Observações preliminares.
O Filósofo Mário Ferreira dos Santos sempre advertia no início de suas obras a respeito da importância do vocabulário, e, principalmente, de seu elemento etimológico, e, já nos idos dos anos 1960 ele alertava que utilizaria certas consoantes mudas, já em desuso, mas muito importantes para "apontar étimos que facilitem a melhor compreensão da formação histórica do têrmo empregado", e, em razão desta técnica de exposição, escolhi realizar as transcrições do texto em seu formato gramatical original (com exceção das tremas).
"O CONCEITO DE CORPO
O que entendemos por corpo é um ser
quantitativo, extensista, mensurável, limitado por superfícies, tridimensional,
ocupando um lugar e que se dá no tempo, etc. O que é salientado em tal ente são
as suas propriedades e os efeitos,
que dele podemos conhecer, não propriamente a sua essência.
Como as propriedades são umas estáticas e outras dinâmicas, a Cosmologia, ao estudar os corpos, o faz segundo o seu
aspecto estático numa parte, e noutra, segundo o seu dinamismo, a sua acção ou actividade.
O conceito de corpo implica, portanto,
superfícies, e se o cosmos, que é o conjunto dos sêres corpóreos, é o único ser
existente, e sendo êle corpóreo, será limitado por superfícies, posto num
espaço que o cerca, outro que êle, um grande vazio, um vácuo imenso e sem fim.
O cosmos seria um conjunto de corpos accidentalmente reunidos, formando uma
unidade de ser, nem imenso nada absoluto parcial, que o conteria. As tremendas
contradições que decorrem deste pensamento tornam-no absurdo, como ainda
veremos. Como, porém, para chegar até este ponto é, mister que previamente
examinemos outros, sigamos os caminhos clássicos da Cosmologia, a fim de
apresentar os elementos imprescindíveis para realizar, posteriormente, a
análise das hipóteses e teorias absurdas, que geraram tremendos erros no
filosofar moderno.
Seja de modo fôr que consideremos o
corpo, a quantidade será sempre da
sua essência, a continuidade de ser, o contínuo. A descontinuidade, o discreto,
que implica separação, surgirá da multidão de sêres quantitativos, separados de
certo modo uns dos outros.
A quantidade implica partes extra partes, uma parte após
outra parte, o ser que continua sendo extensivamente, a tensão que se afasta de si mesmo, ex, que foge de si, centrífuga. Essas partes não ocupam o mesmo
espaço, uma não está no mesmo onde que
outra.
Costuma-se considerar como essência da
quantidade a divisibilidade, a qual também se poderia atribuir à qualidade,
pois esta é divisível em graus intensistas. É mister, contudo, distinguir que a
divisão, na qualidade, é distinta de a da quantidade, pois esta dá como
resultado partes formalmente idênticas, enquanto aquela não, pois, uma
gradação, em grau é formalmente distinta de outro, pois 10º de calor é distinto
de 1º, enquanto um centímetro, enquanto tal, não se distingue, essencial e
formalmente, de outro, mas apenas numericamente.
Qualifica-se a quantidade em continua e descontinua ou discreta.
Examinemos a primeira.
São contínuos
os sêres cujos extremos são um, aqueles que não apresentam interrupção, nem
divisão, nem terminação entre as suas partes.
Contínuo permanente é aquêle cujas partes coexistem simultaneamente;
contínuo sucessivo, aquêle cujas
partes não são simultâneas, mas uma se coloca após outra, como o movimento.
Dividiam, ainda, os antigos em contínuo matemático ou hipotético, que é o contínuo considerado
em sua constituição essencial, e contínuo
físico, que é o existente nas coisas físicas considerado, por sua vez, do
ângulo matemático.
Há, ainda, o contínuo formal, que é contínuo considerado divisível em partes,
que é extenso, e que tem partes extra
partes. Contínuo virtual é o
constante de entes simples distintos, que embora ocupem um espaço, é todo no todo e todo em suas partes
singulares.
O contínuo
formal divide-se em linha, superfície
e volume. Ponto há na intersecção de duas ou mais linhas, e não tem dimensão,
não é medível portanto. A linha tem uma dimensão, a extensibilidade de uma
dimensão, a longitude, alonga-se. A superfície, duas dimensões, a longitude e a
latitude; o volume, além destas, tem a profundidade. O ponto é o término de uma
linha, a linha o término de uma superfície, a superfície o término de volume.
Diz-se que é contígua a quantidade cujos extremos são simultâneos. Assim os
corpos, que têm extremidades distintas, mas as quais se tocam, sem que haja
entre eles um corpo intermédio, são contíguos.
Diz-se que é discreta a quantidade,
quando há entre os corpos uma realidade que os separa, e que serve de
intermédio, como a que se verifica entre dois homens. Para os que admitem que o
espaço é vazio, tais quantidades são separadas por um espaço vazio.
Propriamente a contiguidade e a discreção não
são espécies da quantidade, mas multidão de quantidades, as quais são nomeáveis
e distinguidas numericamente, de modo que alguns antigos (como Aristóteles)
consideravam número a multiplicidade
quando medida pela unidade. Dêste modo, o número era uma espécie da quantidade. Contudo, o número, neste sentido, não está
na coisa, mas sim em nossa mente, e por meio dele, numeramos, contamos as
coisas corpóreas, consideradas descontinuamente. O número, aplicado às coisas
corpóreas, consideradas descontinuamente. O número, aplicado às coisas
corpóreas, é uma espécie da quantidade, número sensível; quando aplicado às
coisas não materiais, é tomado sob a razão da número transcendental.
Na ontologia e na Lógica, enumeram-se
diversas propriedades da quantidade:
1)
Não ter
contrário. Contrário é o máximo diferente específico dentro da mesma espécie. A
quantidade não é um gênero que possua muitas espécies. O maior não é um
contrário do menor, mas apenas este afirma uma privação de quantum em relação àquele.
2)
Não
receber a quantidade mais nem menos, intensistamente considerados, embora possa
ter mais ou menos extensistamente considerados.
3)
A
quantidade ou é igual ou desigual. A igualdade é a conveniência na quantidade:
e a desigualdade, desconveniência naquela.
4)
A
divisibilidade por meio mecânico, ou por introdução de um outro corpo, que separe suas partes.
5)
É
finita, e potencialmente infinita, porque a qualquer quantidade não repugna um
aumento, ou seja, que esse fosse ainda maior.
***
Dadas essas idéias fundamentais da
Cosmologia, pode-se penetrar na problemática que em torno da quantidade é
proposta na obra de tantos autores, e visualizar de modo seguro quais os pontos
deficientes das diversas posições, e quais os que têm procedência rigorosa, em
bases normalmente lógico-ontológicas, e comprováveis pela experiência.
Quando, numa extensão quantitativa, não
há interrupção de qualquer espécie, nenhuma divisão, nenhum término, diz-se que
ela é contínua. Ora, como vimos, o
contínuo pode ser matemático ou hipotético, ou então, físico. O primeiro é a contínuo
considerado segundo a sua constituição essencial, cuja existência objectiva não
se discute por ora, enquanto o contínuo físico é o que existe a parte rei, mas que essencialmente se
funda no contínuo matemático.
Também foi distinguido o contínuo formal de o virtual. O primeiro é o que consta de
partes sem interrupção de qualquer espécie, enquanto o virtual é o que consta de entes simples, distintos, que estão todos
no todo e todos nas partes singulares do espaço.
Uma parte é integral, quando constituinte de uma substância. Sua retirada não
implica o desaparecimento específico do todo, como um pedaço de ferro retirado
de uma barra não implica no desaparecimento da espécie ferro à qual pertence o
restante. Uma parte é essencialmente,
quando retirada, ela implicará a transformação do todo, como a racionalidade no homem, retirada deste,
torna-lo-ia não-homem. A parte
essencial é constitutiva da essência da coisa. Modernamente chamam alguns
autores de contínuo homogêneo o que é
constituído de partes totalmente semelhantes, essencial e accidentalmente, como
um pedaço de ferro, que é continuamente homogêneo, enquanto tal, e contínuo heterogêneo, quando consta de partes que
não têm a mesma espécie, mas diversas. Assim os cristais são contínuos, mas
heterogêneos, porque apresentam accidentes diversos, como as experiências
físicas podem comprovar. (Itálicos e negritos no original.)
Mário Ferreira dos Santos, Erros na
Filosofia da Natureza, Coleção Uma Nova Consciência, Editora Matese, São Paulo,
1967, 14-18.