Há
quem afirme que a constituição é “a nova morada de Deus”
(CHAUÍ, apud NADAL, p. 129).
Ao
considerarmos a constituição como mito, afirmamos que o próprio
princípio da legalidade é um mito, pois simboliza a legalidade em
alto grau normativo.
A
idéia de constituição torna-se, portanto, um princípio basilar do
pensamento jurídico, em seu nível poético, no sentido de fonte criativa de imagens
inspiradoras da ação (princípios), ao ser compreendido como norma fundamental, para, em última análise, servir de base de sustentação ao discurso
sagrado da legitimidade de uma espécie de religião civil à moda do
contrato social iluminista.
A
constituição, como símbolo que representa o mito da legalidade,
numa perspectiva antropológica girardiana, possui estreita relação
com a necessidade humana de prevenção da erupção da violência,
e, portanto, é uma condição de possibilidade para a própria
existência da vida em sociedade.
A
doutrina do Direito Constitucional nos ensina que o Poder Constituinte é fruto de uma Revolução Política, cuja energia seria
oriunda do Povo, que tanto pode assumir um caráter de crise
violenta e imprevisível, como pode ser pacífica, e criada por meio de uma Assembleia Constituinte, incumbida de fundar uma nova ordem constitucional.
A linguagem simbólica da ciência política trata o ser humano, vivo,
espiritual e carnal, com base em abstrações: "Revolução",
"Poder", "Povo" e "Assembleia", que
convidam nossa imaginação a vislumbrar panoramas épicos, em que os heróis criam uma sociedade política impessoal e
purificada dos males do passado, como se toda mudança política fosse resultado de uma evolução progressiva, para formas mais perfeitas de Estado.
Todavia,
por mais mitológica que seja a construção da ideia de lei, tal
imagem não é fruto de um processo irracional, pois há uma
necessidade humana de estabilidade e segurança, que deve ser
atendida, e esta necessidade é suprida pela criação de processos
sociais fornecedores de mediação externa nas relações humanas.
A mediação externa é operada por um terceiro situado simbolicamente acima das partes, superioridade que impõe uma
ordem normativa incontestável, esta é a estrutura básica do mito, quando os heróis em conflito são punidos ou agraciados pelos deuses,
ordem versus caos, uma vez que a violência é oriunda das mediações
internas, em que os contendores estão no mesmo nível de desejo, e são
potenciais competidores num processo autodestrutivo de vingança interminável.
Aristóteles renega a irracionalidade da idéia
de lei, e, demonstra que o predomínio da
emoção será afastado com a aceitação do princípio (mito) da
legalidade, nestes termos:
Na verdade, tudo o que a lei parece ser incapaz de resolver, também não pode ser conhecido por um só indivíduo. A lei que formou adequadamente os magistrados, encarrega-os de dividir e resolver “do modo mais eqüitativo possível” as restantes questões. Ademais, concede-lhes o direito de corrigir o que, em resultado da experiência, lhes parece ser melhorável em relação às leis escritas. Assim, exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem; pelo contrário, exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal; o desejo cego é semelhante a um animal e o predomínio da paixão transtorna os que ocupam as magistraturas, mesmo se forem os melhores dos homens. A lei é, pois, a razão liberta do desejo. (ARISTÓTELES, 1998, p. 259) (destaques no original)
A mediação externa significa, pois:
“Exigir que a lei tenha autoridade não é mais que exigir que Deus e a razão predominem”,
porque, de outra
forma, somente restará a danosa mediação interna, para a qual:
“exigir o predomínio dos homens é adicionar um elemento animal”,
pois o predomínio
do desejo cego implica em conflitos diretos, num processo de mediação interna, que gera um crescendo de atos de violência nas relações interpessoais, até que estoure um crise de vinganças infinitas, a crise mimética.
Quando
os participantes de uma relação social são colocados em conflitos
de interesses, suas condutas podem ser transtornadas pela paixão.
Para conter o conflito, resultante da mediação interna inerente às partes, que estão emocionalmente envolvidas, deve-se
criar uma situação contrabalanceada pela “razão liberta do
desejo”, por meio da mediação externa.
A sacralidade da lei é o fundo mitológico-poético sobre a qual se erige a idéia de
legalidade, e seus representantes, os agentes da ordem normativa, permite que o virtual
conflito da rivalidade mimética encontre um limite objetivo, interposto entre os interesses subjetivos em conflito, mediante a presença um terceiro em posição simbólica superior.
O
mito da legalidade, a idéia de que a lei é sagrada, se impõe para ordenar e mediar o fenômeno da universalidade do desejo, e da violência, existentes
na presença de mediação interna, inerente aos conflitos de
interesses do cotidiano social.
A
universalização do mito da constituição, encarado como o símbolo
da legalidade em último grau, que serve de princípio ordenador para toda a
ordem legal normativa, gera a possibilidade de mediação externa nas relações sociais, estrutura simbólica que torna o
exercício das magistraturas um dever sagrado para com a lei, que
neste caso é erigida como a representação de Deus, da Razão e do
Povo.
Assim sendo, a
imaginação humana considera-se liberta da opressão, quando não
mais se encontra sob a sujeição do ódio ou do medo, nem a este ou àquele poder pessoal.
O mito da legalidade é, assim,
erigido como a base de sustentação da mediação externa, que opera institucionalmente, sobre os conflitos intersubjetivos, pois se estabelece a simbólica da
superioridade e racionalidade da lei, e não da vontade pessoal de outrem, o agente da ordem não age em nome próprio, mas em nome da lei.
Maximiliano
(1961, p. 20) assevera que:
“O Direito precisa transformar-se em realidade eficiente, no interesse coletivo e também no individual”; sem esquecermos que “[...] toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não se verificarem com esmero, o sentido e alcance das suas prescrições”(MAXIMILIANO, p. 23)
A partir da prévia aceitação do mito
da legalidade desenvolve-se os métodos hermenêuticos e
interpretativos, pois sem a expressa aceitação deste pressuposto simbólico não
é possível desenvolver o discurso poético fundador da ordem legal.
A poética do discurso sacraliza a idéia de
constituição, que será o fundamento para estabelecer padrões (mediação externa) para os diversos discursos
retóricos (mediação interna).
As
retóricas, quando alicerçadas na ordem legal, são operadas pelas
partes em conflito, passam a ser mediadas pela
superioridade da "vontade da lei" ou "vontade
dos legisladores", quando as retóricas não apelam para a superioridade lei, descambam para soluções violentas "fora da lei".
Quando
o mito da legalidade está sedimentado socialmente, a legitimidade da
ordem social daí decorrente é a condição suscetível de
racionalizar o debate necessário ao discurso dialético
interpessoal.
A
aceitação de um referente externo e objetivo, criador de uma
mediação externa a ser dirigida pela autoridade competente, eleita
pela ordem legal como mediador, permite a criação do momento decisório
típico da linguagem jurídica.
Este momento decisório, com base no princípio da legalidade, implica na dialética do devido processo legal, que se conclui na lógica da decisão jurídica.
Em
suma, para que os quatro discursos humanos, interligados no fenômeno
comunicacional (Olavo de Carvalho, 1996), sejam operados de forma
eficiente pelo cidadão, pelo jurista e pelo político, estes devem
sempre afirmar e reafirmar sua fé no mito da legalidade, ao aceitar a prevalência simbólica de seu livro sagrado: a constituição.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Política . Edição bilíngüe. Lisboa: Vega, 1998.
CARVALHO, Olavo de, Aristóteles em nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos.Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito . 7ed., São Paulo: Freitas Bastos, 1961.
NADAL, Fábio. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da constituição. São Paulo: Método, 2006.