os fundamentos da realidade, e nos contentarmos com os dados oriundos da observação e da experiência, para a consolidação de informações que costumeiramente estão associadas como causa e efeito, com a ressalva de que todo efeito é um evento distinto de sua causa, e somente por costume é que tais eventos são associados.

Esta linha de raciocínio naturalista, na qual há precedência do dado empírico sobre a ideia, ou melhor dizendo, na qual a ideia é considerada como totalmente oriunda da experiência observável, princípio que não admite concessões nem exceções, determina, então, ao estudioso da ética socorrer-se de argumentos que apelem para questões de fato e suas consequências.

Hume decreta que o anátema deve ser jogado na fogueira acesa em nome do dogma naturalista da filosofia moderna:

Quando percorrermos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos: Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, laçai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões (Hume, David. Investigações acerca do entendimento humano; tradução Anoar Aiex; in coleção os pensadores – São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 145, destaques no original).

O princípio vitalista em que a vida é considerado o bem supremo submete-se ao princípio da laicidade, que defende a fé apostólica na religião civil, e, em caso de conflitos entre o cidadão e o Estado, este está autorizado a banir ou eliminar aquele, pois se tratará de um ímpio que professa princípios diferentes, pois tal pessoa não será útil para a sociedade civil.

A perspectiva filosófica moderna que defende a laicidade tem implicações no pensamento contemporâneo.

Um exemplo está na postura de  Michael J. Sandel (1953-), em sua obra "Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética" (tradução Ana Carolina Mesquita. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013) apesar de ponderar sobre os perigos inerentes à instrumentalização da biotecnologia, como forma de dominação sobre a natureza humana, acaba por defender a utilização de embriões humanos como insumos para pesquisa sobre células troncos.

Sandel propõe analogia entre embriões e bolotas, pois estas são distintas de carvalhos, não obstante a existência de uma “relação de continuidade em termos de desenvolvimento” (Sandel,  p.124).

A proposição de Sandel pretende distinguir embriões de pessoas, que muito embora sejam potencialidades ligadas no tempo, entre a concepção e o nascimento, não necessariamente estão numa relação de causa e efeito de natureza empírica, pois o conceito de “vida humana” é distinguível do conceito de pessoa, e, assim, não há uma equivalência moral do embrião e a pessoa já formada e nascida, pois aquele é um blastocisto, um amontoado de 180 a 200 células.

Sandel define a não-equivalência moral entre o embrião e a pessoa ao afirmar que:

[…] é inegável que o blastocisto é uma ‘vida humana’, ao menos no sentido óbvio de que está vivo, e não morto, e que é humano, e não, digamos, bovino. Porém não se depreende desse fato biológico que o blastócito é um ser humano, ou uma pessoa. Qualquer célula humana viva (uma célula epitelial, por exemplo) é uma ‘vida humana’ no sentido de ser humana, e não bovina, e viva, e não morta (Sandel, p.123).

Portanto, Sandel na melhor tradição da filosofia moderna apela para o ceticismo metodológico, fundado num empirismo canhestro e anti-intelectual, numa defesa da religião civil que apela para a fé na ciência, por esta ser uma forma de teologia da natureza, para concluir com a afirmação de que é apenas uma questão de fato o embrião estar vivo, mas somente como um conjunto de células, que muito embora sejam humanas ainda não configuram uma pessoa.

Sandel esclarece, sempre numa perspectiva humeana, que “o fato de toda pessoa ter sido um dia um embrião não prova que os embriões são pessoas”, e mesmo que haja “dificuldade de especificar o início exato da pessoalidade no curso do desenvolvimento humano” (Sandel, p.125) não nos permitirá considerar que os embriões humanos sejam pessoas (idem).

A afirmação que a relação de causa e efeito que faz derivar uma pessoa de um embrião é somente verificável como uma questão de fato, como acontecimento empírico a ser analisado caso a caso, e que as relações de ideias, aceitas socialmente daí derivadas, é que vão legitimar a conduta ética perante o embrião, pois o embrião não é uma pessoa em sua essência, faz com que o embrião não seja considerado necessariamente a “causa” da existência de uma pessoa, mas, uma vez que seja possível “especificar o início” da pessoalidade, qualquer que seja o critério científico, social ou jurídico, estar-se-á diante de uma dádiva natural que deve ser reverenciada.

O conceito de pessoa é, portanto, segundo a loquacidade e mendacidade da filosofia moderna representada por Sandel um costume social que se estabelece sobre um dado natural verificável, que reconhece certas características sustentadas em fatos de natureza empírica, que dão suporte a relações de ideias que condicionam a crença social na existência de direitos da personalidade, que conferem dignidade ao ser humano classificado habitualmente como pessoa, o que torna moral a utilização de embriões para “promover a cura e desempenhar nosso papel de reparar o mundo dado” para que o “progresso da biomedicina” seja uma benção “para a saúde”.

Diante de tais colocações é possível verificar uma matriz filosófica muito específica, que prima pelo reducionismo empirista da existência humana, que classifica os seus objetos de estudo de forma nominalista e naturalista, que não admite raciocínios de causa e efeito, seja por dedução ou indução, e, por fim, exclui como inaceitável e irrelevante a crença em qualquer tipo de metafísica transcendente do ponto de vista ontológico, seja filosófica ou religiosa.

Sandel ao questionar o posicionamento ético que julga que o embrião é uma pessoa, tese que nega o empirismo e o ceticismo implicados na filosofia moderna, demonstra que desconsidera convicções religiosas e considerações filosóficas metafísicas transcendentais à natureza são consideradas inadmissíveis para a epistemologia do cientificismo estabelecido, pois são negadoras do laicismo, uma vez que apelam para outras realidades fundadoras, sejam filosóficas, religiosas ou com base na ciência que confia no real, e que aceita a existência de causas e efeitos.

A postura filosófica e científica inerente à modernidade é o padrão adotado no debate bioético contemporâneo, muito embora seja um pressuposto ideológico que raramente é colocado na mesa de discussão, pressuposto que merece ser esclarecido e debatido, pois a afirmação do direito à vida é reduzido ao dado material, social e jurídico, para escamotear a matriz autoritária da profissão de fé laicista que se apoia na religião civil do ceticismo empirista, cujo dogma é o naturalismo negador da sacralidade da vida humana e da liberdade fundamental do espírito.

WERNER NABIÇA COÊLHO