sábado, 5 de novembro de 2016

HEINLEIN'S THE MAN: A FALÁCIA CARTESIANA


O conto que serve de fonte a esta postagem se denomina "Pelos cordões de suas botas", trata-se de uma narrativa sobre viagens no tempo e seus paradoxos, que remetem o personagem principal para algumas reflexões sobre o ego e o método científico, pois o herói é um estudante irresponsável, que está no prazo final de entrega da tese de pós-graduação:



[...] Ia ficar ali e, certamente, estava decidido nesse ponto: ia terminar a tese. Precisava comer; tinha que obter o diploma para conseguir um emprego decente. Onde era mesmo que estava?

Vinte minutos mais tarde, chegou à conclusão de que a tese teria de ser reescrita do princípio ao fim. Seu tema original, a aplicação do método empírico aos problemas da metafísica especulativa e sua expressão em fórmulas rígidas, ainda era válido, decidiu, mas havia acumulado uma enorme quantidade de dados novos e ainda não digeridos a serem incorporados. Ao reler o manuscrito, ficou surpreso ao constatar o quanto era dogmático. Caíra inúmeras vezes na falácia cartesiana de confundir o raciocínio claro com o raciocínio correto.

Tentou escrever uma versão resumida da tese mas descobriu que havia dois problemas com os quais tinha que lidar e que decididamente não estavam claros em sua mente: o problema do ego e o problema do livre-arbítrio.[...]

Uma resposta absurdamente óbvia à primeira pergunta lhe ocorreu imediatamente. O ego era ele. Cada um é cada um, uma declaração não provada e improvável, diretamente experimentada. [...]

Começou a procurar um meio de se expressar: "O ego é o ponto de consciência, o último termo numa série contínua de expansão na linha de duração da memória." Parecia uma declaração global mas não tinha certeza; teria de tentar formular aquilo matematicamente antes de poder confiar na coisa. A linguagem verbal continha tantas armadilhas esquisitas.

HEINLEIN, Robert. A. "A ameaça da Terra". Tradução de Ester Delamare Tate. Livraria Francisco Alves Editora S.A.: Rio de Janeiro, 1977, p. 77-8

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

É BOM CITAR: ÉTICA A NICÔMACO E O PRINCÍPIO DA VERDADE SUFICIENTE



"Toda a perícia e todo o processo de investigação, do mesmo modo todo o procedimento prático e toda a decisão, parecem lançar-se para um certo bem. É por isso que tem sido dito acertadamente que o bem é aquilo por que tudo anseia." (1094a 1) (p. 17)

"Parece, contudo, haver uma diferença entre os fins: uns são, por um lado, as atividades puras; outros, por outro lado, certos produtos. Há, pois, fins que existem para além das suas produções. Nesse caso, os produtos do trabalho são naturalmente melhores do que as meras atividades que os originam." (1094a 5) (p. 17)

"Sendo diversos os procedimentos práticos, as perícias e as ciências, assim também são diversos os respectivos fins. Assim é, por exemplo, o caso da saúde relativamente à medicina, da embarcação relativamente à construção naval, da vitória relativamente à estratégia militar, da riqueza relativamente à economia." (1094a 10) (p. 17)

"Um tal saber poderá ser compreendido suficientemente, se se ganhar toda a transparência que a matéria em análise permitir." (1094b 11) (p. 19)

"É que, de fato, não tem de se procurar um mesmo grau de rigor para todas as áreas científicas, tão pouco para todas as perícias. As manifestações de nobreza e o sentido da justiça nas ações humanas, sentidos visados pela perícia política, envolvem uma grande diferença de opinião e muita margem para erro, tanto que parecem existir apenas por convenção e não por natureza." (1094b 15) (p. 19)

"Uma mesma margem de erro parece envolver o que se possa entender por 'coisas boas', por delas poderem resultar perdas e danos para muitos. É que muitos houve já que se perderam por causa da riqueza, outros ainda por causa da coragem que quiseram exibir ." (1094b 15) (p. 19)

"Damo-nos, portanto, por satisfeitos se, ao tratarmos destes assuntos, a partir de pressupostos que admitem margem de erro, indicarmos a verdade grosso modo, segundo uma sua caracterização apenas nos seus traços essenciais. Pois, para o que acontece apenas o mais  das vezes, com pressupostos compreendidos apenas grosso modo e segundo uma sua caracterização apenas nos traços essenciais, basta que as conclusões a que chegarmos tenham o mesmo grau de rigor." (1094b 20) (p. 19)

"Na verdade, parece um erro equivalente aceitar conclusões aproximadas a um matemático e exigir demonstrações a um orador." (1094b 25) (p. 19)

"[...] Ora, as áreas de saber em causa dependem dos sentidos fixados a partir da experiência das situações da vida e são essas mesmas situações da vida que, em última análise, constituem o seu próprio tema." (1095a 1) (p. 19)

"[...] o objetivo final desta investigação não é constituir um saber teórico, mas agir." ." (1095a 5) (p. 19)

"[...] não há nenhum diferença se a juventude diz respeito à idade ou à natureza imatura do caráter. A deficiência não se constitui pelo tempo, mas por se viver exposto às paixões e se deixar ir atrás de cada uma delas." (1095a 5) (p. 19-20)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

PETER KREEFT ENSINOU: A UNIVERSALIDADE DO SOFRIMENTO

A universalidade do sofrimento, sua inutilidade, seu tédio, as mazelas da família e a solidão de não tê-la, o império do fingimento universal, melancolia, depressão, desespero, feiura e mediocridade, são elementos da banalidade do sofrer, mas, a partir deste momento, fique com Peter Kreeft:





Não é só o caso de o sofrimento não ser merecido; é que parece ser casual e inútil, sem nenhum motivo ou razão concreta; puro acaso, apenas espalhando o mal sem fim. Para todo aquele que se torna um herói e um santo por meio do sofrimento, há dez outros que parecem perder sua humanidade, tornar-se depressivos ou desesperados (p. 19-20)



E a universalidade do sofrimento – aí é que está a questão. Seu vizinho, seu melhor amigo, seu médico, seu mecânico, todos possuem mágoas profundas e abafadas das quais você nem chega a tomar conhecimento, da mesma forma que eles não conhecerão as suas. Todos, pelo mundo afora, estão sofrendo. E, se você não se apercebe disso, é porque ou é bastante ingênuo e acredita na aparência das pessoas, ou tem a pele tão resistente que não se magoa, nem sente a mágoa das outras pessoas em sua volta.



Não tenho a intenção de insultar ninguém; todos fingimos muito. Faz parte do nosso instinto animal tentar ocultar nossas feridas para que não nos façam sofrer mais. Da mesma forma que os animais cobrem suas feridas no corpo para se proteger, fazemos o mesmo com nossas feridas da alma. Estamos todos envolvidos em um grande fingimento universal.



Um aspecto dessa mágoa que todos carregamos é a família. Todos nascemos em uma família, e muitas pessoas depois se dedicam a construir novas famílias. A família é a primeira e mais íntima fonte de relacionamentos entre o eu e o outro. Mas essa fonte de nossos amores mais profundos é também fonte de nossas maiores mágoas. Se você faz parte de uma família, seja ela um lar destruído pelo divórcio, alcoolismo ou ressentimentos, seja ela unida, você sabe que aqueles mais próximos de você são os que mais o magoam, de forma deliberada ou não. E, se você não faz parte de uma família, você sabe como dói profundamente ser sozinho.



Olhe as pessoas nas ruas. Observe os seus rostos. Olhe mesmo. Especialmente na rua de uma grande cidade. Não há ali somente tráfego e confusão – isso nem é tão terrível; Jesus estava ocupado e correndo a maior parte do tempo também –, mas há sofrimento. Veja a linha dos rostos das pessoas, os músculos, a dureza, a tensão, sua maneira de olhar, o medo, a estupidez. “A grande massa dos homens leva a vida em calmo desespero”, escreveu Thoreau. (p. 20)



Fisicamente, as pessoas sofrem menos do que nunca em nosso século, especialmente nessa geração, graças em grande parte aos progressos da medicina. Existem anestésicos, uma das maiores invenções de todos os tempos. Já há cura para um número cada vez maior de doenças. A sociedade industrial oferece à maioria das pessoas uma vida confortável, uma vida que somente uns poucos ricos poderiam alcançar décadas atrás. Muitas pessoas chegam aos setenta ou oitenta anos de idade com menos de meia dúzia de ocasiões em que realmente tenham sentido uma dor, uma agonia insuportável. Há um século, seria sorte passar um único ano sem sentir uma dor que chamaríamos hoje em dia de alucinante. Imagine um mundo sem anestésicos. Pense bem. Quando foi a última vez que você sentiu a dor de uma espada cortando o seu braço? (p. 20-1)



E ainda assim as pessoas hoje se machucam bem mais psicológica e espiritualmente do que nunca. As taxas de suicídio explodem. A depressão aumenta. A violência desenfreada é moda. O tédio se espalha. (Na verdade, a própria palavra tédio não existia em nenhuma das línguas pré-modernas!) A solidão é crescente. E a procura da fuga por meio das drogas é cada vez maior.



[…]



Estamos fugindo de nós mesmos (ou tentando fugir, já que a única coisa da qual não conseguimos escapar, além do próprio Deus, é de nós mesmos) porque estamos todos magoados, bem no fundo dos nossos corações. Geralmente esse não é o tipo de sofrimento trágico, incomum, espetacular, mas um enorme manto escuro que se abate sobre nossas vidas como fuligem, cobrindo tudo de tédio, enfado, melancolia, feiura e mediocridade. Vivemos como robôs, obedientes à programação social que recebemos, sem nunca levantar as perguntas fundamentais de nossa existência. Nossas próprias paixões estão adormecidas. Vamos para a cama em obediência à publicidade carregada de sexo, e pulamos da cama em obediência aos alarmes dos relógios. Não temos quase nenhum motivo para sair da cama e quase todos os motivos para deitar nela. (p. 21)

KREEFT, Peter. Buscar sentido no sofrimento. Tradução de Alexandre Patriarca. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

PETER KREEFT ENSINOU: A DISTINÇÃO ENTRE O NIRVANA E O ÁGAPE





Peter Kreeft na obra Buscar sentido no sofrimento distingue o Nirvana de Buda do Ágape de Cristo, este como exercício espiritual de amar o "eu" mediante o amor fraternal que me conecta ao meu próximo, enquanto que as Quatro Verdades Nobres regem um método com a finalidade de extinguir o sofrimento humano mediante a "eutanásia espiritual" do próprio "eu" pessoal, com a "redução do desejo a zero".


Afinal! O sofrimento é algo que devemos extinguir ou algo com a qual devemos conviver... troque a palavra "sofrimento" pelo pronome "eu" e faça seu próprio julgamento. 

Segue a citação, que relata quando Buda decidiu investigar o porquê do sofrimento a seu próprio modo, no que foi seguido pelos seus primeiros cinco discípulos, e: 
Peter Kreeft

“... se sentou sob uma árvore, a árvore sagrada de Bo, ou Árvore da Iluminação, na postura de lótus, determinado a não se levantar até ter encontrado a solução para o enigma. Quando finalmente se ergueu, proclamou: “Eu sou o Buda”; e anunciou suas Quatro Verdades Nobres.

Essas Verdades compõem os fundamentos do budismo. Quando um discípulo pediu a Buda respostas para outras questões importantes, ele o advertiu de que apenas as Quatro Verdades Nobres são necessárias. Elas são:

1. A vida é sofrimento (dukkha: termo que designa um osso ou eixo fora de encaixe, quebrado, afastado de si mesmo). Nascemos em sofrimento, vivemos em sofrimento, morremos em sofrimento. Ter o que não se quer ter, e não ter o que se quer ter, isso é sofrimento.

2. A causa do sofrimento (e aqui Buda finalmente decifra seu enigma) é o desejo (tanha: ambição, vontade, egoísmo). O desejo gera distância entre ser e satisfação; essa separação é sofrimento.

3. A maneira de acabar com o sofrimento é eliminar o desejo. Tal estado é o Nirvana (extinção). Remova a causa, e estará removendo o efeito. O mundo tenta acabar com a distância entre desejo e satisfação pr meio do aumento da satisfação, e nunca obtém sucesso. Buda toma o caminho oposto: reduzir o desejo a zero.

4. A maneira de eliminar o desejo é o Nobre Caminho Óctuplo da redução do ego. A vida é dividida em oito aspectos, e em cada um deles o discípulo experimenta uma libertação, simplificação e purificação graduais. É um caminho que dever durar toda a vida; tudo o mais é posto a serviço da redução do desejo para se alcançar o Nirvana, a eliminação do sofrimento.

Eu não sou budista. Não consigo evitar encarar o Nirvana como uma eutanásia espiritual, matando o paciente (o ego, eu eu, o si mesmo) para curar a doença (egoísmo, egotismo). O budismo elimina o “eu” que odeia e faz sofrer, sim; mas esse é também o “eu” que ama. A compaixão (karuna) é uma das maiores virtudes budistas, mas não o amor (agape). Buda parece simplesmente não ter consciência da possibilidade de existência do amor fraternal, do desejo fraternal, da paixão fraternal, do ego fraternal.

Apesar de tudo, não posso deixar de respeitar a paixão pessoal de Buda de decifrar seu enigma, e da mesma forma admirar seu método – que implica nada mais, nada menos que a transformação da natureza humana. Ninguém mais além do próprio Jesus propôs um método tão radical. E Jesus também encarou de frente o real problema do sofrimento e propôs uma solução radicalmente diferente.

KREEFT, Peter. Buscar sentido no sofrimento. Tradução de Alexandre Patriarca. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 13-4.

domingo, 23 de outubro de 2016

OBJETIVIDADES



O objeto da ética 

é a justiça enquanto prática moral.

O objeto da estética 

é o belo como pedagogia dos sentidos.

O objeto da ciência 

é a verdade possível de apreensão.

O objeto da filosofia 

é a reflexão 

sobre o conhecimento do belo, 

do justo 

e do verdadeiro, 

com base em princípios metafísicos 

(declarados ou não como tais).

O relativo não existe sem o absoluto 

e o natural não se justifica 

sem o sobrenatural, 

o irracional 

é somente o mistério 

que ainda não encontrou a pergunta certa, 

e a resposta 

nem sempre será do agrado do investigador.

O justo 

não é uma conveniência política.

O belo 

não é uma mera apreensão subjetiva.

A verdade 

não é propriedade da ciência, 

mas esta é refém daquela.

Werner Nabiça Coêlho - 02/09/2016

- SÉRIE O HOMEM CORDIAL - EMOÇÕES SÃO RAZÕES


Afinal o que leva a nacionalidade brasileira a produzir homens cordiais, numa sociedade em que são tecidas teias de relacionamentos por meio de emoções, em detrimento do cálculo racional puro e simples?

Sérgio Buarque de Holanda faz duras críticas ao nosso cordialismo, por considerá-lo a origem de nosso atraso, nosso sentimentalismo seria o fator que não permitiria que o Estado assuma seu papel transcendental em relação à família, com o estabelecimento de uma burocracia racionalista e impessoal, na qual o bem público seria antagônico aos interesses familiares.

Entre os efeitos desejados pelo célebre sociólogo de Raízes do Brasil, com a superação de nossa prevalência emotiva, seria o fim da entidade familiar patriarcal, considerada por Sérgio Buarque de Holanda como um verdadeiro óbice ao progresso, por ser uma base social primitiva a impedir o pleno desenvolvimento da civilização moderna brasileira, sob o Trópico de Câncer.

É irônico que Sérgio Buarque de Holanda lance mão do exemplo da cultura ritualística japonesa para contrapor ao nosso informalismo cordial.

O povo japonês é amante do rito.

Pode-se dizer numa perspectiva mimética (René Girard) que a cultura japonesa é um exemplo perfeito de mediação externa a partir do sagrado ritualista, que preserva o modelo arcaico xintoísta amalgamado com inúmeras influências externas que foram absorvidas e harmonizadas para o contexto japonês.

O povo brasileiro, por outro lado, é um exemplo de delicado equilíbrio de mediação interna, na qual o informalismo predomina nas relações sociais, precariamente suspensa pela mediação externa possibilitada pela cultura de origem lusa fundamentalmente impregnada de valores cristãos.

O nosso informalismo gera um elevado nível de hipocrisia social vigente, traduzida em sentimentalismos e desejo de intimidade para com o próximo, este elemento de emotividade é um hábito arraigado em todos os aspectos da vida social, como uma constante empatia fruto da valorização de elementos morais fortemente cristãos, oriundos de nossa formação cultural atávica lusa e cruzada.

O elemento de cordialidade é uma dimensão essencial do cidadão luso-brasileiro, cuja existência tem sido testada por séculos de adversidades sócio-políticas, resultantes de um processo de formação populacional resultante de sucessivos processos de conquistas, de submissão forçada de uma diversidade de povos e de dominação de territórios imensos, que foram milagrosamente consolidados por um poderoso, e corrupto, Estado Moderno, que exerceu de forma pioneira, na Idade Moderna, o poder absoluto sem freios e contrapesos durante séculos, pois devemos lembrar que Portugal já estabelecera um Estado Nacional já no século XIV.

E, assim, o ser cordial é um tipo de caráter humano desenvolvido como uma estratégia de sobrevivência, forjado num ambiente hostil e desafiador, na qual as relações de fundo emocional são um tipo de salvaguarda à instabilidade reinante nas instituições, e, mesmo que parte deste estado de coisas seja fruto da própria antropologia da cordialidade, não é sua origem primeira, pois a própria cordialidade é uma forma de racionalidade, em que o indivíduo se arma de inteligência emocional, como uma estratégia social, que evoluiu por séculos e se mostrou eficaz, ao ponto de estabelecer as bases da cultura lusa, e de muitas nacionalidades, entre elas a nossa.

Na expressão de Robert C. Solomon não sabemos "o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa" (Solomon, p. 24), e destas faço minhas as palavras para dizer o mesmo sobre o homem cordial, cujos elementos emoção/razão entretecidos de forma complexa e eficaz não podem se ignorados em sua mútua correlação, pois a emoção:

"É uma forma de interagir com outra pessoa (situação ou tarefa) e um modo de situar-se no mundo" (Solomon, p. 41).

Werner Nabiça Coêlho - 02/09/2016

Excertos:

***

(Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), O homem cordial; seleção de Lilian Moritz Schwarcz. 1ªed. - Sãu Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.)

Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo - ela pode exprimir-se em mandamentos em sentenças. (p. 52)

Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse esta fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. (p. 53)

Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualística da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social, é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência - e isso se explica pelo fato da atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no "homem cordial": é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. (p. 53)

Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual reservar intatas sua sensibilidade e suas emoções. (p. 53)

Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo. (p. 53)

***

(Robert C. Solomon, Fiéis às nossas emoções: o que elas realmente nos dizem; tradução de Miriam Gabaglia de Pontes Medeiros. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.)

...emoções são processos que por sua própria natureza, levam tempo e podem, de fato, continuar ininterruptamente. Não são necessariamente conscientes. (p. 22)

Um grande problema é nossa tendência a pensar em uma emoção como um evento psicológico separado. (p. 22)

Uma emoção é um processo complexo que engloba vários e diferentes aspectos da vida de uma pessoa, incluindo interações e relações com outras pessoas, bem como seu bem-estar físico, ações, gestos, expressões, sentimentos, pensamentos e experiências semelhantes. (p. 22)

...gostaria de iniciar com a opinião - hesitante e irônica que posse ser - de que nós não sabemos o que é uma emoção e que é realmente um assunto a ser explorado com curiosidade e expectativa. (p. 24)

A ORIGEM DA LINGUAGEM E A TEORIA MIMÉTICA


Eugen Rosenstock-Huessy e René Girard são desbravadores da origem mimética da linguagem.


Eugen Rosenstock-Huessy deduz a origem ritual da própria linguagem, e René Girard descobre o fundamento antropológico do rito.

Eugen Rosenstock-Huessy descreve a necessidade de um tamanho poder do rito, que este criou o tempo, a ordem, nomeou e vestiu de tradição o homem, e René Girard revela que este poder é fonte de nosso desconforto com a civilização, erigida sobre séculos e séculos de assassinatos rituais, de crimes que permitiram que com o sacrifício de poucos muitos prosperassem, o bode expiatório é o herói, o demônio e o deus da religião arcaica, que foi criada pelo ritual primário dos sacrificadores.

Eugen Rosenstock-Huessy percebe que linguagem e religião são um e mesmo fenômeno, origem criadora do que conhecemos e do que somos, René Girard descreve com a crise mimética, que esta origem está no pecado original do assassinato fundador, e na maturidade de sua obra revela que a verdade evangélica nos libertou da ilusão do poder da morte.

A revelação cristã ao ensinar que a vítima do sacrifício era a única inocente no drama do ritual, a religião antiga dos sacrificadores perdeu assim sua beleza estética sagrada, na qual os mitos e lendas sangrentas foram substituídos pela consciência da própria violência, é o início da condição de possibilidade para o sujeito não ser escravizado pelo mecanismo mimético e ser capaz de perdoar, ao custo de sacrificar a própria hibris, pois revelou-se com Cristo uma hubris que nega a solução sacrificadora.

Eugen Rosenstock-Huessy refere que a linguagem foi criada pela repetição de gritos, grunhidos, urros e choros, e René Girard descreve o processo genético desta transformação, com o modelo da Teoria Mimética, na qual a violência expulsa a violência, uma sagrada outra profana, mecanismo que se consolida por infinitas repetições rituais, que possibilitam a paz necessária para uma comunidade estabelecer um padrão de linguagem verbal, que supere as limitações da linguagem animal.

A origem da linguagem estudada por Eugen Rosenstock-Huessy se encontra com o mimetismo comunicacional, que cria e doma a violência, e nesse processo, a linguagem é criada pelo rito, que cria a religião, que com Cristo recria a linguagem mimética, cuja origem profana e violenta torna-se sagrada e poética não mais com a celebração da morte, mas com a afirmação da vida e da inocência do cordeiro sacrificado.

Werner Nabiça Coêlho - 02/09/2016