sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: SÃO DIVISÍVEIS OS CORPOS? (cap. 03)

Observações preliminares.

O Filósofo Mário Ferreira dos Santos sempre advertia no início de suas obras a respeito da importância do vocabulário, e, principalmente, de seu elemento etimológico, e, já nos idos dos anos 1960 ele alertava que utilizaria certas consoantes mudas, já em desuso, mas muito importantes para "apontar  étimos que facilitem a melhor compreensão da formação histórica do têrmo empregado", e, em razão desta técnica de exposição, escolhi realizar as transcrições do texto em seu formato gramatical original (com exceção das tremas).

"SÃO DIVISÍVEIS OS CORPOS?

A divisibilidade é a aptidão de separar as partes que estão unidas. Uma extensão, formalmente considerada, é divisível matemática ou hipotèticamente. Se um corpo é fisicamente divisível, sê-lo-ia por meio mecânico ou por intermédio de reacções químicas. Dir-se-á que uma divisão é metafísica, mas apenas pela acção de um ser superior a nós, como Deus.
É possível a divisibilidade metafísica infinita em acto? Poder-se-ia separar um corpo em partes que seriam em número infinito em acto? Essas partes seriam absolutamente simples, pois, do contrário, seriam, por sua vez, divisíveis, e não se teria atingido a infinitude em acto, mas apenas um número elevado. Essa divisão é impossível por ser absurda, como veremos. Restaria, então, a divisão finita em acto, e também a divisão potencial matemática sem fim, in infinitum, nunca, porém atingindo um têrmo, como se pode considerar quanto à extensão tomada formalmente; não, porém, materialmente.

Quando se afirma que é possível obter-se uma divisão infinita em acto da extensão, afirma-se uma absurdidade. Apenas pode-se admitir uma divisibilidade potencialmente infinita (um divide-se em duas partes, estas em duas outras, que serão quatro; estas em duas, que formarão oito e assim sucessivamente) uma divisibilidade hipotética, como se faz na matemática, não, porém, física, como alguns tentam alegar, como o fêz Zeno de Eléia, Demócrito (com seus átomos-indivísiveis) e muitos autores modernos e antigos, inclusive alguns escoláticos (1).


Em contrário a esta tese, temos a de Aristóteles, comumente aceita pelos escolásticos.

Para expô-la, é mister esclarecer alguns conceitos. As partes integrantes podem ser alíquotas, aliquantas e proporcionais. As partes alíquotas são aquelas cuja repetição iguala ao todo contínuo; aliquantas, aquela que, repetidas, não igualam ao todo; ou o excedem ou não o atingem; são incomensuráveis, como o diâmetro o é para a circunferência. Proporcionais são as que decorrem da mesma divisão ou subdivisão, feitas segundo a mesma proporção, como o todo dividido em dois, e as partes resultantes divididas em duas e, assim sucessivamente, sem alcançar a um fim.

O contínuo matemático não consta de entes simples, mas de partes sem fim divisíveis.


O contínuo é extenso, e a extensão conta de partes extensas, porque é formalmente um todo homogêneo. Matemática ou hipotèticamente, e também metafisicamente, a extensão, enquanto tal, é sempre extensa. Afirmam os defensores desta tese, e o procuram demonstrar, que aquela, assim considerada, não é divisível sem fim em partes alíquotas, mas em partes proporcionais. Em qualquer divisão é obtida alguma parte, e esta divisível pelo meio, em terças, em quartas, sem fim. Por isso, matemàticamente, pode-se dividir a extensão in infinitum. É também postulado pela tese que o contínuo matemático não consta de entes simples sem extensão, como afirmaram os filósofos anteriormente citados. Muitos são os argumentos apresentados em defesa desta tese que, por sua vez, serve de refutação à tese anterior. Se o contínuo constasse de indivísiveis, seriam êstes pontos, sem dimensão, como já vimos, que é a característica de ponto. Ou êles se tocam, ou não. Se se tocam, coincidem, e como não são extensos, não formariam uma extensão, e se não se tocam, não temos mais o contínuo, mas o descontínuo. Muitas provas matemáticas foram apresentadas em defesa desta tese: no quadrado, a diagonal e os lados são incomensuráveis, e se o contínuo constasse de pontos, tal não se daria, como também não se daria na circunferência em relação ao diâmetro.


Um ponto indivisível não pode ter duas faces, pois elas seriam idênticas numa só. O contínuo é um composto potencial, porque dêle se podem extrair as partes, e não um composto actual, porque êle não surge de partes preexistentes, pois se estas fôssem simples, o contínuo constaria de coisas simples. Se compostas, por sua vez, estas seriam formadas de partes compostas ou simples, e assim iríamos ao infinito. A diferença, que há num composto contínuo, e num composto essencial, é que, no primeiro, as partes não preexistem, mas podem ser determinadas, enquanto, no segundo, as partes, de certo modo, são preexistentes ao composto.

Os autores, que combatem esta tese, afirmam que se o contínuo é divisível in infinitum, é êle composto de partes em número infinito. Nêste caso, teríamos uma multidão infinita em acto, o que é absurdo, levando, portanto, a repelir que o contínuo matemático seja divisível em acto, mas apenas a infinitude em potência.

Não satisfeitos com essa argumentação, os defensores da posição contrária argumentam do seguinte modo: possível é tudo que pode realizar-se em acto sem contradição, e se um contínuo matemático é divisível in infinitum, êle poderia, então, actualizar-se, o que seria contraditório. Mas os defensores da tese respondem que não se afirma sua possibilidade simultânea, mas apenas sucessiva e inexaurível.
Simultâneamente não seria possível esta divisão, mas apenas sucessiva e inexaurìvelmente. Afirmam que a divisibilidade in infinitum  consiste apenas na afirmação de que o contínuo não pode ser exaurido por partes proporcionais. Afirmam outros que Deus, com o seu infinito poder, poderia, então, dividir in infinitum o contínuo matemático, e essas partes seriam, consequentemente, finitas, o que impediria se dissesse que é êle divisível in infinitum. Mas a resposta não se faz esperar, porque, se assim fôssem, estas quantas partes seriam simples, e, então, o contínuo constaria de indivisíveis.  Ademais, as partes podem ser divididas sucessivamente, e não simultâneamente, e porque o contínuo constaria de indivisíveis, o que repugna à demonstração já feita. O argumento de Zeno de Eléia reduz-se, em suma, ao seguinte: se o contínuo fôsse divisível in infinitum não poderia ser percorrido. Contudo êle é percorrido; portanto não é divisível in infinitum. Justifica-se êste argumento, porque, transitando-se uma parte, restaria um número infinito de partes a serem transitadas, o que impediria de alcançar-se o infinito. Se numeramos as partes, realmente tão poderia acontecer. O móvel não transita numerando as partes, mas, sim, por um movimento contínuo, que é extenso, que se extende, porque se o movimento não tivesse extensão também não haveria movimento. Dizem outros que  a tese da divisibilidade do contínuo matemático é inaceitável, porque se é divisível in infinitum, o contínuo menor teria tantas partes iguais quanto o contínuo maior, o que é absurdo. (negritei)

A distinção entre parte proporcionais e partes alíquotas permite compreender a tese. Se as partes fôssem alíquotas, então, sim, tal seria possível, não, porém, se forem proporcionais e desiguais.

Dizem os adversários da tese que o número compõe-se de unidades, e que, portanto, igualmente um contínuo é composto de pontos simples. Mas há disparidade nesta afirmativa, porque o número é uma quantidade discreta, enquanto o contínuo é uma quantidade contínua. O argumento de Zeno de Eléia fundava-se no seguintes silogismo: a magnitude infinita não pode ser percorrida por um tempo infinito; ora, se se dá uma magnitude divísivel in infinitum, ela é infinita; logo, não pode ser transitada pelo tempo finito. Não considerou Zeno, porém, uma distinção bem simples: é que a magnitude infinita em acto não é afirmada, mas apenas a em potência. O tempo finito também é infinito em potência. Se o tempo finito não fôsse infinito em potência, Zeno teria razão. (negritei)

O argumento de Aquiles, apresentado por Zeno, fundava-se de que sendo o espaço divisível in infinitum, aquêle, apesar de sua grande velocidade, não poderia jamais alcançar a tartaruga, desde que esta partisse de um ponto mais distante dêle, porque a infinitude do espaço impediria que êle a alcançasse, pois ao chegar ao ponto, onde ela anteriormente estava, já estaria ela mais distante, e assim sucessivamente. Se realmente tivesse Aquiles que percorrer, partindo de um ponto para o ponto sucessivo, tal estaria certo, mas o movimento daquele é um movimento descontínuo (feito em passos), como também o é o da tartaruga, e o daquele é mais veloz; ou seja, percorre, no mesmo tempo, maior extensão, o que permite que êle a alcance. Note-se que o espaço a ser percorrido pode ser dividido pelos passos de Aquiles. O passo já é qualitativo o que mostra a quantidade inseparável da qualidade, como ainda veremos.


A parte de um todo é sempre menor do que êle. Um ente, sem partes e sem extensão, seria um ente simples e, como tal, por não ter extensão, não é extensistamente comparável a outro. Como poderia a extensão ser constituída do que não é extenso? Já que a idéia de extensão aponta para a tensão ex, centrífuga, que foge de um ponto, o que os defensores desta tese afirmam é a divisibilidade in infinitum do contínuo matemático, do contínuo metafísico. Quanto ao contínuo físico, veremos mais adiante como êles se comportam em oposição a outros postulados, eivados de absurdos, por serem fundamentalmetne contraditórios.


A afirmativa de que o contínuo matemático é composto de indivisíveis e sem extensão leva à afirmação de que a extensão é constituída de não-extensão, o que é contraditório, ou que a essência do extenso seria o não-extenso, pois tratando-se de um todo homogêneo, como é o contínuo matemático, as suas partes são especìficamente idênticas ao todo, e se são elas inextensas, como poderia o todo ser essencialmente extenso? Neste caso, que é o do todo integral homogêneo, o que se atribui essencialmente  ao todo atribui-se à parte, e vice-versa. Portanto, seria patente a contradição. Que o extenso seja produto de uma entidade não extensa, é matéria a ser discutida, mas que seja constituído, em suas partes integrais, de partes inextensas, tal seria absurdo.


Não se palmilha aqui matéria fácil, pois longas são as especulações matemáticas em tôrno dêsse tema, as quais, se aqui reproduzidas, apenas alongariam a matéria, sem grande proveito quanto à explicação, pois as aporias são inegáveis. E elas surgem e se firmam mais comumente entre filósofos menores, por fazerem êstes confusão entre o contínuo matemático ou hipotético e o metafísico, com o contínuo físico. E chegam a afirmar, como fêz Demócrito e também ilustre escolásticos, que, fisicamente, o extenso é composto de entidades inextensas, portanto indivisíveis, átomos, o que nem para o contínuo matemático se pode admitir, quanto mais ainda para o contínuo físico, em face das demonstrações acima apresentadas.




A Cosmologia especula sôbre os entes móveis, isto é, aptos à translação espacial. São êstes entes quantitativos e, consequentemente, exigem o estudo da quantidade contínua e da descontínua, que é fundamental para os posteriores exames cosmológicos.

Temos aí, portanto, o exemplo do êrro cosmológico, que teve grande influência no filosofar.

(1) Também se atribui indevidamente a Pitágoras este tese. Não o colocamos entre os defensores dêsse postulado. A demonstração que teríamos de apresentar seria longa, e fazemo-la nas obras que escrevemos sôbre o pensamento do verdadeiro fundador da filosofia ocidental, tantas vêzes incompreendido, e ao qual se tem atribuído pensamentos que têm sua origem nos chamados pitagóricos, discípulos posteriores.

Mário Ferreira dos Santos, Erros na Filosofia da Natureza, Coleção Uma Nova Consciência, Editora Matese, São Paulo, 1967, p. 19-24.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

WOLFGANG SMITH: A BIFURCAÇÃO CARTESIANA



Trata-se de uma breve resenha do primeiro capítulo de "O enigma quântico: desvendando a chave oculta", de Wolfgang Smith.

Smith constata de início a dificuldade filosófica em dar sentido às complexidades inerentes à teoria quântica, e evidencia que o principal problema são "certas premissas metafísicas falsas que têm ocupado um posição de dominância intelectual desde o tempo de René Descartes" (p. 27)

Tais premissas decorrem da "concepção cartesiana de um mundo externo feito exclusivamente das chamadas res extensae ou 'coisas extensas', as quais se supõem serem desprovidas de todos os atributos ou qualidades 'secundárias', tais como a cor, por exemplo" (p. 27), e tudo aquilo que  não for "um res extensa passa a ser um 'objeto de pensamento' ou, em outras palavras, uma coisa que não tem existência fora de uma res cogitans ou mente particular"(p. 27).

A metafísica cartesiana pressupõem o mundo independente da matéria, realidade primária que origina dados objetivos mensuráveis, enquanto que as qualidades como frutos do pensamento são sem existência real, o que resulta numa realidade secundária oriunda da subjetividade do sujeito.

A dicotomia res extensae/res cogitans promovem uma "simplificação incalculável do primeiro" (p. 28) por fornecer "um tipo de 'mundo externo' que a física matemática poderia em princípio compreender 'sem resíduo'" (p. 28).

Smith questiona então: "Como é possível, por exemplo, que a res cogitans tome ciência da res extensa? Através da percepção, sem dúvida; mas, então, o que é que nós percebemos? Ora, em tempos pré-cartesianos, pensava-se - sendo filósofo ou não - que, no ato da percepção visual, por exemplo, nós de fato 'lançamos o olhar para o mundo exterior'" (p. 28).


CHARLES DARWIN E OS PODERES DAS FORMAS ATRIBUIDAS PELO CRIADOR




A natureza produz alguma engenharia por si própria?

Quem realizaria o controle de qualidade?

Há um senso comum em vigor, que considera a realidade da natureza como um conjunto de sistemas nivelados por baixo, e, um bom exemplo desta proposição de "democracia da natureza", é a defesa intransigente da teoria da seleção natural ou da evolução (que são coisas distintas, mas aqui falo do senso comum), considerado como um processo cego, sem direção, que não se determina, simplesmente ocorre, e, ainda que a natureza produzisse padrões de design, em suas transformações, não tende necessariamente à perfeição, e, pensar o contrário é considerado uma exposição de "argumento ingênuo".

Bem vindo, caro leitor, ao reino dos argumentos maliciosos (somente pessoas inteligentes e críticas não são ingênuas, tal como Sartre, para quem tudo é feito e pensado de má-fé)!

Minha postura é no sentido da objetividade do real, cuja concreção (cf. Mário Ferreira dos Santos) é indício da existência do próprio Deus, e, assim, esta realidade é o objeto da  ciência, e da filosofia, em seu sentido não-ideológico de pesquisa séria, com base em dados, e na demonstração lógica das teses, teorias e hipóteses, conforme a aplicação do princípio da razão suficiente.

A natureza, na perspectiva moderna, é um conjunto de fenômenos materiais, que por sua vez tendem à entropia.

Por outro lado, na perspectiva filosófica tradicional, a natureza é a matéria segunda submissa às causas formal, material, eficiente e final, frutos da causalidade vertical (causa formal em seu mais alto grau) nos termos propugnados por Wolfgang Smith, com base nos princípios metafísicos reais, tão bem descritos por Aristóteles

O mencionado senso comum que defende a cegueira e aleatoriedade do real, ao considerar o conceito de evolução, necessariamente propõe uma ideia de aperfeiçoamento, que tende para  a aceitação de alguma razão final, uma noção de perfeição, portanto, mesmo que não declarado, há a operação de um princípio metafísico, escondido nas entrelinhas do raciocínio.

O próprio Darwin refere-se ao conceito de "desenho inteligente" ao definir a existência de formas primitivas de seres vivos, criadas por Deus, que precedem a operação do meio ambiente, no processo de seleção natural, quando conclui "A origem das espécies":



"Estas leis, tomadas no seu sentido mais lato, são: a lei do crescimento e reprodução; a lei da hereditariedade que implica quase a lei de reprodução; a lei de variabilidade, resultante da ação direta e indireta das condições de existência, do uso e não uso; a lei da multiplicação das espécies em razão bastante elevada para trazer a luta pela existência,  que  tem  como conseqüência  a  seleção  natural,  que  determina  a  divergência de caracteres, a extinção de formas menos aperfeiçoadas. O resultado direto desta  guerra  da  natureza  que  se  traduz  pela  fome  e  pela  morte,  é,  pois,  o  fato  mais admirável  que  podemos conceber,  a  saber:  a  produção  de  animais  superioresNão há uma verdadeira grandeza nesta forma de considerar a vida, com os seus poderes diversos atribuídos primitivamente pelo Criador a um pequeno número de formas, ou mesmo a uma só? Ora, enquanto que o nosso planeta, obedecendo à lei  fixa  da  gravitação,  continua  a  girar  na  sua  órbita,  uma  quantidade  infinita  de belas  e  admiráveis  formas,  saídas  de  um  começo  tão  simples,  não  têm  cessado de se desenvolver e desenvolvem-se ainda!" (negritos nossos) (CHARLES DARWIN, "A Origem das Espécies", tradução de Joaquim da Mesquita Paul, médico e professor, LELLO & IRMÃO – EDITORES, PORTO. 2003)

Então fica assim, aquela pessoa que se satisfaz com a ideologia naturalista, propugnadora da tese da verdade da "cegueira imperial da natureza", por favor, deixe-me em paz com minha ingenuidade fundada no mundo objetivo e concreto, pois tal pessoa que se funda na "fé naturalista"  está votada a padecer sob as penas do niilismo e do solipsismo, são cegos que se deixam conduzir por outros cegos em um ato de fé na "razão maliciosa".

Referências:

Aristóteles, Metafísica.

Charles Darwin. A Origem das Espécies.

Mário Ferreira dos Santos. Filosofia Concreta.

Wolfgang Smith, O enigma quântico: desvendando a chave oculta.



Belém, Pará, Brasil, Werner Nabiça Coêlho - 21.12.2016


MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: COMO SÃO AS PARTES DO CONTÍNUO? (cap. 04)

Observações preliminares.
 
O Filósofo Mário Ferreira dos Santos sempre advertia no início de suas obras a respeito da importância do vocabulário, e, principalmente, de seu elemento etimológico, e, já nos idos dos anos 1960 ele alertava que utilizaria certas consoantes mudas, já em desuso, mas muito importantes para "apontar  étimos que facilitem a melhor compreensão da formação histórica do têrmo empregado", e, em razão desta técnica de exposição, escolhi realizar as transcrições do texto em seu formato gramatical original (com exceção das tremas).

 

"COMO SÃO AS PARTES DO CONTÍNUO?

Antes de adentrarmos no texto cito o paradoxo de Banach-Tarski, na qual o cálculo matemático gera, em abstrato, a "criação" de "extensão" por meio do mecanismo da divisibilidade infinita:
[...] começa com a aplicação do axioma da escolha. Por derivações matemáticas no espaço euclidiano (o espaço usual de três ou mais dimensões em que a geometria é estudada), os dois matemáticos demonstraram que uma esfera de raio fixo pode ser decomposta em um número infinito de partes e novamente montada para formar duas esferas, cada qual com o mesmo raio da esfera original. Esse paradoxo causou grande surpresa entre os matemáticos. (Amir D. Aczel, O mistério do alef: a matemática, a Cabala e a procura do infinito, tradução Ricardo Gouveia, Globo, São Paulo, 2003, p. 156-7)
Esta menção se faz necessária para exemplificar o ponto suscitado por Mário Ferreira dos Santos,  sobre a necessidade do pensamento concreto, que leva em consideração a realidade do objeto, e que se distingue do modo pensar típico da matemática, somente por meio de abstrações, que se desconecta da objetividade do real, e, é por isso que nosso Filósofo se posiciona da seguinte forma:

"que a realidade das partes seria obtida pela divisão, não criada pela divisão; que as partes não estão divididas em acto, mas em designabilidade, e ao dizer que elas são realmente distintas em acto ou potência refere-se ao nosso modo de falar, não quanto à sua realidade."
Feitas estas considerações, passemos para a próxima lição a respeito da cosmologia:

"COMO SÃO AS PARTES DO CONTÍNUO?

Afirmam uns que estas partes estão nêle actual e formalmente. Outros negam esta afirmativa, para alegar estarem apenas potencialmente. Uma  terceira posição afirma que estão em acto, mas que, formalmente, estão apenas em potência. A primeira tese é defendida por Suarez, pelos conimbricenses, por João de São Tomás e por Scot. A segunda, por Arríaga, Tongiorgi e Schifini. A terceira, por Mendive, Lahousse e outros. Todos afirmam que a sua tese é a de Aristóteles e de São Tomás. Uma quarta posição afirma que as partes, obtidas pela divisão, já estão no continuo e não são criadas pela divisão; porém não estão no contínuo em acto, apenas são designáveis. Finalmente, se são elas realmente distintas em acto e potência é o que esta posição pretende estabelecer.


Que as partes devem estar contidas no todo, e que não podem ser criadas ou produzidas pela divisão, é evidente, porque a divisão, por si só, não poderia realizar a realidade das partes. Estas, de qualquer modo, já deveriam estar no todo.

Deveriam estar no todo potencial, e formalmente, e assim o afirmamos, porque, no todo contínuo, as partes são essencialmente idênticas ao todo enquanto extensivo. Se as partes fôssem em acto distintas, o todo não seria contínuo, mas contíguo. Se as partes fôssem em acto, seriam finitas, então, o contínuo exaurir-se-ia por partes finitas, as quais não seriam divisíveis in infinitum. Se as partes fôssem infinitas, dar-se-ia, então, uma multidão infinita em acto, e elas se distinguiriam por seus limites, e constituiriam número.

O facto das partes serem realmente distintas uma das outras, não quer dizer que sejam separadas, porque nem tudo que é distinto é separado.


Ademais, é preciso não esquecer que a divisão matemática é uma divisão mental, que ela, por si só, não realiza divisão. As partes do contínuo não realizam o número, pois êste decorre da divisão, e as partes do contínuo não têm uma dvisão actual, nem limites actuais, mas apenas designáveis. O que na verdade se diz é que, no contínuo, há a realidade das partes, as quais podem ser alcançadas por divisão, e não que elas são criadas por divisão. Não se afirma que, num contínuo, as partes estejam em acto e formalmente, mas apenas que, por divisão, pode-se obter a sua realidade, cuja realidade não é criada pela divisão. Estas são as razões demonstrativas desta quarta posição, que afirmaria, como dissemos acima, que a realidade das partes seria obtida pela divisão, não criada pela divisão; que as partes não estão divididas em acto, mas em designabilidade, e ao dizer que elas são realmente distintas em acto ou potência refere-se ao nosso modo de falar, não quanto à sua realidade. Esta quarta posição, que é a nossa, concilia as três anteriores, e não oferece os perigos que decorrem de cada uma, tomada abstractamente."

Mário Ferreira dos Santos, Erros na Filosofia da Natureza, Coleção Uma Nova Consciência, Editora Matese, São Paulo, 1967, p. 25-6.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS: SÃO CONTÍNUAS AS ÚLTIMAS PARTICULAS DOS CORPOS? (cap. 05)



Observações preliminares.

O Filósofo Mário Ferreira dos Santos sempre advertia no início de suas obras a respeito da importância do vocabulário, e, principalmente, de seu elemento etimológico, e, já nos idos dos anos 1960 ele alertava que utilizaria certas consoantes mudas, já em desuso, mas muito importantes para "apontar  étimos que facilitem a melhor compreensão da formação histórica do têrmo empregado", e, em razão desta técnica de exposição, escolhi realizar as transcrições do texto em seu formato gramatical original (com exceção das tremas).


SÃO CONTÍNUAS AS ÚLTIMAS PARTICULAS DOS CORPOS?

Não se deve confundir a extensão hipoteticamente considerada, nem a matematicamente considerada, com a extensão verificada nas coisas reais do mundo objetivo, dos corpos. As primeiras, como se demonstrou, são contínuas e divisíveis in infinitum. Assim a linha, enquanto linha, é divisível em partes proporcionais in infinitum. Perguntar-se-ia se um pedaço de ferro seria, por sua vez, divisível, também, in infinitum?


Um pedaço de ferro não constitui uma extensão apenas matemática ou hipotética, mas uma extensão material. Ora, o ser material, segundo as categorias aristotélicas, é composto de matéria-prima e forma substancial, e possui três dimensões: longitude, latitude e profundidade, que são as três dimensões do espaço, como ainda se verá oportunamente, e as únicas.


Se falamos da última partícula de um corpo, queremos nos referir àquelas partículas mínimas em que o corpo é dividido, e que poderiam existir separadas dos mesmos. Para a ciência moderna, estas partículas são prótons, eléctrons, núcleons, etc. A molécula é, para a ciência moderna, a última partícula que se dá separadamente, e não a última partícula de um ser físico, como ela entende por físico. Os antigos afirmavam que um corpo, por ser composto de matéria-prima e forma substancial, possui suas últimas partículas, que êles chamavam de mínimos naturais (mínima naturalia), que era última realidade dêste corpo enquanto tal, isto é, conservando a sua forma; uma divisão posterior faria que êle perdesse aquela. Assim, uma gota d’água dividida chegaria a um ponto em que deixaria de ser água, para ser outra coisa. Nós vimos que o contínuo é a extensão, cujas partes se conjugam sem interrupções. Aristóteles dizia que os contínuos são aquêles sêres que têm extremos comuns, os quais formam uma unidade. Vimos que o contínuo pode ser formal ou virtual. O virtual é aquêle, cujas partículas simples são tôdas  no todo, e tôdas nas partes singulares; e formal, o que consta de partes extensas, potencialmente divisíveis enquanto extensas.



Em tôrno da pergunta que intitula êste  capítulo, inúmeras foram as respostas dadas. Os idealistas kantianos, cépticos, etc., julgam que não é o homem, devido às condições de sua mente, capaz de resolver êste problema. Outros, porém, não são mesmo pensar, e propõem soluções. Para Boscowitch e Leibnitz o contínuo é formado de entes simples, separados, com uma distância entre si, que nos dão a impressão de continuidade. Na verdade, para êles, não há a extensão, mas apenas um fenômeno, que surge para nós, como extensão. Para outros, os corpos são compostos de entes simples, e de número infinito, que se tangem; outros, ainda, dizem que os corpos são formalmente contínuos, embora compostos de partículas mínimas, como delas se refere a Ciência.

Afinal, outros, admitem a descontinuidade da matéria, e que um corpo é formado de mínimas partículas, e que  a sua continuidade é apenas formal, e que êsse contínuo formal é sempre divisível.


Sem dúvida, a realidade dos corpos nos revela a extensão; esta pode ser verificada por meios instrumentais. O intelecto fundado nos sentidos e na experiência científica, conclui que não é impossível um contínuo. Aquêles que afirmam que os corpos são compostos de entes simples, portanto indivisíveis, terão de permanecer ante estas duas possibilidades: êstes entes simples distanciam-se ou não se distanciam uns dos outros? Se não se distanciam, tocam-se, e, neste caso, desapareceria a extensão, porque êles coincidiriam uns com os outros, já que não são extensos; se se distanciam, dar-se-ia, entre êles, uma acção à distância, a qual veremos, é impossível.


Ter-se-ia, ademais, de afirmar a existência de um espaço vazio entre as partículas, o que provaremos ser infundado. Pois o espaço vazio é um ente de razão, que se funda na extensão, e não a extensão naquele. É a extensão que funda o espaço, e não o espaço interposto, que funda a extensão.


A conclusão, que se pode tirar, é a seguinte: que as últimas partículas de um corpo são formalmente contínuas, que êste não pode ser constituído de indivisíveis, hipotética e matemàticamente considerados. Fisicamente considerado, o corpo tem um mínimo formal deixando de ser o que é para ser outro, se por meios mecânicos ou sobrenaturais, é dividido nos elementos que o compõem. Êstes, por sua vez, são formalmente contínuos; portanto, divisíveis, hipotética e matemàticamente. Fisicamente, alcançar-se-ia o que formalmente não é êle, desde que atingido o mínimo natural. A caracterização do que fica além das últimas partículas conhecidas actualmente cabe à Ciência promove-la."



Mário Ferreira dos Santos, Erros na Filosofia da Natureza, Coleção Uma Nova Consciência, Editora Matese, São Paulo, 1967, p. 31-33.